domingo, 30 de setembro de 2012


Diáario de Beirute (3): Sabadão libanês

Peguei um carro para visitar as ruínas de Baalbek, situadas no norte do Líbano. Significa sair do Líbano urbano para o mundo rural, do litoral para as montanhas e os povoados pequenos.

A estrada passa perto da fronteira com a Síria. Dá para chegar até a fronteira, bem perto de Damasco, em 45 minutos. Muitos controles policiais dos dois lados, mas não dá para cruzar porque me falta o visto. Não me deixam entrar na Síria, nem alegando que quero fazer reportagem para mostrar a realidade do país.

Diz-se que circula grande quantidade de armas para a oposição. O Exército libanês fecharia os olhos. A Síria paga o preço de ter tido tropas em território libanês por tanto tempo. Estranha a sensação de estar tão perto da capital de um país convulsionado, separado por uma grande montanha da aprazível tarde libanesa. Ninguém diria que uma guerra civil devasta o país a alguns quilômetros apenas.

O caminho para o norte é ocupado por cartazes dos mártires e líderes atuais do Hezbollah. É uma região que eles controlam assim, como o sul, de onde expulsaram as tropas israelenses. Desço e compro uma bandeira do Hezbollah.

Meu fiel escudeiro, Khalil, chofer e – segundo ele – guarda-costas. Gordo como o Sancho, mas felizmente bem mais alto. 

A indústria que mais se expande no país é a indústria do mini-sequestro. Só nesta semana, no noticiário divulgado, dois bilionários de Omã e de Doha, foram sequestrados e liberados pelas incríveis somas de 2 e 5 milhões de dólares, em poucos dias. 

Um comerciante foragido do Líbano para a Síria foi sequestrado lá. Para tentar libertá-lo, 40 sírios foram sequestrados no Líbano. Seus sequestradores apareceram na televisão, mostrando seus documentos de identidade e pedindo a troca. Este grupo exagerou, foi preso e esta troca não prosperou.

Khalil foi marinheiro de cabotagem durante 10 anos, conhece o mundo inteiro. Ou melhor, os portos do mundo inteiro. O Brasil existe por Santos, Rio de Janeiro e Paranaguá. Em compensação, o Paraguai e a Bolívia não existem, conforme o mesmo critério da Rainha Elisabeth: não tem saída ao mar.

Durante a guerra civil de 1975 a 1990, a casa dos pais de Khalil, drusos, foi explodida e seus pais morreram. Ele foi com sua família para a Alemanha, onde trabalhou 10 anos como operário e voltou quando o país ja havia sido reconstruído. Ele trouxe um Mercedão cinza, com o qual ganha a vida e que nos transporta pra lá e pra cá neste Líbano de hoje.

O homem mais rico do Líbano, Farid Hariri, foi eleito presidente para comandar a reconstrução e o fez atraindo investimentos e empréstimos estrangeiros, que desfiguraram boa parte de Beirute e endividaram muito o país em um esquema claramente especulativo e neoliberal. 

Mas era um tempo de resgate do país, de otimismo, depois da devastação da guerra civil. Porém, em 2005, em frente a um dos hotéis mais conhecidos de Beirute, um carro explodiu quando passava a comitiva de Hariri. Morreram ele e 13 dos seus guarda-costas. Nunca se descobriu os autores do atentado.

Foi construído um mausoléu na praça principal da cidade, ao lado da principal mesquita, mas os tempos de otimismo acabaram para o Líbano. Desde então o país voltou a viver à flor da pele, sempre esperando novas explosões de violência, seja entre cristãos e islâmicos, seja dentro de cada uma dessas religiões, seja a partir das comunidades que compõem o pais.

Um país que tem fronteiras com a Síria – agora conflagrada – e com Israel, países que o invadiram várias vezes, não pode ter sossego. O mar é o oxigênio do Líbano, porque ao sul tem um muro que impede o acesso à Palestina e tem Israel. No resto das fronteiras, a Síria, cuja guerra civil ameaça estender seus efeitos sobre o Líbano.

Sem falar nos palestinos. O Líbano é o pais que abriga mais palestinos em proporção à sua população – com exceção desse Estado postiço, a Jordânia, em relação ao qual o sonho israelense é expelir a todos os palestinos, fazendo desse país o abrigo dos palestinos, cuja terra Israel pretende esvaziar e se apropriar inteiramente.

Entre os riscos de instabilidade politica – em maio deve haver novas eleições presidenciais, fator de risco sempre – e casos como esses de mini-sequestro, grandes empreendimentos econômicos ligados aos ricos países do Golfo são suspensos. A elite síria, que também tinha se refugiado aqui pela guerra civil, se desloca para outros lugares, ajudando a paralisia e as incertezas para os libaneses.

Khalil tem medo de que, vendo meu Emir no nome, acreditem que é um título e não um nome, que sou mais um dos miliardários de Kuwait ou de Omã, e possa ser vítima de algum mini-sequestro. Por isso diz que atua também como meu guarda-costa.

Eu conhecia Baalbek de todas as folhinhas e calendários da infância, de lojas árabes, em que essas ruínas eram o prato principal. Eu reencontro e reconheço Baalbek, bonita, imponente, só maior do que eu a conhecia.

Na ida e na volta, casamentos, típicos do sábado, gente dançando com os noivos em praças. Noivos tiram fotografias para o álbum nas ruínas de Baalbek.

No retorno, paramos para comer a especialidade da região: uma esfiha pequena, feita na hora, de que o mínimo que eles vendem é meio quilo, o que representa 100 esfihas. Eu tomo um iogurte que funciona como refrigerante. No final do almoço trago numa quentinha 30 esfihas, o que significa que comemos 70, certamente 40 ou mais Khalil.

Na ida e na volta, pago o pedágio de ouvir Julio Iglesias, o tempo todo, no rádio do carro, cantando em castelhano, em português e em italiano.

No retorno fico olhando as montanhas, onde fica o povoado dos meus pais – Kfifen -, do qual, a ninguém a quem perguntei, nunca ouvir falar. Tão pequeno será, num pais tão pequeno!

Mas me lembrei que o povoado tinha um Frei, candidato a ser tornado santo – Frei Charbel -, para quem as tias pediam que rezássemos, para que ele se tornasse santo. Encontrei, numa livraria cristã do centro de Beirute, um pequeno livrinho sobre ele. Pelo visto as rezas funcionaram, ele se tornou santo. A mulher da loja, acreditando que sou um seguidor do Frei, me deu de presente um saquinho de plástico com um vidrinho com uma poção magica ligada ao Frei e umas pedrinhas do seu tumulo, que dão sorte. Mas no livrinho está escrito o nome do povoado – Kifane.

Antes de sair de Baalbek, escrevo numa árvore o nome dos dois, do meu pai e da minha mãe: Nahul e Ercília.
Postado por Emir Sader às 08:01

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