Milton Santos foi o geógrafo que mais visibilidade deu à Geografia brasileira. Sua militância permanente em prol da cidadania e da ética extrapolou os muros acadêmicos. Produziu um obra numerosa e complexa, uma verdadeira teoria geográfica do espaço, que apresenta diferentes fases e faces e reclama ainda muita reflexão. O presente texto apresenta uma das muitas possibilidades de classificação de sua obra. Considera, para tanto, que seu pensamento e a organização de seu trabalho percorre dois caminhos básicos, desde o campo das reflexões filosóficas sobre a natureza do espaço geográfico, até trabalhos de natureza empírica, quando buscava a reconstrução intelectual do mundo a partir das experiências específicas, dando destaque à categoria lugar.
Denise Elias
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Em muitos aspectos, Milton Santos foi um homem à frente de seu tempo. Na era na qual muitos proclamavam o 'fim da história', ele introduziu o pensamento geográfico no centro do pensamento social do país, deu visibilidade à geografia brasileira e auto-estima aos geógrafos. Sua própria visibilidade e de sua obra extrapolaram os muros acadêmicos em 1994, quando ganhou o maior prêmio internacional da Geografia, o Vautrin Lud, uma espécie de Nobel da especialidade, atribuído por universidades de vários países. Naquele momento, sua visibilidade atingiu campos antes não imaginados, ultrapassando em muito o da Geografia e o do mundo acadêmico.
Privilegiados fomos os que pudemos desfrutar, de alguma forma, do seu cotidiano. A dor da partida é forte. Mas, ele continua vivo em sua obra. Resta-nos, assim, o consolo de senti-lo presente em cada um dos seus escritos e sua vasta obra continua nos instigando à descoberta, à pesquisa, ao novo e esta é uma forma de encontrá-lo, de aplacar as saudades e de ter esperança.
São muitas as lições que Milton Santos nos deixou e com ele aprendíamos não só sobre a geografia mas sobre a vida, como a de que o talento para a vida acadêmica é construído com muito trabalho metódico e cotidiano; que o verdadeiro intelectual não cede aos modismos da época e aos 'cantos de sereia' do sucesso fácil; que devemos lutar por uma universidade não atrelada ao mercado ou à técnica e que sem a curiosidade, o homem não chegará a lugar nenhum. Enumerá-las exige a reflexão de toda uma vida. De suas metáforas, conceitos e categorias ainda há muito por ser processado.
Sua colaboração para a construção epistemológica da ciência geográfica é nítida. Pensar o espaço, o território, o território usado era o objeto de seu trabalho. O uso da periodização; o imbricamento do teórico com o empírico, já que 'é através do estudo do lugar que o mundo é empiricamente percebido'; o estudo dos sistemas técnicos e dos sistemas normativos; assim como a idéia de que o mundo não se explica sem as suas diferentes partes são algumas das ferramentas imprescindíveis para o estudo da empiricização do tempo no espaço, nas diferentes escalas geográficas.
Aprendemos com ele que o mais importante é olhar para frente, é pensar o futuro. Assim, homenagea-lo é seguir seu exemplo de coragem, dedicação e perseverança, intensificando o uso e aperfeiçoando sua vasta obra, incorporando sua bibliografia em nossas disciplinas e em nossas reflexões sobre a Geografia e sobre o mundo. É seguir os ensinamentos que ele nos deixou, o seu exemplo de trabalho sério e cotidiano; de militância no campo das idéias; de liberdade de pensamento; de ideais de solidariedade e, especialmente, de otimismo e esperança quanto ao futuro da Geografia, da sociedade e do homem. É acreditar que um outro mundo é possível. Um mundo no qual certamente vingarão os ideais de solidariedade e cidadania.
Indicamos aqui uma das muitas possibilidades de classificação de sua obra.
A obra: uma classificação possível
Milton Santos produziu uma vasta e complexa obra que está aí posta para quem queira decifrá-la em suas diversas fases e faces. Seu pensamento e a organização de seu trabalho percorre dois caminhos básicos, desde o campo das reflexões filosóficas sobre a natureza do espaço geográfico, até trabalhos de natureza empírica, quando buscava a reconstrução intelectual do mundo a partir das experiências específicas, dando destaque à categoria lugar.
Na produção teórica de Milton Santos, enxergamos uma teoria geográfica do espaço, um conjunto coerente que nos permite ultrapassar a forma e compreender a essência, a estrutura e os processos, as formas-conteúdo. A elaboração de novos conceitos e categorias foi deveras frutífera e reclama ainda muita reflexão.
Alguns aspectos da sua obra promoveram metamorfoses no pensamento e nos estudos geográficos, tendo outros gerado muitas polêmicas. As flores das homenagens após a sua morte não estiveram sempre presentes em sua vida, tendo o confronto das idéias novas por ele produzidas conhecido momentos duros.
Dentre algumas das idéias tanto memoráveis e, por vezes, polêmicas, citaríamos a consideração do 'espaço como instância social'; 'o espaço urbano como sendo dividido pelos dois circuitos da economia'; 'a categoria de formação socioespacial'; 'a geografia como filosofia das técnicas'; 'o presente como a dialética de uma ordem global e de uma ordem local; 'a força da solidariedade organizacional destruindo a solidariedade orgânica', tornando o espaço cada vez mais racional; as normas como o veículo de homegeneização técnica e organizacional; a face material da globalização refletida na expansão do meio técnico-científico-informacional; as três unicidades como os dados constitutivos do atual sistema temporal; a periodização, um dos signos de seu método de trabalho, somente para citar algumas.
Por uma Economia Política da Urbanização do Terceiro Mundo
Uma das veias que percorrerá toda sua obra refere-se às formulações sobre os aspectos e faces da desigualdade no Terceiro Mundo e os impactos e repercussões sobre o território. São características desse momento os estudos sobre a estrutura interna da cidade, o processo de urbanização e o estudo da rede urbana nos países pobres. O grande destaque é para os países da América Latina, onde fundamenta as bases de seu trabalho, mas há também exemplos dos outros continentes subdesenvolvidos, especialmente de países africanos.
São vários os exemplos da fertilidade dessa fase. Poderíamos citar A Cidade nos Países Subdesenvolvidos (1965), que deu início a uma série de publicações sobre as especificidades e características próprias da urbanização no Terceiro Mundo. A publicação deste livro traz ao debate alguns dos problemas principais dessas cidades, convidando os geógrafos e demais leitores 'à meditação sobre o que esses grandes objetos construídos pelo homem podem representar na transformação que se deseja da fisionomia do mundo em que vivemos'.
Seguem-se A Urbanização Desigual (1980); Geografia y Economia Urbanas en los Países Subdesarrollados (1973); Pobreza Urbana (1978); Economia Espacial: críticas e alternativas (1978); Manual de Geografia Urbana (1981); Ensaios sobre a Urbanização Latino-americana (1982); O Trabalho do Geógrafo do Terceiro Mundo (1971); Espaço e Sociedade (1979) e O Espaço Dividido: os dois circuitos da economia urbana (1978), dentre os principais.
A publicação deste último livro é o exemplo maior e mais significativo dessa face de estudos. Com esse livro, Milton Santos desenvolve uma teoria sobre o espaço geográfico urbano e o subdesenvolvimento, tendo a interdisciplinariedade se intensificado, constituindo uma das principais características de sua obra e de seu trabalho.
Em O Espaço Dividido (p. 23-27), chama a atenção para o fato de que devemos considerar as modernizações como o único modo de levar em conta as implicações temporais da organização do espaço, especialmente no Terceiro Mundo. Por modernização entende-se a generalização de uma inovação vinda de um período anterior ou da fase imediatamente precedente. Considerando que cada período é caracterizado pela existência de um conjunto coerente de elementos de ordem econômica, social, política e moral, que constituem um verdadeiro sistema, sugere que devemos realizar uma divisão do tempo em períodos para reconhecer a existência da sucessão de modernizações, que seria a própria história das modernizações.
Por uma Epistemologia do Espaço
Uma outra face se afirma e caracteriza-se pelo mergulho na epistemologia da Geografia, do espaço, pela busca da compreensão da totalidade e do período histórico vigente desde o final da Segunda Guerra mundial.
São muitas as obras nessa linha e não poderíamos deixar de citar a publicação do texto 'Sociedade e Espaço: a formação social como teoria e como método', publicado pelo Boletim Paulista de Geografia, de 1977. A partir desse momento, o espaço como instância social se impõe. Seu esforço caminha no sentido de que a Geografia se preocupe mais com a formação do território do que com sua forma.
Para Milton Santos, a categoria formação econômica e social parecia adequada para ajudar à formulação de uma teoria válida do espaço. Para ele, não se podia falar de uma lei separada da evolução das formações espaciais, mas de formação socioespacial.
Com a publicação dePor uma Geografia Nova (1978),mergulha na epistemologia da Geografia e na dialética, marcando um tempo de mudança na Geografia, um período de renovação, de busca de novos paradigmas, traduzido no próprio subtítulo do livro 'Da Crítica da Geografia à Geografia Crítica'. A partir de então, ganha força a idéia da Geografia com bases interdisciplinares, a crença numa 'geografia refundada, instrumento teórico e prático para a transformação do mundo'.
Os livros Pensando o Espaço do Homem (1979); Espaço e Método (1985); Metamorfoses do Espaço Habitado (1988); Técnica, Espaço e Tempo (1994) e, finalmente, a obra síntese A Natureza do Espaço (1996) mostram uma face de grandes elocubrações teóricas, de multiplicação de conceitos e de categorias, da revisão de conceitos clássicos da Geografia. Esses livros estão entre as principais referências do corpo epistemológico da Geografia elaborado por Milton Santos.
Com a publicação de Pensando o Espaço do Homem ganha força a totalidade como componente do método; a idéia da epistemologia do espaço; a necessidade de compreensão das principais características da contemporaneidade, da aceleração contemporânea. Milton Santos destaca a importância de que o espaço seja estudado não somente na sua forma mas também na sua estrutura, no seu processo e na sua função, caso contrário, ao invés de espaciólogos, teríamos espacialistas, que estudariam o espaço em si mesmo.
Nesse momento, ganha força o estudo das relações entre técnica e espaço, das repercussões espaciais da revolução tecnológica, consagrando o período histórico como técnico-científico-informacional, cujo registro no espaço é o meio técnico-científico-informacional, conseqüência espacial do período marcado pela globalização da produção e do consumo.
Para Santos, o meio técnico-científico-informacional explicaria o impacto do processo de globalização no território, revelando a nova composição técnica e orgânica do espaço, constituído como o conjunto técnico inerente ao novo ciclo da civilização mundial, com conteúdo crescente de ciência, tecnologia e informação. 'É nele que se instalam as atividades hegemônicas, aquelas que têm relações mais longínquas e participam do comércio internacional, fazendo com que determinados lugares se tornem mundiais.' Essas idéias ganham força e derivações meia década depois com a publicação de Espaço e Método, onde muitas das questões apresentadas em Pensando o Espaço do Homem são complementadas.
Nessas obras, defende que qualquer lugar do planeta deve ser estudado à luz das novas condições históricas reinantes desde meados do século XX, em especial da globalização do espaço e da aceleração contemporânea, cuja compreensão está pautada na caracterização da contemporaneidade como pertencente a um período técnico-científico-informacional.
Desde então, a inserção da ciência, da informação e da tecnologia, em todos os níveis da produção e da vida social, forneceriam as bases para um estágio superior do desenvolvimento capitalista, influenciando, direta ou indiretamente, a realidade econômica, social, política e territorial de todos os países, sendo relevantes à compreensão das condições e tendências da utilização do território brasileiro e, sobretudo, de suas áreas economicamente mais desenvolvidas.
A crescente artificialização do meio ambiente resultaria, assim, na tecnoesfera, marcada pela presença de grandes objetos geográficos, idealizados e construídos pelo homem, articulados entre si em sistemas. Isto justificaria, então, que as técnicas constituem um bom caminho para a explicação do espaço e, conseqüentemente que uma direção epistemológica para a Geografia é pensá-la como Filosofia das Técnicas.
Em Metamorfoses do Espaço Habitado continua trilhando a busca do caminho analítico para a geografia crítica. Situa a geografia no contexto do mundo atual e rediscute categorias tradicionais, sugerindo linhas de reflexão metodológica. Reforça o papel da ciência, da tecnologia e informação como a base técnica da vida social atual e que, desse modo, deveriam participar da construção epistemológica renovadora da Geografia. Com este livro, reforçam-se os conceitos de fixos e fluxos no estudo do movimento das contradições do espaço geográfico.
Com Técnica, Espaço, Tempo impõe-se, definitivamente, a força da técnica como parte de sua epistemologia do espaço. Nessa obra destaca que, muito embora esteja longe de ser uma explicação da história, a técnica constitui uma condição fundamental para a sua explicação. Esse livro traz em seu âmago o fato de considerar o presente período histórico como algo que pode ser definido como um sistema temporal coerente, cuja explicação exige que sejam levadas em conta as características atuais dos sistemas técnicos e as suas relações com a realização histórica.
Apresenta mais um de seus pares dialéticos de explicação do espaço: sistemas de objetos e sistemas de ação. O espaço seria, então, o conjunto indissociável de sistemas de objetos naturais ou fabricados e de sistemas de ações, deliberadas ou não.
Reforça a idéia de que o espaço não se extinguiu com a aceleração contemporânea, mas apenas mudou de qualidade. Segundo Santos, viveríamos um momento da história no qual chegamos à possibilidade de uma totalidade empírica e de um contexto em que, paralelamente, se instala um novo sistema da natureza, onde o que conta é a natureza artificializada.
São apresentadas, também, as três unicidades como dados constitutivos do período: a unicidade técnica, a convergência dos momentos e a unicidade do motor. 'Esses três dados, a um só tempo causas e efeitos uns dos outros, são solidários em escala mundial'.
Destaca ainda que, como a dialética está presente em tudo e a contradição a rege, o mundo da globalização doentia é contrariado no lugar e o espaço mundial existe apenas como metáfora. Para ele, quanto mais os lugares se globalizam, mais se tornam singulares, no sentido de que o arranjo que os elementos componentes do território têm em um determinado lugar, não será encontrado em nenhum outro. Assim, a própria globalização acaba por produzir a fragmentação.
Com A Natureza do Espaço reforça sua epistemologia do espaço, contribuindo para a teoria social. Multiplicam-se e reforçam-se os conceitos e categorias: tecnoesfera e psicoesfera; tempos rápidos dominantes e tempos lentos hegemonizados; redes, produto das condições contemporâneas da técnica; ações que se distinguem pela sua racionalidade e intencionalidade; zonas opacas e zonas luminosas; tecnificação do território redefinindo a divisão do trabalho mediada pela técnica; horizontalidades e verticalidades, como recortes territoriais no tempo da globalização etc.
Um Modelo de Análise e de Síntese do Brasil
Uma primeira fase de estudos sobre o Brasil iniciou-se antes do exílio. Abrangendo a escala local e mais empírica, foi voltada à realidade baiana. A Bahia era o centro das preocupações, tendo estudado a região cacaueira e Salvador, na década de 1950. Priorizava o estudo dos problemas urbanos e regionais.
Milton Santos insistia no fato de que a geografia crítica, para ser útil e utilizada, tem que ser analítica e não apenas discursiva. Dessa forma, de volta ao Brasil, após uma longa fase de exílio, intensificou a observação e a leitura analítica do território brasileiro, uma vez que o considerava como o melhor observatório do que se passa no país.
O Estado de São Paulo e a metrópole paulistana tiveram destaque particular. Os esforços para a compreensão da maior cidade brasileira ficam registrados quando publica SP: metrópole corporativa fragmentada (1990), estudo posteriormente complementado com Por uma Economia Política da Cidade (1994). Em 1993, publica A Urbanização Brasileira, obra síntese para pensar o processo da urbanização no Brasil.
Essas três obras apresentam, ao mesmo tempo, discussão teórico-metodológica, ou seja, o uso do método e da metodologia para casos vertentes como da urbanização e da morfologia da metrópole paulistana, em particular, e do Brasil como um todo, resultados de um processo de observação e leitura analítica da urbanização brasileira em geral. Se os resultados aparecem de forma separada, não são, todavia, propriamente fragmentários, já que, entre eles, guardam coerência e são fruto de uma fase bastante frutífera de pesquisas com alguns de seus principais interlocutores e orientandos do Instituto de Geociências da UFRJ, onde lecionara logo que regressara ao Brasil, em 1978 e, principalmente, do Departamento de Geografia da USP, a partir de 1983.
Embora já conhecido internacionalmente há duas décadas, é a partir de então que conquista visibilidade nacional, fato que se acirra na década de 1990. O aparato institucional uspiano possibilitou galgar ou aprofundar conexões, como a do intercâmbio, da interdisciplinaridade, do debate com intelectuais de outras áreas do conhecimento. Um dos marcos primeiros deste momento foi a organização do simpósio 'A Metrópole e a Crise', em 1985, ao qual se seguiram outros de igual magnitude.
Foi um período de muitas atividades de pesquisa e simpósios organizados por Milton Santos e sua equipe, da qual tive o privilégio de participar, ainda como graduanda. Eram reuniões com a participação limitada aos componentes permanentes do seu grupo de pesquisa, além de professores convidados, de universidades brasileiras e européias. O grupo era interdisciplinar, pois contava com a participação de geógrafos, sociólogos e arquitetos, desenvolvia projetos financiados pelas principais instituições de fomento à pesquisa do país.
Dentre os primeiros projetos, tínhamos o intitulado 'O Centro Nacional: crise mundial e redefinição da Região Polarizada'. Como objetivo principal apresentava o estudo do impacto da crise econômica mundial na organização territorial das atividades econômicas, nos recursos financeiros e na população do Brasil. Compreendia a crise mundial como constituindo um momento de clivagem, no qual poderiam ser observados os rumos assumidos pela penetração de uma nova frente tecnológica e científica de consequências marcantes para a divisão territorial e social do trabalho. A preocupação do projeto com o centro nacional implicou na adoção de uma perspectiva metodológica através da qual o centro foi definido dentro de um contexto de relações econômicas integradas, uma sub-totalidade de um mundo globalizado.
Como um dos resultados deste projeto, Santos sugere uma revisão dos critérios de divisão regional do país, por considerá-la ultrapassada. Propõe uma classificação que levava em consideração o impacto da modernização ocorrida no território, uma vez que a urbanização poderia ser mais inteligentemente descrita se fosse considerada a base da organização da produção atual, resultado da herança histórica e da velocidade das inovações. Propõe, então, três grandes regiões, e apresenta o conceito de Região Concentrada, onde a difusão de inovações foi mais veloz e complexa, com uma contínua renovação das forças produtivas e do território, que responderam com grande velocidade às necessidades colocadas pelos agentes econômicos hegemônicos. Compunha-se pelas Regiões Sudeste, Sul e partes da Centro-Oeste.
Para Santos, a Região Concentrada do Brasil é aquela na qual, desde o primeiro momento da mecanização do território, ocorre uma adaptação progressiva e eficiente aos interesses do capital hegemônico, reconstituindo-se à imagem do presente técnico-científico-informacional, transformando-se na área com maior expansão dos fixos artificiais e dos fluxos de todas as naturezas. Nela, o meio técnico-científico-informacional se dá como área contínua, embora apareça como manchas e pontos nas outras áreas do território nacional.
A partir de 1986, iniciaram-se alguns outros projetos que deram parte do sustentáculo dos livros sobre São Paulo e sobre a urbanização brasileira. Um deles inscrevia-se em uma temática mais ampla, isto é, a forma como se dava a reorganização do espaço geográfico à luz das novas condições históricas geradas pelo período técnico-científico. O objetivo principal era o entendimento do que era então, de um modo geral, a urbanização brasileira, suas realidades, seus processos e suas tendências, buscando, sobretudo, o reconhecimento dos elementos de estruturação do espaço, em suas diversas escalas de ação.
Outro projeto que deu origem aos livros supracitados compreendia o estudo de alguns aspectos do uso do território como decorrência do papel que a ciência, a tecnologia e a informação passaram a ter, direta ou indiretamente, como dados fundamentais da realização econômica, social e política e da reelaboração dos espaços geográficos, sobretudo nos últimos decênios. Procurava, assim, reconhecer e dimensionar, qualitativa e quantitativamente, os vetores de modernização com incidência direta ou indiretamente espacial no Estado de São Paulo. A pesquisa apresentava recortes na escala regional, especialmente na Região Metropolitana, e nas regiões de Ribeirão Preto, Campinas e Sorocaba, de forma a reconhecer, de um ponto de vista sistêmico, o conjunto de fatores locais e extra-locais e o resultado de sua ação transformadora, no campo e na cidade. Outro projeto preocupava-se fundamentalmente com a reorganização espacial recente do interior do Estado de São Paulo, incluída a redefinição do fenômeno da urbanização e os novos papéis no presente sistema temporal.
Em São Paulo: Metrópole Corporativa Fragmentada, mostra como 'o processo de globalização conduz a uma nova divisão internacional do trabalho e cria lugares mundializados, onde se destacam as denominadas metrópoles globais, das quais São Paulo é uma das principais referências no Terceiro Mundo. Alinha, nesse livro, as razões pelas quais essa metrópole brasileira pode ser considerada uma cidade mundial, mostrando o seu desempenho nas diversas atividades características da modernidade contemporânea. O papel da ciência, da tecnologia e da informação é devidamente destacado como resposta às novas exigências da produção' contemporânea.
Em Por uma Economia Política da Cidade, 'continua seu processo de observação e leitura analítica da urbanização brasileira em geral e da metrópole paulista em particular, através de uma análise empírica, que é, por sua vez, uma continuação de uma reflexão teórico-metodológica mais ampla e antiga'.
A Urbanização Brasileira, obra basilar para quem quer entender como se construiu o Brasil, especialmente em sua fase mais recente, uma vez que é, ao mesmo tempo, um estudo de análise e de síntese sobre a evolução do território e da urbanização do país, urbanização que se mostra corporativa, refletindo-se na desigual distribuição do meio técnico-científico-informacional, que reforça, ainda mais, a construção de uma sociedade dual e de um espaço seletivo.
Defende, nesse livro, que a complexidade das variáveis que compõem a urbanização do país é tamanha, que não seria mais possível continuar pensando o Brasil como dividido em rural e urbano, mas que diante da revolução urbana que nele se processa, desde a década de 1980, seria mais correto pensar em um Brasil urbano com áreas agrícolas e em um Brasil agrícola com áreas urbanas.
Dentre os elementos explicativos dessa nova realidade, teríamos o processo de involução metropolitana, em contraposição ao de metropolização, que caracterizava a urbanização até então, quando passam a crescer não somente algumas poucas grandes cidades, mas também as cidades médias e locais criando um verdadeiro 'exército industrial de reserva de lugares', com a proliferação de uma enorme quantidade de lugares propícios ao exercício dos capitais hegemônicos, permitindo a fragmentação do território e uma nova divisão social e territorial do trabalho.
Como característica da nova urbanização brasileira, destaca: o aumento do trabalho intelectual não só na cidade mas também no campo; o crescimento do consumo produtivo e consumptivo; a existência do agrícola não rural, das indústrias agrícolas não urbanas; a cidade como locus de regulação do que se faz no campo moderno; a migração descendente; as regiões do fazer e do mandar etc.
O esforço para a compreensão do território brasileiro se completa com a publicação do último livro Brasil: sociedade e território no início do século XXI (2001), que é praticamente um 'guia de trabalho', como está posto na sua introdução, uma continuação de sua interpretação geográfica do Brasil, um esforço de análise e de síntese do país.
A quantidade e complexidade das elaborações teóricas de Milton Santos fazia com que muitas das questões, conceitos e categorias fossem apresentados, mas nem sempre trabalhados em toda a sua complexidade. Dentre as questões trabalhadas em O Brasil: território e sociedade no início do século XX, destacaríamos a retomada de alguns dos conceitos apresentados anteriormente, mas ainda pouco trabalhados, que são retomados, tornando-se mais complexos e mostrando um série de derivações. Lembraríamos especialmente os conceitos de circuitos espaciais da produção, que formam um par dialético com os círculos de cooperação, e o da Região Concentrada.
O conceito de circuito espacial da produção foi tratado num texto pouco lido, publicado em 1986, num livro organizado por ele e Maria Adélia Aparecida de Souza. Neste explicita que 'os circuitos espaciais da produção nos dão a situação relativa dos lugares, isto é, a definição, num dado momento, da respectiva fração de espaço em função da divisão do trabalho sobre o espaço total de um país. Aí se conjugam as relações de produção social, que os circuitos de ramos tipificam, as relações sociais de produção, dadas pelas firmas, mas também as relações de produção do passado, mantidas ou rejuvenescidas pelas relações atuais e representadas por relíquias ou heranças, tanto na paisagem quanto na própria estruturação social' (p.130)
Enquanto alguns livros são voltados totalmente para a reflexão teórica, à reflexão da epistemologia do espaço e da Geografia, esses últimos livros citados poderiam ser utilizados como uma espécie de 'guia de trabalho', esforços de análise e de síntese, exemplos importantes de como imbricar o teórico com o empírico, tarefa das mais difíceis e uma das marcas importantes da obra de Milton Santos.
Por uma outra Globalização
É imperativo citar as duas obras que são exemplos maior de militância pela construção da cidadania e da ética, como é o caso do livro O Espaço do Cidadão (1987) e Por uma outra globalização (2000).
O Espaço do Cidadão foi escrito no calor dos debates sobre a nova Constituição Brasileira e é um excelente começo para os não geógrafos que querem se iniciar nas leituras miltonianas. Discorre sobre a supressão sistemática e brutal da cidadania à maior parte da população brasileira, que se dá concomitantemente à evolução da sociedade de consumo, o verdadeiro ópio contemporâneo, regredindo na escala de valores.
Põe a nu o processo de transformação do cidadão em simples consumidor insatisfeito, que, alienado, aceita ser chamado de usuário, servindo ao economicismo reinante, mostrando a vitória do consumo como fim em si mesmo e das empresas no comando do território. Na construção da sociedade corporativa, da qual o Brasil é um exemplo, 'reina a propaganda como fazedora de símbolos, o consumismo como seu portador, a cultura de massas como caldo de cultura fabricado e a burocracia como instrumento e fonte de alienação'.
No livro Por uma Outra Globalização disserta sobre os pilares da globalização, suas conseqüências territoriais e sociais e desenha um futuro cheio de esperança, conclamando todos para a busca de uma outra globalização, na qual não haja lugar para o globalitarismo. Sua esperança reside no fato de que ao mesmo tempo em que se globalizam a taxa de lucro, a exploração, a miséria, a exclusão social, globalizam-se as lutas sociais, os ideais contra a globalização, o conhecimento e a vontade de mudar o mundo. Na sua idéia de futuro, traço marcante de sua personalidade, acreditava na construção do período demográfico-popular, quando a luta cotidiana do povo abrirá novos caminhos, auxiliada pela empirização da totalidade.
Dessa forma, esses dois livros colaboram, entre muitas outras coisas, para a desalienação do indivíduo, a partir do ponto que acreditemos que uma outra globalização é possível. Não temos que acreditar que as formas-conteúdo do presente são inevitáveis, incontestáveis, mas que podem e devem ser recusadas e que este novo momento da revolução burguesa, marcada pelo globalitarismo, será substituído por um outro, no qual predominará a solidariedade local, a solidariedade horizontal em substituição às verticalidades opressivas das empresas hegemônicas, quando a luta cotidiana do povo abrirá novos caminhos.
Acreditar nestes novos caminhos é que nos faz seguir em frente, mesmo com a ausência de quem assim nos ensinou, pois com ele aprendemos que só o trabalho de compreensão do presente é que nos ajudará a construir um outro futuro. Dessa forma, apesar de ausente, ele está presente quando nos ajuda na leitura analítica do mundo, contribuindo para criar a consciência do presente período histórico. Sua obra constitui-se, então, num dos caminhos para a construção de uma outra globalização.
Seguindo uma das muitas lições que aprendemos com nosso mestre, terminaríamos, então, como ele ao final das reuniões de trabalho, desejando-lhes coragem, coragem para o trabalho, coragem para a construção de uma outra globalização. 'O cotidiano será, um dia ou outro, a escola da desalienação'. Saudades do futuro.
Bibliografia
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SANTOS, Milton. Sociedade e espaco: a formacão social como teoria e como método. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo: AGB, 1977, p. 81- 99.
SANTOS, Milton. Por uma Geografia nova. São Paulo: Hucitec-Edusp, 1978.
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SANTOS, Milton. O meio técnico-científico e a redefinição da urbanização brasileira. Projeto de pesquisa apresentado ao CNPq, 1986 (datilografado).
SANTOS, Milton. Aspectos geográficos do Período Técnico-Científico no estado de São Paulo. Projeto de pesquisa apresentado à Fapesp, maio 1986 (datilografado).
SANTOS, Milton. A região concentrada e os circuitos produtivos. Texto apresentado como parte do relatório de pesquisa do projeto O Centro Nacional: Crise Mundial e Redefinição da Região Polarizada, 1986 (datilografado).
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. Paulo: Hucitec, 1988.
SANTOS, Milton. O Período Técnico-Científico e os estudos geográficos: problemas da urbanização brasileira. Projeto de pesquisa apresentado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mar. 1989 (datilografado).
SANTOS, Milton. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Nobel/Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade. SP: Hucitec /Educ, 1994.
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.
SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia A.(org.). A construção do espaço. São Paulo: Nobel, 1986.
Ficha bibliográfica:
ELIAS, D. "Milton Santos: a construção da geografia cidadã". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]
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