– 25 DE SETEMBRO DE 2012
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Três artistas relatam sua experiência com desenho de rua e mostram como desenhar é também uma forma de compreender as cidades
Por Mazé Leite, em seu blog
Há dois anos, tomei conhecimento a respeito dos desenhistas urbanos reunidos no site com o título Urban Sketchers. São pessoas que começam a se agrupar, em vários lugares do mundo, simplesmente para fazer desenhos de observação de suas cidades, ou das cidades por onde passam em suas viagens. Reunidos anualmente já no III Simpósio Internacional, que este ano aconteceu na República Dominicana, eles começaram um movimento de interação, de troca de experiências, juntando gente das mais diferentes línguas para se encontrarem numa mesma linguagem: a dos que desenham suas cidades e suas experiências pessoais com elas.
Aqui no Brasil, após o II Simpósio Internacional de Lisboa, foi criado o movimento – e o site – dos desenhistas urbanos brasileiros, numa iniciativa de Eduardo Bajzek, João Pinheiro e Juliana Russo, três artistas com anos de experiência na arte do desenho de observação. Por enquanto, esse movimento está mais concentrado em São Paulo, mas vários estados brasileiros já possuem algum correspondente desenhista urbano. A intenção desse grupo – do qual também faço parte – é poder abarcar todos os Estados com pelo menos uma pessoa como correspondente desenhista. Nossa ideia é organizar encontros estaduais, regionais e nacionais dos desenhistas urbanos.
Mas o grupo é ainda maior do que os Urban Sketchers. Em várias cidades do Brasil e do mundo, pessoas – individualmente ou em grupo – tem desenhado o cotidiano de suas ruas, bairros e cidades, a partir da observação direta, seja nas ruas ou em ambientes internos como bares, bibliotecas, casas, livrarias, shows, teatros, parques. São desenhos que contam a história das cidades e das pessoas que moram nelas, ajudando a dar um olhar mais humano para essas aglomerações onde convivem milhares, senão milhões de pessoas.
Essa forma de prática artística não é uma novidade. Somente para dar dois exemplos: o pintor holandês Jan Vermeer (1632-1675) registrou em sua pintura a cidade holandesa de Delft, por volta de 1660. Essa pintura de Vermeer (acima), além de deixar um registro daquele tempo, inspirou o escritor francês Marcel Proust, que dedicou uma parte do seu livro Em Busca do tempo Perdido a falar sobre essa obra que o apaixonava. Um segundo exemplo mais próximo de nós é o do artista francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que viveu 15 anos aqui no Brasil, integrando a Missão Francesa, e fez dezenas de desenhos e aquarelas enquanto percorria os Estados fazendo registros da costa brasileira, das casas, das paisagens da mata nativa, assim como retratos de índios, negros e brancos em seu cotidiano. Debret registrou até mesmo as festas e tradições populares, deixando uma rica documentação sobre um período histórico brasileiro que já se perdeu no tempo.
Três desenhistas urbanos de São Paulo
Para tornar este artigo um pouco mais rico, resolvi conversar com três grandes desses “croquiseiros” urbanos que moram e trabalham nessa grande metrópole brasileira, uma cidade onde todos os números tendem a cifras enormes: milhões de carros trafegam pelas ruas, milhões de pessoas se deslocam diariamente de casa para seus locais de trabalho, centenas de bairros formam esta cidade, com milhares de ruas, milhões de casas, milhares de pessoas se cruzando em suas avenidas..
Carla Caffé
A primeira que entrevistei foi a arquiteta Carla Caffé, formada pela FAU-USP no início da década de 1990, que foi também diretora de arte do filme “Central do Brasil”, além de outros filmes e peças de teatro. Carla mantém um ateliê em São Paulo, onde desenvolve diversos projetos de desenho, assim como de arquitetura e direção de arte.
Carla Caffé tem 47 anos e começou a desenhar na rua desde cedo. Ela mesma conta que desde os tempos de colégio já andava com seu caderno de desenho e até mesmo quando estava esperando pelo ônibus “era um convite para rabiscar” o que via à sua volta. “Eu tinha mais vontade de desenhar na rua do que em casa”, diz ela.
Foi fazer Arquitetura já “com a perspectiva de que não seria arquiteta”, mas com a intenção de aproveitar essa formação acadêmica para que pudesse continuar desenhando. Mas ela diz gostar muito da Arquitetura pois aprendeu muito como pensar a partir de seus conceitos: espacialidade, proporcionalidade, circulação, lógica…
Mas uma das experiências mais marcantes que Carla Caffé teve no início de sua carreira de desenhista urbana, foi a de ter conhecido uma cidade como Nova York, quando foi acompanhar a Companhia de Teatro Ópera Seca. Ela complementa: “Nos intervalos do trabalho, eu saia para desenhar nos museus. Mas as ruas de New York são mais interessantes que os museus, então passei a desenhar nas ruas como forma de conhecer e absorver o lugar. Um desenho de investigação, de registro. Nessa época sonhava em ser Corto Maltese, ou melhor Hugo Pratt, desenhista de Corto que viajava desenhando as estórias em Quadrinhos”. Ela tomou gosto por isso e não parou mais de desenhar, quando voltou a São Paulo.
E me contou que sempre se interessou pelo tema do urbano, pela vida urbana, que a fascina “assim como um gesto arquitetônico”. “Saio nas ruas e os pensamentos que me invadem geralmente são questões urbanas. Por ora estou muito envolvida com a questão da mobilidade urbana”, acrescenta ela, que aponta que esse movimento de incentivo ao uso cada vez maior das bicicletas nas cidades podem “desenhar” cidades mais humanas.
Pergunto a Carla como ela vê esse tipo de registro de observação das cidades por onde passa. Ela diz que acha muito importante, porque “o que o desenho registra é diferente do registro fotográfico. O desenho tem a questão de permanência, da escuta, um tempo diferente de um clique. Com o desenho você também pode aproximar, afastar, inverter, costurar, pode moldar a paisagem de acordo com o seu coração.” E complementa dizendo que a Arte é parte intrínseca de sua vida, uma “forma de sanidade”, lembrando o que diz a artista Louise Bourgeois. Para Carla Caffé, viver numa cidade tão grande como São Paulo e poder desenhá-la é uma forma de “dar um sentido a tudo isso, a essa passagem pelo plano terrestre”
Carla Caffé publicou, em 2009, um livro com desenhos que ela fez da Avenida Paulista em São Paulo, pela Editora Cosac&Naify.
Hugo Paiva
Depois de Carla, me dirigi a outro arquiteto também formado pela FAU, neste ano de 2012. Seu nome é Hugo Alves Paiva, de apenas 29 anos de idade, mas que já projeta grandes planos como desenhista urbano para sua vida.
O sonho de Hugo é poder fazer uma longa viagem ao redor do mundo com um sketchbook (caderno de desenho) nas mãos. Em sua recente experiência acadêmica, Hugo teve que apresentar um trabalho de conclusão de curso que ele voltou para o desenho urbano. Passou por várias cidades brasileiras, de São Luís do Maranhão a Fortaleza, no Ceará, além de outras cidades, registrando o que via em seu caderno de desenho. O resultado disso ele colocou num livro que conta toda essa experiência como uma espécie de solitário peregrino desenhador das ruas. De São Paulo especialmente, onde mora.
Hugo conta que começou a desenhar antes mesmo de saber escrever. “Minhas primeiras referências relacionadas ao ‘drama’, que mais tarde eu redescobriria nos quadros de Rembrandt, ou nos edifícios de Frank Lloyd Wright de uma forma muito mais intensa; ou aos feitos heroicos muito melhor construídos nas epopeias de Ulisses ou Hércules, foram os programas vespertinos de super heróis japoneses, como o Jaspion ou Changeman. A emoção que eu tinha ao ver os gigantes daqueles programas infantis em conflito, que hoje me lembram os gigantes magistralmente pintados por Goya, de certa forma me acompanham até os dias de hoje. Sempre tento passar este sentimento aos trabalhos que faço.”
Como eu, Hugo Paiva faz parte do movimento dos Urban Sketchers brasileiros e sai para desenhar nas ruas de São Paulo, ou sozinho, ou unido ao nosso grupo que se reúne mensalmente em algum canto de São Paulo para desenhar. E acrescenta: “Apesar de ter feito alguns desenhos e croquis durante os exercícios propostos pela faculdade, foi no ano de 2010 que comecei a realizar essa atividade de uma forma mais sistematizada. Frequento o ateliê do pintor Mauricio Takiguthi há algum tempo, e durante as conversas nas aulas, surgiu a ideia de sair e desenhar pelas ruas. O arquiteto Eduardo Bajzek, também aluno do Takiguthi, já tinha experiência em fazer registros urbanos e me passou muito do que eu atualmente sei. Após alguns encontros, os desenhos começaram a se suceder de forma natural.”Ele diz que resolveu seguir pela carreira da Arquitetura por causa de seu interesse relacionado aos edifícios que, desde sua infância, o impressionavam pela grandiosidade e imponência. “Porém, apesar de ter em mente a responsabilidade social que temos como profissionais dessa área, como o problema latente de moradias, ou mesmo o crescimento desordenado de nossas cidades a cada dia mais doentes, acabei me reaproximando de questões mais relacionadas ao desenho e à percepção da imagem da cidade”, ele diz.
Nessa relação com outros artistas, Hugo considera muito importante essa troca de experiências, as possibilidades de diálogo que se abrem. “Sair pelas ruas e desenhar muda de sentido a cada momento. Mas basicamente, o prazer está em, através das ferramentas do desenho, traduzir os sentimentos dos lugares, além do desafio de registrar a dança das luzes no ambiente urbano.”
Hugo acrescenta que o ato de desenhar na cidade “nos coloca na condição de estrangeiros ao nos recortarmos da realidade” e que fazer isso em cidades diferentes “nos coloca duplamente nessa situação”. Ele cita o escritor algeriano Albert Camus que disse que isso “amplifica nossa percepção, faz com que observemos as coisas de uma forma muito mais intensa. Assim como Eugène Delacroix – continua Hugo – que viu em Marrocos muitos motivos dos quadros que viria a pintar, desenhar em outras cidades nos traz a experiências muito intensas”.
João Pinheiro
O terceiro artista que escolhi para entrevistar sobre o tema é o ilustrador João Pinheiro. Sua história de vida, sua formação, seu caminho como desenhista, é diferente dos dois artistas anteriores, mas o desejo que o move é o mesmo que nos move a todos os que gostamos de registrar aquilo que vemos em nossas cidades.
João Pinheiro tem 31 anos e mora na Zona Leste de São Paulo. “Até os meus 15 anos esse foi o meu mundo conhecido, minha Macondo, onde vi e aprendi a maior parte do que sei da vidinha da gente”, diz ele.
Desde criança, João se interessou pelos desenhos das revistas em quadrinhos: “desenhava em folhas de sulfite, direto com caneta Bic, sem esboço, e depois colava as folhas e fazia a capa com cartolina”, conta ele. Aos 13 anos se matriculou em dois cursos na Oficina Cultural Alfredo Volpi, que fica no bairro de Itaquera, que “felizmente funciona até hoje”. Naquela época, 1994, ele começou a aprender os fundamentos do desenho e da pintura: anatomia, perspectiva, movimento e também a escrever roteiros e todo processo de criação de uma história em quadrinhos.
Foi através do professor de pintura, Jair Glass, que João Pinheiro conheceu a história do pintor Alfredo Volpi. “Na época, lembro que não gostei muito das suas pinturas, mas fiquei encantado com a sua história. Parecia um romance. Um operário que virou pintor. Um pintor de paredes que pintou sua primeira obra de arte numa caixa de charutos e que mais tarde seria consagrado com o prêmio de melhor pintor nacional na segunda Bienal de São Paulo em 1953. Uma bela história. Depois de ouvi-la, pensei: ‘Quando crescer eu quero ser pintor ou desenhista ou algo mais ou menos por aí. Enfim, sei que quero trabalhar com desenho’”.
Mas sua primeira experiência com desenho de observação na rua aconteceu quando o professor o levou para desenhar uma igreja numa ruazinha perto da oficina. Eles eram 15 alunos. E João diz que esse “foi um dos dias mais felizes da minha vida e a primeira vez que fiz um desenho de observação na rua”.
Aos 19 anos, João Pinheiro ingressou na Faculdade Paulista de Artes para cursar Artes Plásticas e voltou a fazer desenhos de observação diariamente. Seu caderno de desenho, a partir de então, nunca mais saiu de sua mochila.
Inicialmente ele desenhava como exercício, fazia esboços, anotava ideias que mais tarde pudessem ser utilizadas em pinturas ou ilustrações. “Com o tempo, depois de preencher alguns cadernos, explorar novos temas, percebi que os desenhos que eu fazia de observação tinham evoluído, meu traço tinha melhorado e eu tinha tomado gosto por observar”, acrescenta. E conta que atualmente seu trabalho pessoal está concentrado, quase que em sua totalidade, nos cadernos e nos desenhos de observação.
E afirma que o desenho de observação direto nas ruas, para ele “significa tudo o que aprendi até hoje, minha melhor escola”. E completa dizendo que sabia de antemão que tinha descoberto um caminho e não um fim, “porque o desenho urbano não tem fim”. Através da observação da cidade João Pinheiro diz que aprendeu muito, mas também viu com isso que há muito ainda o que aprender, sempre.
João Pinheiro tem predileção por desenhar pessoas no metrô, nos ônibus, assim como a arquitetura antiga e excêntrica da cidade, os postes elétricos, as árvores. “Gosto, principalmente, dos locais não turísticos, como periferias, locais abandonados e deteriorados pelo tempo”, complementa.
Essa ideia de carregar um caderno de desenho para onde quer que se vá, de desenhar nele e anotar ideias que surgem em plena área pública é uma ideia muito bonita, diz João. “Fico contente em saber que tantas pessoas hoje em dia compartilham dessa minha paixão, aliás, um número cada vez maior”.
E se pergunta: “O que essas pessoas estão fazendo? Registrando suas vidas? Tentando ver além da camada grosseira da nossa percepção comum? Registrando seu tempo? Anotando lembranças? Treinando o seu desenho? Criando arquivos de paisagens na mente? Transformando o olhar para as futuras gerações? Certamente tudo isso e muito mais.”
Assim como para Hugo Paiva, João Pinheiro diz que desenhar o cotidiano é um “exercício de sentir-me um estrangeiro em minha própria terra e com isso conseguir ver as coisas cotidianas por outro prisma, completamente novo, além do superficialmente conhecido.” Quando se desenha algo que se vê diariamente pelo caminho, sejam pessoas ou lugares conhecidos, é como se os estivesse vendo pela primeira vez, é como se começasse a entendê-los. E João aponta que essa prática do desenho torna a pessoa cada vez mais criativa, lembrando-se do que disse o arquiteto e paisagista James Richards: “Não há melhor maneira de alimentar a criatividade do que desenhar”.
Esse universo do desenhista das ruas e cidades é parte do grande universo da arte, que mobiliza as pessoas há séculos. João Pinheiro lembrou uma frase do diretor de cinema russo Andrei Tarkovski que escreveu em seu livro Esculpindo o tempo: “De qualquer modo, fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte – a menos, por certo, que ela seja dirigida ao ‘consumidor’ como se fosse uma mercadoria – é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão.”
João Pinheiro é o autor, roteirista e ilustrador, da HQ Kerouak, publicada em 2011 pela Devir Editora, além de diversos livros de ilustração infantil, entre os quais o mais recente: uma adaptação do conto O Espelho de Machado de Assis para a linguagem dos quadrinhos, com roteiro do poeta e escritor Jeosafá Gonçalves.
Desenho de João Pinheiro, uma rua da zona leste de São Paulo
Para saber mais:
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