sábado, 2 de fevereiro de 2013

Um estudo clássico sobre 1964


Um estudo clássico sobre 1964

ditadura
Num ensaio breve, porém preciso, jovem Wanderey Guilherme dos Santos previu, dois anos antes, que oligarquias não seriam capazes de conviver com reformas de base — e, para impedi-las atingiriam democracia
Por Luis Nassif, em seu blog
Em 1962, Wanderley Guilherme dos Santos – o mais importante cientista político brasileiro vivo – produziu um texto clássico, prevendo o golpe que ocorreria dois anos depois. Com 52 páginas, o texto “Quem dará o golpe no Brasil” já revelava, no jovem Wanderley, as qualidades que se consolidariam no Wanderley adulto: a capacidade de enxergar a realidade sob diversos ângulos e, dentro de sua complexidade, identificar os fatores mais relevantes.
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O texto destinava-se à “vanguarda das forças populares”, seja lá isso o que fosse, e buscava  definir uma estratégia contra o golpe que se avizinhava. Valia-se de uma linguagem carbonária radical para passar uma mensagem acauteladora: não existe saída fora da democracia e da organização social.
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O trabalho inicia identificando os golpistas. Focava, especialmente, Carlos Lacerda.
Depois, as contradições intrínsecas ao capitalismo, que acabam levando aos conflitos políticos.
A dinâmica do capitalismo global – sistema no qual o Brasil se inseria – consiste em consagrar o controle da minoria sobre o Estado, definindo leis e procedimentos que, aumentando a eficácia da economia, garantissem os ganhos do capital.
Dizia ele: tanto no regime democrático como na ditadura, o governo representa as minorias que detêm a influência política e econômica. O ambiente ideal é a democracia com suas leis restritivas, explicava no trabalho.
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No entanto, o desenvolvimento cria suas próprias demandas, abre espaço para uma organização mais efetiva dos trabalhadores, assim como para o aumento das suas demandas.
Mesmo com todos os impedimentos legais – na época não se permitia voto para analfabetos nem se regulamentava o direito de greve – havia uma tendência irreversível de aumento do espaço de novos atores políticos (aliás, fenômeno de toda  democracia identificado desde os estudos pioneiros sobre o tema). E, aí, surgiam as resistências de alguns setores.
Quando o governo – e as leis vigentes – são incapazes de administrar os conflitos, ou impedir o aumento da espaço político das chamadas forças populares, apela-se para o golpe.
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Na avaliação de Wanderley, o golpe em gestação era basicamente civil. E seria viável devido à disfuncionalidade do governo Goulart.
Até seria possível a participação dos militares, já que as Forças Armadas participam da fase final de todo golpe. Mas dificilmente seria uma golpe militar – como parte dos observadores supunham, dado o histórico das últimas décadas. Por golpe militar ele entendia a ocupação dos principais cargos da administração por militares.
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Eram várias as razões:
1. O Brasil pertencia à zona de influência dos Estados Unidos. Enquanto pertencesse ao sistema capitalista, não haveria riscos de intervenção militar. E aí, Wanderley alertava para os riscos de uma prática temerária: a expropriação da empresas internacionais, iniciada pouco antes por Leonel Brizola, quando governador do Rio Grande do Sul.
2. A própria heterogeneidade das Forças Armadas. Ao contrário da Argentina, explicava ele, as Forças Armadas são constituídas por representantes da classe média e, como tal, sujeitas à mesma heterogeneidade de salários e de visões de mundo.
Os golpes de esquerda – 1
Essa mesma heterogeneidade ele observava no que chamava de “forças da burguesia”. Havia interesses conflitantes entre burguesia industrial, agrícola etc. Enquanto fosse mantida a heterogeneidade, não haveria risco de golpe. O golpe só prosperaria se houvesse um fator uniformizador das expectativas, dizia Wanderley. Como, por exemplo, o risco de um “golpe de esquerda”. No texto, ele demonstrava essa impossibilidade.
Os golpes de esquerda – 2
Golpes são sempre imprevistos e comportam traições. Então, só podem ser conduzidos por minorias que utilizam o povo apenas para convalidar socialmente suas manobras. As verdadeiras conquistas se dão no dia a dia, na construção de uma base social, em ambiente democrático, dizia ele. Ao mencionar a impossibilidade do golpe de esquerda, Wanderley tentava alertar para a imprudência de aventuras populistas.
Os golpes de esquerda – 3
É importante esse ponto, porque conflitaria, mais adiante, com as estratégias de resistência tentadas por Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e os grupos da luta armada.
“Não há golpe sem traição (…)  Precisamente por isto o poder conquistado pelo golpe está inevitavelmente condenado a ser perdido, mais cedo ou mais tarde, enquanto as conquistas reais do povo são historicamente irreversíveis”.
O antídoto para o golpe
Segundo Wanderley, a grande disputa se daria na classe média, nos setores até então neutros. E o melhor antídoto seria informar a opinião pública sobre a legitimidade das reformas de base para o aprimoramento do país (tarefa impossível devido à radicalização na mídia e no governo). Por exemplo, o instituto do latifúndio representava o que de mais atrasado havia para o país, dificultando a produção de alimentos e produzindo crises periódicas de abastecimento.
Recomendações ignoradas
Nos anos seguintes, o governo Jango praticamente rompeu com o sistema capitalista mundial, ao atropelar negociações em curso com o Clube de Paris. O episódio resultou na demissão do Ministro da Fazenda Walther Moreira Salles, até então o grande avalista do governo junto à comunidade econômica mundial. Seguiram-se manifestações de rua crescentes, cujo único resultado prático foi fortalecer o discurso golpista.
O golpe militar
Veio 1964. Apesar da eleição do Marechal Castelo Branco, foi um golpe eminentemente civil. A reação dos destituídos, o fantasma da revolução cubana, o início da luta armada e a desmoralização das instituições políticas – pelos próprios conspiradores civis – finalmente criou o discurso legitimador para que o golpe civil se transformasse em golpe militar. Lacerda foi jogado fora, ao lado de todas as lideranças civis da época.

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