O Projeto de Lei do novo plano diretor de São Paulo foi entregue hoje pelo prefeito Fernando Haddad à Câmara Municipal. A partir de agora, terá início uma nova etapa de debates públicos até o projeto ser votado. Uma das propostas urbanísticas centrais do plano é adensar com moradias e usos mistos as áreas em volta dos corredores de transporte público de alta e média capacidade – metrô, trem, VLT, monotrilho e corredores exclusivos de ônibus – e no entorno dos grandes vales dos rios Tietê e Tamanduateí.
Mas o que significa adensar? Historicamente, tanto em São Paulo como em outras cidades brasileiras, falar em “adensamento” é permitir a verticalização, ou seja, a construção de edifícios. Aliás, a idéia de adensar o entorno de corredores de transporte público tem como referência a experiência de Curitiba, que de fato intensificou a densidade construtiva ao longo dos corredores de ônibus. Mas hoje já sabemos que na capital paranaense muitos metros quadrados de área foram construídos nesses corredores, muitas vezes, porém, com apartamentos enormes e muitas vagas de garagem, atendendo uma população que simplesmente não usa o transporte público.
Portanto, é preciso muita atenção e cuidado com essa proposta. O conceito é de fato interessante, mas para que em São Paulo possamos atingir os objetivos que estão sendo colocados são necessários mecanismos que impeçam que aqui se repita o que aconteceu em Curitiba. E isso está nos instrumentos, nos detalhes. É preciso, por exemplo, limitar drasticamente a construção de edifícios com vagas de garagem. O novo plano propõe que a construção de até uma vaga de garagem não seja computável na área construída, mas autoriza a construção de mais vagas mediante pagamento de outorga onerosa. A proposta avança em relação à situação atual, que obriga a construção de vagas em qualquer caso, sem computá-las na área construída; mas, na prática, mantém a possibilidade de construir apartamentos com muitas vagas de garagem.
Outra forma de transformar “adensamento construtivo” em “densidade de gente” é limitar o tamanho máximo dos apartamentos. O novo plano apresenta um mecanismo interessante desenhado para esta finalidade que é a cota máxima de terreno por unidade. Essa cota limita o tamanho máximo de área construída por apartamento, permitindo unidades de no máximo 100 m² de área. Mesmo assim, nada garante que a população de mais baixa renda, que mais usa o transporte público e mais precisa de moradias bem localizadas, conseguirá de fato residir nestes locais. Por isso é mais do que justa a reivindicação dos movimentos de moradia presentes em massa hoje à câmara municipal: instrumentos como a cota de solidariedade e o estabelecimento de zonas especiais de interesse social nestas áreas são necessários para que estas sejam áreas destinadas às maiorias, já que, em São Paulo, 60% dos domicílios contam com menos de 10 salários mínimos de renda familiar mensal e, 38%, menos que cinco salários (dados do censo de 2000)… Como se pode perceber, essa é uma questão que precisa ser examinada com cuidado se quisermos de fato democratizar a cidade e não apenas promover uma enorme ampliação de área construída.
Além disso, uma coisa é a orientação geral de adensar as áreas próximas aos eixos de transporte público, outra é como isso se aplica concretamente a territórios muito distintos que os eixos de transporte vão atravessando: algumas áreas são mais vulneráveis do ponto de vista ambiental, outras requerem maior atenção em relação à proteção da paisagem, apenas para citar alguns exemplos. Então é fundamental que seja feito um ajuste fino para que essa diretriz genérica não se sobreponha a características particulares de cada uma das áreas por onde passam os eixos de transporte público.
É importante lembrar também que na proposta do plano, entre as malhas mais adensadas e com maior misturas de usos estarão zonas mais exclusivamente residenciais, e é importante que o modelo de ocupação dessas zonas também possa variar, com diversidade de tipos, para que não tenhamos apenas zonas residenciais de grandes terrenos para as classes altas, mas que possamos ter também zonas exclusivamente residenciais de sobradinhos geminados, por exemplo…
Este plano aponta para um conceito novo, mas, como diz o ditado “o diabo mora nos detalhes”… Em legislação urbanística, mais ainda! A proposta merece ser aprofundada e amadurecida na Câmara, em mais uma rodada de debates públicos. Devemos ficar atentos à discussão que será feita na Câmara Municipal para que o processo aconteça de forma aberta e transparente, a fim de evitar que sejam atendidos interesses velados e agendas “misteriosas”. Está nas mãos da comissão de política urbana da Câmara conduzir esse processo da melhor forma e construir um substitutivo que de fato aperfeiçoe e avance (e não recue!) a partir do projeto de lei para que tenhamos de fato mudanças e não mais do mesmo…
Raquel é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.
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