Estava em Belfast, capital da Irlanda do Norte, em plena missão como relatora da ONU para o direito à moradia, chocada com os muros que separam as comunidades católicas das protestantes no norte da cidade (denominados --pasmem!-- de "peace lines" --ou linhas da paz), quando recebi o convite da Folha para publicar uma coluna quinzenal em "Cotidiano".
Raquel Rolnik
Raquel Rolnik
Aceitei imediatamente, reconhecendo o privilégio de poder abrir mais um espaço de reflexão sobre as cidades neste momento de nossa trajetória urbana. Mas por que este momento é particularmente especial?
Embora a precariedade de nosso urbanismo e a má qualidade dos espaços e serviços públicos em nossas cidades não sejam absolutamente novidade, sempre me perguntei por que esse tema não fazia parte da agenda de debate público do país.
Tomemos como exemplo o tema da mobilidade, que hoje ocupa os corações e mentes de nossas cidades, funcionando como uma espécie de expressão máxima de nosso mal-estar urbano.
Entretanto, parece que alguma coisa mudou nesse cenário. Será que foi necessário generalizar a imobilidade para o tema do transporte público ganhar centralidade e relevância? Teriam sido os velhos carros da "nova classe média" e a multidão de motoqueiros disputando o espaço dos automóveis nas ruas que inverteram essa equação? Ou estaríamos diante da crise de um modelo de mobilidade insustentável para as dimensões metropolitanas?
A migração pragmática para o transporte público e as bicicleta por parte dos proprietários de veículos --fartos de ficarem presos em congestionamentos-- e a mudança cultural que isso implica na relação com a cidade teriam também desempenhado um papel?
E movimentos como o passe livre e as ocupações (de prédios vazios, de espaços públicos) que, embora invisíveis para o grande público e reprimidos pela polícia, não pararam de crescer na última década? E a visibilidade crescente das relações promíscuas entre empresas e estado?
Perguntas como essas me animam a escrever esta coluna: pensar a cidade e seus desafios, trazer referências de experiências urbanas de outros países, fomentar o debate de políticas e planos, enfim, alimentar esperanças de utopias possíveis. De cidades justas e belas em nosso país.
Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada
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