O genoma de um menino pequeno enterrado em Mal'ta, perto do Lago Baikal no leste da Sibéria, há 24 mil anos apresentou duas surpresas para os antropólogos.
Nicholas Wade
Nicholas Wade
A primeira é que o DNA do menino combina com o dos europeus ocidentais, mostrando que durante a última Era Glacial, povos da Europa avançaram mais ao leste pela Eurásia do que antes se supunha. Apesar de não ter restado nada da pele e cabelo do menino de Mal'ta, seus genes sugerem que ele tinha cabelo castanho, olhos castanhos e pele sardenta.
A segunda surpresa é que seu DNA também combina com uma grande parcela --cerca de 25%-- do DNA dos atuais nativo-americanos. Há muito tempo se supunha que as primeiras pessoas a chegarem às Américas eram descendentes das populações siberianas ligadas aos asiáticos orientais. Agora parece que pode ter ocorrido uma mistura entre os europeus ocidentais que chegaram à Sibéria e uma população asiática oriental.
O menino de Mal'ta tinha entre 3 e 4 anos e foi enterrado sob uma laje vestindo um diadema de marfim, um colar de contas e um pingente em forma de pássaro. Em outros locais no mesmo sítio, cerca de 30 estatuetas de Vênus foram encontradas, do tipo produzido pelas culturas europeias do Paleolítico Superior. Os restos mortais e vestígios foram escavados por arqueólogos russos ao longo de um período de 20 anos encerrado em 1958 e guardados em museus em São Petersburgo, Rússia.
Eles permaneceram ali por aproximadamente 50 anos até serem examinados por uma equipe liderada pelo dr. Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague. Willerslev, um especialista na análise de DNA antigo, buscava entender o povoamento das Américas buscando por possíveis fontes de população na Sibéria. Ele extraiu DNA do osso tirado do braço da criança, na esperança de encontrar uma ancestralidade nos povos asiáticos orientais dos quais sabe-se que os nativo-americanos são descendentes.
Mas os primeiros resultados foram decepcionantes. O DNA mitocondrial do menino pertencia à linhagem conhecida como U, que é normalmente encontrada entre os humanos modernos que primeiro entraram na Europa há cerca de 44 mil anos. As linhagens encontradas entre os nativo-americanos são aquelas designadas como A, B. C, D e X, de modo que a linhagem U apontava para contaminação do osso pelos arqueólogos ou curadores do museu que o manusearam, um problema comum em projetos de DNA antigo.
"O estudo foi colocado em marcha lenta por quase um ano porque eu achava que tudo estava contaminado", disse Willerslev.
Mesmo assim sua equipe passou a analisar o genoma nuclear, que contém a parte principal da herança humana. Eles ficaram surpresos quando o genoma nuclear também apresentou ancestralidade parcial europeia. Examinando o genoma de uma segunda sepultura siberiana, a de um adulto que morreu há cerca de 17 mil anos, eles encontraram os mesmos marcadores de origem europeia. Juntos, os dois genomas indicam que os descendentes dos humanos modernos que entraram na Europa se espalharam muito mais ao leste pela Eurásia do que se supunha e ocuparam a Sibéria durante um período extremamente frio, que se iniciou há 20 mil anos conhecido como Último Máximo Glacial.
A outra surpresa do genoma do menino de Mal'ta foi que combinava tanto com o dos europeus quanto dos nativo-americanos, mas não com os dos asiáticos orientais. A interpretação de Willerslev foi de que os ancestrais dos nativo-americanos já tinham se separado da população asiática oriental quando cruzaram com a população da cultura de Mal'ta, e que essa população misturada então atravessou pela ponte terrestre de Bering que então existia entre a Sibéria e o Alasca, transformando-se na população fundadora dos nativo-americanos.
"Nós estimamos que 14% a 38% da ancestralidade nativo-americana pode ter se originado do fluxo genético dessa população ancestral", ele e colegas escreveram em um artigo publicado na quarta-feira na revista "Nature".
Uma contribuição europeia à ancestralidade nativo-americana poderia explicar dois antigos enigmas sobre a origem dos povos. Um é que muitos crânios antigos de nativo-americanos, incluindo o do conhecido homem de Kennewick, parecem muito diferentes dos da população atual. Outro é que uma das cinco linhagens de DNA mitocondrial encontradas nos nativo-americanos, a linhagem conhecida como X, também ocorre nos europeus. Uma explicação é a de que europeus conseguiram cruzar o Atlântico em pequenos barcos há cerca de 20 mil anos e se juntaram aos nativo-americanos da Sibéria.
Willerslev acha que é mais provável que os portadores europeus da linhagem X tenham migrado pela Sibéria com os ancestrais da cultura Mal'ta e se juntado a eles na viagem pela ponte terrestre de Bering.
Ele disse que sua descoberta não soluciona a questão muito disputada de quando as Américas foram ocupadas. Os arqueólogos há muito acreditam que povos da cultura Clovis, datada de 13 mil anos atrás, foram os primeiros americanos, mas várias descobertas recentes apontam para uma data anterior. "Nós precisamos de mais sequenciamento de genomas antigos para tratar dessa questão", disse Willerslev.
O povo Mal'ta construía casas parcialmente subterrâneas, com paredes de ossos e coberturas de chifres de renas. A cultura deles se distingue por seus muitos objetos de arte e sua sobrevivência em um clima impiedoso.
Willerslev apresentou as descobertas de sua equipe em uma conferência no mês passado em Santa Fé, sobre as origens dos nativo-americanos.
"Houve muita surpresa e algum ceticismo, como costuma acontecer na ciência diante de novas descobertas", disse o dr. Dennis H. O'Rourke, um antropólogo da Universidade de Utah que trabalha com DNA antigo e o Ártico norte-americano.
O'Rourke disse que o resultado provocará uma busca por mais DNA antigo da Sibéria visando fornecer um contexto melhor para a reconstrução de Willerslev das origens americanas. "Eu acho que é um resultado muito importante e realmente interessante, mas a partir de um único indivíduo", ele disse.
Theodore G. Schurr, um antropólogo da Universidade da Pensilvânia, disse que Willerslev forneceu uma nova perspectiva interessante sobre as origens dos nativo-americanos que ajuda a explicar a presença da linhagem mitocondrial X na América do Norte e expande o entendimento da história da população na Sibéria. Mas o momento e local da mistura da população do Oriente e do Ocidente aduzidos por Willerslev ainda não estão claros, ele disse.
Uma característica não explicada da mistura é que o povo de Mal'ta não passou seu DNA mitocondrial porque a linhagem U é desconhecida entre os nativo-americanos. Como o DNA mitocondrial é passado apenas pela linhagem feminina, a população ancestral dos nativo-americanos pode ter se formado por homens da cultura Mal'ta que adquiriram esposas asiáticas orientais.
Willerslev considera esse um cenário possível, outro sendo que as linhagens mitocondriais podem ser facilmente perdidas por meio de derivação genética, a mudança aleatória dos padrões de DNA ao longo das gerações.
"É preciso ter cuidado na criação de cenários geográficos detalhados a esta altura", disse Willerslev.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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