segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Vandalismo

"Através deste ensaio eu ofereço minha mais sincera gratidão às pessoas que desfiguraram a dura e feia construção de Brecheret"

Jimmie Durham
Quando ouvi essa notícia, meu coração, minha mente, meu espírito se elevou. Em 2010 eu participei da Bienal de São Paulo e todos os dias tinha de passar pelo que é pra mim, para nós, essa horrível monstruosidade. Muitas vezes imaginei como seria bom se um extenso trem de carga descarrilasse, por acidente, e colidisse com este monumento ao homicídio. Este é um desses realemente muitos, vários, monumentos; como se os cidadãos necessitassem ser constantemente lembrados de sua história, de sua culpa.O genocídio é comemorado nas Américas. É claro que é negado, justificado e explicado. Mas ao mesmo tempo é celebrado. Os bravos matadores que abriram caminho pela natureza selvagem. Assassinos, como foram nomeados recente e apropriadamente pelos indígenas que picharam o grande Monumento às Bandeiras de Victor Brechet, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, em outubro de 2013.
Através deste ensaio eu ofereço minha mais sincera gratidão às pessoas que desfiguraram a dura e feia construção de Brecheret.
Roosevelt
Em Nova York há uma estátua de Theodore Roosevelt cavalgando triunfalmente um cavalo. Atrás dele estão um homen afro-americano e um indígena americano, caminhando humildemente, o que dà a entender muito mais que são sua propriedade do que apenas seguem a seu lado. Este monumento saúda o público à frente do Museu de História Nacional. Nos anos 60, indígenas americanos, amigos meus, jogaram baldes de tinta vermelha nesta escultura mais de uma vez; um gesto simbólico que não mudou as atitudes do homem branco, mas que nos deu coragem.
ONU
Alguns anos mais tarde, nos anos 70, eu me mudei para Nova York para trabalhar na ONU, para o Conselho Internacional dos Tratados Indígenas. Umas das maiores prioridades do orgão era organizar uma conferência sobre os indígenas nas Américas, no quartel-general da ONU, em Genebra. Era necessário falar com lideranças indígenas no Canadá, México, Guatemala, Nicarágua, Panamá, Colômbia, Venezuela, Equador, Chile, Peru, Bolívia e Argentina. Contactar qualquer um no Brasil se provou impossível. Os povos indígenas do Brasil não tinham permissão para participar de conferências internacionais... e sequer formar organizações nacionais. Agências governamentais, antropologistas e missionários da igreja falaram em nome deles, agiram em nome deles.
Brasil
"Mais importante, e nunca levado em conta (...) é o subtexto óbvio: está sendo dito que o Brasil não consegue proteger as populações indígenas do próprio Brasil"
Mesmo neste novo século, as populações indígenas no Brasil ainda não foram plenamente reconhecidas como humanas pela Constituição. Esta situação, que deveria ser vista como intolerável, é no máximo justificada como boa para os indígenas, ao protegê-los do sistema legal. Aqueles que apresentam desculpas parecem não perceber que isso nunca funcionou; indígenas são cotidianamente perseguidos, expulsos de suas terras e mortos. Mais importante, e nunca levado em conta (exceto, talvez, com um certo orgulho perverso que se encontra também entre os texanos) é o subtexto óbvio, que é o texto verdadeiro: está sendo dito que o Brasil não consegue proteger as populações indígenas do próprio Brasil.
O Brasil não consegue proteger as populações indígenas do Brasil. Neste caso, o que fazer? Se os povos indígenas pegassem nas mais avançadas armas e reagissem de forma metódica, com certeza o Brasil iria retaliar com vinganca. Em outras palavras, o Brasil iria proteger-se dos índios.
Genocídio
Se as Américas fossem o lar de racionais e normais colonos ex-europeus, como se pretendem, a difícil situação poderia ser levada a uma espécie de conselho de nações americanas. Mesmo com o espantoso desenvolvimento em alguns dos países da América do Sul, tal organização não tomaria ação alguma em favor dos direitos dos povos indígenas. No século XXI ainda vivemos em países primitivos, triunfalistas e irracionais, espólios do genocídio.
Eu consigo imaginar brasileiros presunçosos sentados com susa cervejas: um deles diz “você não pode chamar de genocídio porque o genocídio, como crime, é um ato deliberado. O que acontece no Brasil é apenas pura falta de jeito. Ninguém nunca decidiu sair para cometer genocídio contra os povos indígenas”. Exceto que ele diria tudo isso no passado. Eu acho que ele diria que o que aconteceu está feito. Foi muito triste mas agora devemos seguir em frente.
Por muitos anos eu tenho dito às pessoas que nós não estamos no passado, nossos problemas com os países americanos onde estamos não estão no passado. O genocídio da população indígena das Américas não está no passado.
Convenção
"O prefeito de São Paulo deveria dar um prêmio – e latinhas de spray – ao artista que interveio no monumento estúpido de Victor Brecheret"
A ONU escreveu uma convenção contra o genocídio após a Segunda Guerra Mundial. A convenção é explícita e detalhada. Após serem redigidas, as convenções da ONU são enviadas às nações-membros para ratificação. Naquela época, os EUA não haviam ratificado a convenção da ONU contra o genocídio.
Em 1977 tivemos acesso a um documento com fatos e evidências sólidas do genocídio contra os povos indígenas dos EUA, ainda em curso, pronto para ser apresentado na ONU. Nós não exageramos ou deturpamos o caso.
Aposto que o Brasil também não ratificou a convenção contra o genocídio da ONU. E aposto, tenha ele o feito ou não, que se os povos indígenas levassem o seu caso à ONU, muitos brasileiros se sentiriam insultados. Muitos se sentiriam traídos.
Há nas Américas dois países gigantes que criaram em maior quantidade narrativas nacionais acerca de seus “primeiros dias”; os EUA e o Brasil. Os mitos que eles criaram dos bandeirantes, pioneiros e cowboys operam os motores que movem suas culturas. Por essa razão qualquer desafio a qualquer parte do mito é respondido com uma fúria infantil. Não obstante, as histórias dos pioneiros e bandeirantes estão destrutivamente erradas.
Bandeirantes
Os bandeirantes escravizaram, estupraram e mataram populações indígenas, roubaram suas terras e fizeram monstros de sua própria prole. Se o fizeram com uma alegre cordialidade, tanto pior, muito mais horrível. Se eles, à sua época, se sentiram inocentes – muito mais horrível. Mas seus admiradores contemporâneos não são inocentes. A estupidez nunca é inocente.
Os bandeirantes não são os fundadores de São Paulo e nem do Brasil. Eles são os fundadores da péssima situação no Brasil  na qual os negros vivem. E na qual, posteriormente, europeus pobres, como ucranianos e poloneses vivem. E muito certamente na qual as populações indígenas tentam viver; viver pobremente em um País que celebra o seu genocídio.
O prefeito de São Paulo deveria dar um prêmio – e latinhas de spray – ao artista que interveio no monumento estúpido de Victor Brecheret.
Texto original, em ingles: "Vandalism". Tradução de Rafael Zanvettor.

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