terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O direito à violência - Lincoln Secco



As jornadas de junho de 2013 no Brasil trouxeram à baila o discurso governamental 
contra as manifestações violentas.

Lincoln Secco

O direito à violência

Note-se que nas falas de políticos profissionais o substantivo “manifestações” é aprovado e o adjetivo “violentas” recusado. E isto é uma novidade, como veremos ao final[1].
Durante o terrorismo de Estado (1964-1984) os governos proibiam as manifestações em si, embora elas ocorressem. Depois da transição que a rigor se estendeu de 1984 a 1994, um novo padrão de dominação se estabeleceu, mas durou pouco: o neoliberal.
De acordo com uma excelente análise de Pablo Dávalos a violência deslocou-se do Estado para o mercado e se disseminou o medo do desemprego e do fracasso (sempre pessoal).[2] As relações sociais se basearam na competitividade extrema e o modelo econômico se naturalizou. Assim, no plano político qualquer oposição se tornava irracional.
Todavia, os governos alargaram os direitos democráticos. No Brasil, Fernando Henrique Cardoso fundou um verdadeiro Estado de Direito. Embora usasse a violência contra as greves, não taxava seus adversários de terroristas, mas de “neobobos”. Não acusava os desempregados de vadiagem (como a lei os definia outrora), mas de “inimpregáveis”. E logo seus áulicos esclareciam que ele falava como sociólogo. Era, portanto, um discurso “científico”.
Com o fracasso político do neoliberalismo implantou-se na América Latina novo padrão de dominação política. Dávalos, aqui citado, lembra que Walter Benjamin dizia que só aos sindicatos é concedido um direito à contra-violência legítima: a greve. Lembremos que os patrões não podem fazer o lockout. É que o Estado de Direito funda-se também na violência, porém reserva ao dominado um espaço de resistência dentro da Ordem: a contra-violência legítima.
Os governos lulistas incorporaram avanços sociais. Empregaram no aparelho de Estado representantes de movimentos sociais e partidos de esquerda e excluíram a direita política. Dessa maneira o conflito social foi suprassumido e o conflito político exacerbado. Daí a violência retórica em contraste com medidas que melhoram a vida dos mais pobres sem incomodar os mais ricos.
É que direita e esquerda se combatem. Aquela nas suas casamatas alimentadas durante as ditaduras militares, nomeadamente a mídia; e esta entrincheirada no partido do poder e nos aparatos sindicais e sociais que controla. A violência retorna ao Estado, mas não é mais o Estado de bem estar ou “populista”. Nem mesmo, como afirma Dávalos, o Estado Liberal do século XIX.
O Aparelho Político de Estado é preenchido por um conteúdo “democrático”. No Brasil temos a Comissão da Verdade para apurar crimes da Ditadura, sem puni-los; plenárias oficiais de movimentos sociais que geram políticas públicas; militantes de esquerda em ministérios, desde que não sejam da “área econômica”… E ao contrário do século XIX eles são necessários porque a política se massificou. Isto explica o fim do padrão bipartidário de elite em muitos países latino-americanos e sua substituição por um padrão de três partidos ou mais, sendo um deles composto por forças populares. O PT mimetiza o estado pós-neoliberal e se torna, ele mesmo, lócus de disputas, ainda que jamais seja ameaçado o controle oligárquico dos dirigentes já vinculados ao grande capital.
A explicação que Dávalos dá a este padrão é importante: a forma de acumulação de capital se parece àquela do século XIX a qual Marx denominava jocosamente de “a assim chamada acumulação primitiva”. A questão está mesmo nas dificuldades de valorização do capital dinheiro dentro de suas fronteiras nacionais. Rosa Luxemburgo demonstrou que a história se repete e que a “acumulação primitiva” é parte integrante da reprodução ampliada do capital.
Mas o problema é o controle das matérias primas. Isso “sempre” existiu, é verdade. Mas Marx mostrou que o desenvolvimento da indústria torna a importância das matérias primas e auxiliares cada vez maior. Sob circunstâncias constantes a taxa de lucro das empresas aumenta ou diminui no sentido inverso ao preço das matérias primas. A maquinaria e a ciência aplicada já são controladas pelos países centrais e seu valor se dispersa numa imensa coleção de mercadorias descartáveis como montanhas de baterias e carregadores de celular. A produtividade incrementada do trabalhador o torna capaz de movimentar maior massa de matérias primas.
A parte do capital constante que tende a rebaixar a taxa de lucro é a das matérias primas e auxiliares. Explica-se assim o apetite chinês por aço e soja no Brasil e a nossa “especialização” na produção de commodities. A economia política da violência pós-neoliberal está aí: quando o governo do PT retira de cena os que resistem à construção da hidrelétrica de Belo Monte é porque as empresas estrangeiras ou nacionais que processam matérias primas precisam de energia para baratear o capital constante das empresas do centro que utilizam matérias primas importadas.
Os governos pós-neoliberais têm como função essencial impor a Ordem contra todos os que recusem a máxima valorização do capital dinheiro internacionalizado: quilombolas, indígenas, movimentos de atingidos por barragens e grandes obras de “integração” do território, defensores da Reforma agrária e da produção “orgânica” ou livre de transgênicos, estudantes que lutam pela democracia universitária, movimentos por moradia nos centros urbanos, defensores da democratização do transporte público, críticos de gastos suntuários com olimpíadas e copa do mundo etc.
Aqui voltamos ao início. Os governos “de esquerda” não são contra as manifestações. São contra a sua “violência”. Os que se manifestam fora do roteiro previsível são violentos. Eis que as jornadas de junho de 2013 saíram do roteiro literalmente. Ocuparam espaços da cidade que eram proibidos e, fundamentalmente, se deram fora do controle das “organizações de esquerda”.
Estas haviam conquistado seu direito à contra-violência legítima, mas não precisam usá-lo mais porque foram parcialmente incorporadas pelo Estado. E exatamente por isso recusam o direito de contra-violência legítima aos novíssimos movimentos sociais ou setores da própria esquerda tradicional que se lhes escapam das mãos. A esquerda enredada no poder capitalista não pode cumprir famoso preceito do estrategista chinês Sun Tzu: deixar uma rota de fuga para o adversário. No caso o seu adversário são as ruas. A esquerda prefere punir ou deixar punir (o que é o mesmo para quem está no poder) militantes desarmados que são classificados como bárbaros e terroristas.
O isolamento a que estão sendo condenados os novíssimos movimentos sociais é produto da recusa da contra-violência legítima. No Brasil tivemos uma “Democracia Restringida” (como a chama Dávalos) entre 1946 e 1964. Carlos Marighela chamava este padrão de dominação de “Democracia Racionada”[3]. Nele a repressão física é feita predominantemente “dentro da lei”, embora as forças de segurança recorram também à eliminação física “fora da lei”. Na ditadura Militar ocorria o contrário: a repressão era feita pelos aparatos “ilegais” incrustados no Estado. Mas havia também os inimigos sobreviventes que eram “julgados dentro da lei”. Recordemos que a Ditadura Militar brasileira não admitia a tortura…
O padrão pós-ditatorial não pode acertar contas com a Ditadura porque depende da sobrevivência dos aparatos de segurança daquela época. Nem é preciso acusar pessoas. A elite de esquerda não se sente responsável pelos “exageros” da repressão. Recentemente, a presidenta Dilma Roussef acusou de bárbaros os manifestantes que reagiram a um coronel da Polícia Militar que tentara prender uma jovem e no dia seguinte mandou seus pêsames à família de um jovem assassinado pela mesma polícia militar.
Não é um comportamento dúbio. De fato vivemos num “Estado de Direito”…
No segundo mandato de FHC vivíamos um impasse. A crise internacional e a retomada de protestos sociais ainda que limitados abriam duas alternativas: uma volta ao terrorismo de Estado ou o atendimento de demandas sociais para legitimar uma dominação capaz de manter o padrão de acumulação de capital sem uma ditadura aberta.
A sofisticação da dominação foi possível porque os valores neoliberais continuaram hegemônicos e a “democratização” no Brasil se restringiu ao plano da política eleitoral e dos partidos. Não se estendeu às Forças armadas, aos meios de comunicação, às polícias militarizadas e aos tribunais. Assim era menor o custo político do uso de tribunais em vez das Forças Armadas.
No Brasil a democracia é tão racionada que até dirigentes que foram responsáveis pela consolidação deste padrão de dominação foram sacrificados no altar do Supremo Tribunal Federal. Mas não deveria surpreender o partido que condena “os black blocs” que também seus dirigentes possam ser vítimas de julgamentos injustos.
Obviamente as ações de uns e outros não são iguais. Os resistentes das ruas não se interessam pelo “poder político”. Mas o padrão de repressão é o mesmo.
O que sabemos é que ainda não se forjou nas ruas a estratégia para desmascarar a Democracia Racionada e livrar nossos presos políticos. Recentemente dois alunos da USP (que aliás não faziam parte da ocupação da reitoria) foram presos. Junto com eles também dois ciclistas “por engano”.
Recordo-me que na Greve dos Professores paulistas de 2000 o governador Covas resolveu invadir pessoalmente o acampamento da Praça da República. Depois do tumulto que ele mesmo provocou, ordenou que se prendessem os manifestantes e se exonerassem os detidos. Por erro foram presas pessoas que passavam pela praça e não faziam parte da categoria… Durante o processo a secretaria de educação passou a acusar judicialmente as testemunhas dos professores perseguidos.
Para a nova Ordem eles são criminosos comuns. É que dominação política se deslocou dos quartéis para os tribunais.
Notas
[1] Este texto inédito é a base de minha contribuição para o debate “A Esquerda e a Rua”, IIEP, SP, Dezembro de 2013.
[2] Dávalos, Pablo. “Hacia um nuevo modelo de dominación política: violência y poder en el posneoliberalismo”, Contrapunto, n.1, Montevideo, Dezembro de 2012.
[3] Remeto o leitor ao meu artigo “A democracia racionada” que será publicado no Le Monde Diplomatique Brasil de dezembro de 2013.
Lincoln Secco é um dos autores do livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, com o qual colabora com o texto “As Jornadas de Junho”. Trata-se do primeiro livro impresso inspirado nesses megaprotestos, com textos de autores nacionais e internacionais como Slavoj Žižek, David Harvey, Mike Davis, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Mauro Iasi, Silvia Viana, Ruy Braga, Lincoln Secco, Leonardo Sakamoto, João Alexandre Peschanski, Carlos Vainer, Venício A. de Lima, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. Paulo Arantes e Roberto Schwarz assinam os textos da quarta capa. O livro também conta com um ensaio fotográfico do coletivo Mídia NINJA e ilustrações sobre as manifestações de Laerte, Rafael Grampá, Rafael Coutinho, Fido Nesti, Bruno D’Angelo, João Montanaro e Pirikart, entre outros.

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