As novas relações trabalhistas e sindicais em economias globalizadas, e a formação,
treinamento e profissionalização de forças policiais em um contexto transnacional
são temáticas que integram dois extensos projetos de pesquisa em curso na Unicamp.
À frente dos estudos estão os professores portugueses visitantes Elísio Estanque e Susana Durão.
PAULO CESAR NASCIMENTO
PAULO CESAR NASCIMENTO
Sociólogo e docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), Elísio atua junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e ao Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) do Instituto de Economia (IE). Sua investigação representa a continuidade de colaborações anteriores com acadêmicos brasileiros em questões às quais se dedica há mais de duas décadas em Portugal e permite aproximar os debates em curso na Europa da reflexão que se realiza no Brasil em torno dos mesmos temas.
Antropóloga social e pesquisadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/UL), Susana desenvolve seu trabalho no âmbito do IFCH. Nos últimos anos, tem coordenado uma série de projetos sobre temas associados à organização policial, com especial interesse na pesquisa da segurança e ordem pública, movimentos sociais e culturais, tanto em contextos portugueses como brasileiros. Nestas entrevistas, ambos apresentam seus olhares a respeito de temas que permeiam o conteúdo de suas pesquisas.
Jornal da Unicamp – O senhor tem analisado questões como a recomposição do emprego e a fragilidade do Estado de bem-estar na conjuntura da crise europeia. Que reflexões podem ser feitas sobre essa realidade e o atual momento do Brasil nas áreas trabalhista e social?
Elísio Estanque – No que diz respeito ao que na Europa chamamos o “Estado social”, diria que enquanto no velho continente estamos em clara regressão, no Brasil as coisas evoluíram para melhor desde o início do novo milênio, essencialmente devido aos programas sociais dos governos do PT. Mas, embora reconhecendo todo o potencial do Brasil e sem esquecer a imensidão do seu mercado interno, nem a economia brasileira nem os chamados BRICs podem ser pensados fora do quadro da economia global, na qual os EUA continuam, apesar de tudo, a ter supremacia. A Europa, se conseguir resistir a esta crise sem abdicar do seu projeto democrático e federalista [União Europeia], terá de saber tirar as lições do seu passado, quer do passado colonial quer da sua lógica de “fortaleza” perante os continentes do Hemisfério Sul. Creio que para continuar a ser uma referência para o mundo e para as classes trabalhadoras, a Europa precisa se reinventar tanto no plano político e institucional como no que tange à sua estratégia de desenvolvimento socioeconômico.
No caso de Portugal e de Espanha, por exemplo, entendo que – com ou sem moeda única, com ou sem União Europeia – ganhariam em estreitar e consolidar as relações bilaterais com o Brasil e a América Latina. O Brasil, em concreto, tem um enorme potencial e margem de progressão a requerer um bom diálogo com a Europa, mais do que com os EUA, para enfrentar com sucesso seus desafios. Para mim, os mais urgentes são a consolidação do Estado de direito (uma justiça limpa e eficaz), a requalificação das políticas públicas (sistemas de saúde e de educação públicas de qualidade) e a aposta na inovação científica e tecnológica – na qual os ganhos de produtividade sejam conjugados com a dignificação do trabalho e o combate às desigualdades sociais.
Mas para que tais desígnios sejam consistentes e possam fazer do Brasil um caso exemplar é decisivo que as estratégias de desenvolvimento sejam capazes de enfrentar as poderosas forças – sobretudo econômicas – dispostas a tudo para impedir o triunfo desse projeto e neutralizar o direito da classe trabalhadora brasileira a um estatuto realmente digno, orientada para uma sociedade mais coesa, equilibrada e que ofereça uma melhor qualidade de vida a todos os cidadãos.
É necessário um projeto assentado no equilíbrio entre desenvolvimento industrial e sustentabilidade ambiental. De resto, se concordamos que tal objetivo só pode ser alcançado em democracia, é fundamental que as instituições e o governo percebam que somente com a mobilização e a participação ativa da sociedade civil e dos movimentos sociais poderemos caminhar nesse sentido.
JU – Quais são as principais transformações observadas hoje nas maiores economias relacionadas ao trabalho, ao emprego e à organização da classe trabalhadora? Que fatores, em sua opinião, estão contribuindo para esse novo panorama?
Elísio Estanque – As grandes mudanças que vêm ocorrendo nas últimas décadas têm na sua gênese a mudança paradigmática que começou no início da década de 1980, quando o chamado modelo “fordista” que vigorou nas sociedades ocidentais começou a dar sinais de bloqueio. Esse bloqueio resultou, aliás, dos ataques desferidos pelo modelo monetarista contra o keynesianismo que havia proporcionado o Estado-previdência durante os 30 anos dourados, com todo o conjunto de garantias aos trabalhadores, sobretudo na Europa, inclusive direitos trabalhistas avançados e níveis de renda que permitiram o bom funcionamento de sistemas sociais (em especial, educação, saúde e previdência) e o acesso de amplas camadas da classe trabalhadora a padrões de vida típicos de classe média.
Ora, esses progressos e avanços civilizacionais têm vindo a ser desmantelados na maioria dos países da União Europeia, enquanto em outras regiões como os EUA são solapados e barrados pelas forças conservadoras e os grandes interesses econômicos privados que passaram a dominar as instituições democráticas e os próprios governos em diversos continentes. Ao longo das últimas três décadas, o capitalismo global, alimentado por um novo impulso mercantilista e financista, depois de se libertar da “alternativa socialista” (com a implosão do modelo soviético) e perante a crescente institucionalização do sindicalismo, pôs fim aos acordos do pós-guerra (Bretton Woods) e, apoiado nas novas tecnologias da informação e na retórica da globalização, da flexibilidade e da competitividade, as lideranças e instituições mais poderosas consolidaram o novo modelo liberal com base em duas premissas fundamentais: a primazia do capitalismo financeiro e especulativo, alimentando o lucro fácil e rápido; e a abertura global à mobilidade de produtos e de capitais na perseguição da mão de obra barata, abandonando qualquer sentido ético e de obrigação para com as classes trabalhadoras e as instituições democráticas – modelo consumado pelo “Consenso de Washington”. Com isso, o trabalho assalariado sofreu um processo de fragmentação generalizado, a flexibilização da produção (a empresa “enxuta”) e a multiplicação dos vínculos e formas precárias de emprego enfraqueceram drasticamente o campo sindical e a capacidade de luta e negociação dos trabalhadores do mundo inteiro.
Entretanto, enquanto nos países asiáticos e na América Latina as classes trabalhadoras alimentavam o revigoramento do novo capitalismo global à custa de seus salários miseráveis (embora melhorando ligeiramente as suas condições de vida), os trabalhadores da Europa ocidental passam a debater-se com altas taxas de desemprego, com a progressiva perde de direitos e de proteção social, o congelamento de carreiras e os cortes sucessivos de seus salários e pensões de aposentadoria; isto, para além de uma juventude altamente qualificada, mas sem qualquer perspectiva de futuro profissional, como acontece no meu país, onde o desemprego situa-se nos 18% e na camada mais jovem nos 42%, em especial com a intensificação da crise e a tutela dos credores internacionais (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia, que constituem a chamada “troika”) que hoje mandam em Portugal.
JU – Um fenômeno novo observado na forma de representação dos trabalhadores são as redes sindicais em empresas com presença global. O senhor poderia explicar o que são e que desdobramentos poderão ter nas relações trabalhistas e sindicais?
Elísio Estanque – De fato, a globalização das estruturas empresariais deveria ter como contrapartida a internacionalização dos respectivos sindicatos, embora as tendências recentes revelem o contrário. O capital globaliza-se, mas o trabalho fragmenta-se e localiza-se. Mesmo quando se intensificam os fluxos de força de trabalho e os movimentos migratórios na escala global, em geral trata-se de setores muito precarizados de trabalhadores, sem vínculos formais, sem direitos e sem filiação sindical. Esses trabalhadores podem mudar de lugar, porém permanecem prisioneiros de um sistema que os acantona e os explora. Dentro ou fora do seu país ou região são exilados e excluídos que apenas tentam sobreviver.
As corporações transnacionais raramente consentem que os seus assalariados se organizem em redes sindicais transnacionais autônomas para negociar suas condições e seus direitos. Na União Europeia existem os Conselhos Europeus de Empresa (CEEs) criados em 1994 – pela Diretiva comunitária 94/45/CE, de 22 de setembro –, que são estruturas de representação dos trabalhadores em empresas com mais de mil trabalhadores, que funcionem em pelo menos dois países da UE e que empreguem pelo menos 150 trabalhadores em cada unidade produtiva. Os representantes da força de trabalho estão presentes na direção da empresa e é frequente reunirem-se e trabalharem em conjunto na defesa de contratos de trabalho e direitos negociados com as respetivas administrações. É um modelo interessante, apesar de essas estruturas serem essencialmente consultivas e de terem sido constituídas, digamos, “de cima para baixo”.
Num plano mais alargado que cubra vários continentes ou a escala global, torna-se mais difícil criar redes eficazes de ação sindical, mas existem alguns exemplos, nomeadamente na atividade portuária e envolvendo associações sindicais no setor dos transportes. Porém, globalmente, os sindicados estão fragilizados, os seus recursos são escassos e muitas vezes privilegiam estratégias de ação eminentemente corporativistas na defesa de segmentos cujos interesses materiais (níveis de renda, principalmente) entram em choque com os de trabalhadores de outros continentes.
Um outro obstáculo à articulação de lutas sindicais internacionais resulta de a “cultura sindical” ainda predominante entre os quadros e dirigentes se inscrever na velha matriz industrial-nacional. A institucionalização e burocratização do campo sindical dificilmente lhes podem conferir um protagonismo decisivo nas futuras lutas sociais, a não ser que se saibam aliar aos novos atores que estão emergindo nas ruas. E por fim a fraca consciencialização e capacidade de uso dos novos meios informáticos e de telecomunicações na formação de novas redes, estruturas e federações sindicais transnacionais. Apesar disso, merece destaque a constituição da Confederação Sindical Internacional (CSI) e o trabalho da OIT no diálogo que tem sabido manter com o mundo sindical em defesa do trabalho digno.
JU – A globalização também passou a exercer pressão e influência sobre o ensino superior. A resposta da Europa a esse processo ficou conhecido como o “modelo de Bolonha”. Essa iniciativa trouxe os resultados esperados?
Elísio Estanque – O chamado “modelo de Bolonha”, criado na sequencia de um conjunto de princípios acordados por ministros e reitores de mais de quarenta países europeus, continha na sua origem alguns aspetos que eram louváveis, pelo menos no espírito que esteve presente nesses encontros. Entre eles o reconhecimento das credenciais acadêmicas desde que cumpridos certos requisitos, como sejam o sistema dos ECTS (sistema europeu de transferência de créditos curriculares) visando à criação de um espaço europeu aberto que facilitasse a mobilidade de estudantes e o reconhecimento das qualificações pelo mercado de emprego europeu. Para além disso, resultou daí uma maior aposta no acesso “massificado” dos jovens ao ensino superior, o que derivou para um padrão “simplificado” (com menor carga horária) em sua formação no nível de graduação, ou seja, o chamado 1º ciclo cujos programas passaram a limitar-se apenas a três anos letivos, excetuando os casos do Direito, Medicina e Arquitetura, onde as respetivas “Ordens” impuseram as suas condições, enquanto as pós-graduações, mestrados (2º ciclo) e doutorados (3º ciclo), se começaram a generalizar. A orientação de Bolonha, que apontava para uma maior proximidade e abertura entre as universidades e a sociedade mais geral (inclusive o tecido empresarial), também pareceu inicialmente promissora, em especial se observarmos que as universidades europeias se burocratizaram imensamente nos últimos sessenta anos e permaneceram fechadas numa certa cultura elitista, herdada de seu passado medieval. O maior problema deste modelo e, creio eu, a razão que o tem levado a uma preocupante perversão dos seus desígnios iniciais, deve-se a que sua implementação no terreno coincidiu com a chegada da crise e a ascensão do neoliberalismo econômico. Sob a batuta do Banco Mundial e das grandes instituições dominadas pelos EUA, o sistema de ensino superior vem privilegiando uma lógica mercantilista e consolidando uma estratificação no sistema universitário internacional cujos critérios (guiados por sistemas métricos e quantitativistas de avaliação) favorecem em particular o modelo americano de ensino superior. Na Europa, as universidades públicas debatem-se cada vez mais com cortes no financiamento público. Despojadas de meios e de recursos são forçadas a usar os pagamentos de mensalidades (as chamadas “propinas”, em Portugal) garantidos pelos estudantes e suas famílias, principalmente nas pós-graduações, como a solução que restou para suprir os sucessivos cortes orçamentais impostos pela política de austeridade que hoje incide violentamente sobre os países do sul da Europa.
JU – Em sua opinião, que aspectos relacionados às políticas brasileiras para o ensino superior deveriam merecer atenção? O Brasil também precisa repensar o modelo de atuação de suas universidades públicas em uma sociedade em transformação?
Elísio Estanque – Sem dúvida, a educação e a tecnologia são a chave do desenvolvimento em qualquer país. Por isso, como já referi, o Brasil deve apostar com urgência na melhora rápida da educação pública. Não ignoro que os progressos nesse campo já são enormes. Mas a universidade pública brasileira só poderá tornar-se o motor do desenvolvimento se, num prazo não muito longínquo, a maioria dos seus estudantes for recrutada entre aqueles que frequentaram escolas públicas no ensino médio. O sistema educativo tem de ser pensado como um todo articulado.
É claro que a formação educacional e a consolidação democrática do Brasil terão de passar por uma maior abertura da universidade pública às classes trabalhadoras e às minorias raciais. Importa para isso ampliar as medidas em curso de “discriminação positiva” e também uma redefinição do papel da universidade, quer no plano da formação científica e tecnológica, quer no campo das ciências sociais e humanas.
O que para mim é preocupante é constatar que as universidades, apesar da “excelência” de muitas delas, são cada vez mais remetidas para um papel subalterno – quando não completamente ignoradas e até asfixiadas financeiramente, como na Europa – em vez de serem chamadas a contribuir para o pensamento crítico, para a inovação e a formação cultural e cívica das atuais gerações. O ensino superior – público e privado – sofre também os impactos destrutivos do mercantilismo desenfreado que vem minando todos os campos da nossa vida coletiva e institucional. Apesar disso, tenho verificado ao longo do ano corrente que, no Brasil, o espaço de debate e de reflexão teórica nos departamentos universitários é bastante mais vivo e intenso do que na Europa. Os grupos a que estou ligado aqui na Unicamp – o Cesit/Instituto de Economia e o IFCH/Sociologia – são exemplos de ambientes acadêmicos onde a pesquisa e a análise científica se conjugam bem com a reflexão e ação prática da universidade por meio de projetos comunitários e junto à sociedade no seu conjunto.
JU – É possível, em sua opinião, enxergar nas recentes manifestações populares no Brasil, organizados por jovens que se articulam por meio de redes sociais, influências (ou ainda inspiração) dos Novos Movimentos Sociais observados na Europa?
Elísio Estanque – Existem, por um lado, diferenças de enquadramento e de contexto relacionadas com as insatisfações materiais e de prazo imediato e, por outro lado, diversos traços em comum. Quanto às primeiras, a Europa do sul debate-se sobretudo com os programas de austeridade, comandados pelo neoliberalismo burocrático ditado por Berlim e pelo FMI que trouxeram um projeto extremamente duro e agressivo para as classes trabalhadoras e a classe média assalariada, que lhes vem retirando poder aquisitivo, estabilidade e segurança no emprego e na aposentadoria. É um “script” neoliberal orientado para o retrocesso e a retirada de direitos sociais e trabalhistas, visando o fim do diálogo social e uma nova proletarização generalizada, com trabalho barato, demissões fáceis e sindicatos moribundos.
Por isso, os movimentos dos últimos dois anos (em Portugal os protestos da chamada geração “à rasca”, isto é, a geração aflita e sem futuro, que surgiu no inicio de 2011 e na Espanha o movimento dos “indignados” e os Occupy Wall Street nos EUA, logo a seguir, e ainda sob influência das manifestações da Primavera Árabe) tentaram resistir tanto a esse processo destrutivo de privatizações, de retirada de direitos e esmagamento do Estado previdência, quanto à corrosão geral da democracia e à submissão dos governos e instituições aos interesses neoliberais e da alta finança, ou seja, à concentração escandalosa da riqueza global nas mãos dos 1% mais ricos.
A questão trabalhista e socioeconômica, o empobrecimento iminente da classe média foram as principais motivações dos protestos. Enquanto no Brasil as tendências no plano econômico e social eram e são de sentido contrário. O descontentamento no Brasil é mais complexo e polimórfico, até porque no plano material as condições de vida das classes trabalhadoras melhoraram significativamente. Parece-me que no último ano se tornou mais claro o descompasso entre as promessas e expectativas criadas pelos governos petistas e a realidade objetiva no plano da qualidade de vida das populações.
Ao discurso entusiasta e até eufórico perante a evolução dos indicadores de consumo opôs-se uma consciência social das novas gerações, em especial as que ascenderam a uma educação superior, e um programa dirigido pela grande mídia (mas cujas motivações foram divergentes entre si) de descrença e oposição a esse discurso otimista ativado pelos círculos governamentais, contudo marcado também pelos interesses do marketing consumista. Quanto às semelhanças, pode dizer-se que na Europa ou no Brasil se tratou de movimentos predominantemente de juventude, alheios a partidos e sindicatos, amplamente apoiados nas novas redes sociais e por valores muito variados, contemplando orientações de esquerda e de direita, ambos sob influência de um ambiente socioeconômico de contingência, de imprevisibilidade e de uma precariedade (objetiva e subjetiva) que incide especialmente sobre a juventude, impedida de fazer planos e de definir o seu futuro.
No geral eu creio que, não obstante todas as tentativas de aproveitamento e instrumentalização por parte de forças e interesses organizados (e apesar de terem soado alguns slogans nacionalistas e de direita), esses movimentos exprimem essencialmente um desejo coletivo de mais democracia e mais justiça social. Foram importantes alertas para a atual classe política e para as instituições democráticas.
JU – O senhor também tem como objeto de estudos a classe média. Qual é o conceito que melhor define hoje esse estrato social? Que mudanças estão em curso nesse segmento e que consequências poderão ter para o conjunto das sociedades europeia e brasileira?
Elísio Estanque – Eu penso que aqui no Brasil se fala demasiado de “classe média” sem se esclarecer o que significa este conceito. Sociologicamente, a classe média não pode ser definida nem simplistamente com base em níveis de renda – a base dos mil e poucos reais e melhoras no consumo não chegam, quando esse consumo continua a responder apenas a necessidades primárias da classe trabalhadora –, nem com base no preconceito normativo e moralista de uma suposta classe média individualista, consumista e alienada na sua própria subjetividade pseudo-elitista.
A primeira definição é típica dos ideólogos neoliberais e mentores do marketing financeiro, enquanto a segunda é típica de setores intelectuais de classe média que se renegam em sua própria condição. A dita “classe média” não é uma classe no sentido de força política ou sujeito coletivo, mas, objetivamente, agrupa diversos segmentos que têm em comum: 1) a posse de um certo capital educacional/cultural, acima da base; 2) um estatuto profissional relativamente qualificado; e 3) um salário que eu aqui no Brasil definiria acima da base dos três salários mínimos.
Da conjugação desses fatores resulta não uma “classe média” homogênea, que não existe nem nunca existiu. Entre a classe trabalhadora manual e as elites há diferentes conjuntos cujas atitudes, comportamentos e estilos de vida variam em função não apenas da quantidade desses recursos, mas sim do modo como eles se combinem entre si. Por exemplo, tendo a pensar –seguindo aqui o sociólogo francês Pierre Bourdieu – que os grupos em que os recursos educacionais e culturais elevados se conjugam com recursos econômicos escassos tendem a estimular orientações mais “sociocentradas”, com maior sentido crítico e sensibilidade social, enquanto os grupos que controlam elevado patrimônio e capital econômico, mas com poucos recursos culturais e educacionais, tendem a desenvolver comportamentos mais centrados no dinheiro, na ambição material e são mais individualistas – é o fenômeno do “novo-riquismo” já estudado pelos clássicos desde meados do século XIX.
Frequentemente esses diferentes setores desenvolvem entre si múltiplas formas de usurpação ou demarcação em seus modos de vida. Com base em tais premissas, podemos concluir que nos países europeus os efeitos conjugados da inovação tecnológica, o projeto do Estado previdência e a democratização do acesso à educação, as oportunidades de acesso a um emprego estável e qualificado oferecidas a sucessivas gerações, principalmente as que nasceram no pós-guerra, a construção de um sistema público de saúde gratuito, a garantia de uma aposentadoria condigna, etc., abriram espaço a uma classe média assalariada, que, em boa medida, floresceu à sombra do Estado.
Hoje, perante a presente crise e o iminente desmanche do Estado social, estes setores da classe média estão ameaçados, vivem a angústia do declínio e o risco de proletarização. Tendem a rejeitar os agentes políticos – governos, partidos, sindicatos, etc. – considerados responsáveis pelo fiasco do projeto europeu. No Brasil todo esse processo é ainda incipiente, mas já está sendo marcado por uma “narrativa”, a meu ver demasiado eufórica em torno do “país de classe média”. Acredito que se trata de uma miragem, de uma ficção descolada da realidade, mas que se mostra muito conveniente para a propaganda dominante e para os artífices do crédito fácil, do “compre agora e pague depois”…
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