sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Em Salvador, transporte público é motivo de piada


Em Salvador, transporte público é motivo de piada

Sem nenhuma linha de ônibus licitada e com um metrô em construção há 13 anos, a capital baiana assistiu sua frota de carros praticamente dobrar desde 2007 e agora se prepara para ser uma das sedes da Copa do Mundo de 2014. Topografia da cidade requer muitos mais elevadores como o Lacerda, defendem estudiosos.

Salvador - “Confirmada a inauguração do metrô de Salvador”, diz o desenho animado em uma propaganda de TV. Risadas, muitas risadas ao fundo. Em seguida, a explicação: “FHUBÁ, Festival de Humor da Bahia”. 

Para quem não é baiano, a brincadeira pode soar estranha. Mas basta saber que o metrô está há 13 anos em construção para entender. Previsto para funcionar em 2003, o atraso das obras, de responsabilidade da Prefeitura, transferiu a inauguração para 2008. Porém, apenas no final de 2011 o sistema começou a operar, em fase de testes, e até hoje não está aberto ao público.

O tamanho da linha é outra anedota local: dos 48 quilômetros projetados inicialmente, somente seis estão prontos. O gasto, antes estimado em R$ 307 milhões, é até agora de cerca de R$ 720 milhões, segundo a Secretaria Municipal de Transportes. Em 2008, o Tribunal de Contas da União (TCU) indicou o superfaturamento nas obras do metrô. Entre outras questões, constatou o pagamento indevido por alteração do projeto e a ausência de critério de preços no edital para contratação de serviços de ventilação, elevadores e escadas rolantes. O resultado foi a retenção parcial dos pagamentos.

“O metrô é lenda. Agora, nesta eleição, já tem gente até falando em trem aéreo”, diverte-se a comerciante Teane, que será uma das 25 mil pessoas beneficiadas pela obra. Hoje, ela gasta entre uma e duas horas de ônibus para deslocar-se de casa para o trabalho. 

“Dizem que nós não temos metrô. Isso não é verdade”, questiona Lucas Portela, presidente da Associação Psicólogos do Trânsito e Mobilidade Humana e coordenador do Grupo de Estudos em Motorcracia e Carrodependência da Comissão de Mobilidade Humana e Trânsito do Conselho Regional de Psicologia. “Temos um dos mais antigos do mundo, que é o Elevador Lacerda [inaugurado em 1873 para ligar a Cidade Baixa à Cidade Alta]”, afirma. “Só que é vertical, não horizontal”. 

Topografia singular
Para o estudioso em mobilidade urbana, o Estado deveria investir mais em ligações como essa, adequadas à geografia da cidade. “Eu não sou contra o metrô. Ele já está pronto, é melhor funcionar. Mas, do ponto de vista topográfico, somos muito mais parecidos com São Francisco, nos Estados Unidos, que não tem metrô na região central. Eles preferiram adotar o bonde, porque não fazia sentido construir embaixo da terra com cumes tão altos. Em Salvador é a mesma situação”. 

Portela cita a tese de Doutorado do geógrafo Milton Santos (falecido em 2001), que tem como tema o centro de Salvador, para ilustrar seu argumento. “É uma cidade de colinas, uma cidade peninsular, uma cidade de praia, uma cidade que avança para o mar com as palafitas das invasões de ltapagipe, cidade de dois andares, como é frequente dizer-se, pois o centro se divide em uma Cidade Alta e uma Cidade Baixa”, descreve Santos, no texto de 1958.

A solução proposta por Portela não é nova. A capital baiana já tem outras três ligações mecânicas semelhantes, denominadas “plano inclinado”: o Gonçalves, que liga o bairro do Comércio ao Pelourinho, o Pilar, entre o Comércio e Santo Antônio, e o Liberdade-Calçada. O último foi inaugurado em 1967, os dois primeiros são do século 19. Um outro elevador, o do Taboão, está parado. “Seu esqueleto, em ferro fundido, ainda está lá, visível pra quem tenta subir a Ladeira do Taboão por baixo”, aponta Portela. 

Hoje, porém, poucas pessoas têm acesso aos elevadores e planos inclinados. Eles respondem por apenas 2,7% das viagens realizadas com transportes públicos, o que impacta negativamente também nos deslocamentos a pé ou de bicicleta – atualmente, Salvador tem 20 quilômetros de ciclovias, mas o uso mais frequente é para lazer. “A solução para Salvador é compartilhar vias nas cumeadas [linha formada pelos cumes das montanhas]. Sobe uma e acabou, já está em cima. Aí fica mais fácil para caminhar. Se a ladeira é problema, resolve-se com elevador. É preciso garantir o trânsito de um topo de morro para outro sem tocar no vale. Caberia também um VLT, bonde de alta velocidade, que conseguisse chegar nas cumeadas”, diz o psicólogo. 

Atualmente, a grande maioria dos deslocamentos em transporte público, 95,3%, é realizada em ônibus ou vans, que funcionam de maneira precária. “Salvador nunca licitou linha de ônibus. Todos são ilegais. Não se conseguiu fazer com licitação”, relata Portela. O assunto foi pauta do noticiário local durante a última greve dos rodoviários, em maio deste ano, quando a cidade praticamente parou. A primeira licitação, aguardada há nada menos que 50 anos, ainda está sendo elaborada.

“O transporte coletivo por ônibus apresenta uma velocidade média de 14 km/h, sendo que o recomendável é velocidades acima de 20 km/h. O tempo de espera é acima de 19 minutos, sendo o recomendável até 10 minutos. O tempo de percurso em viagens de 10 km é de 35 minutos, refletindo a baixa velocidade”, observa Juan Pedro Moreno Delgado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e especialista em Engenharia de Transportes, em uma análise publicada recentemente. Ele denuncia ainda a existência de “demandas cativas em bairros periféricos da cidade”, que são atendidas por uma única linha e empresa nos seus deslocamentos.

Trânsito carregado
Delgado também acredita que o relevo é uma das questões centrais para resolver o nó da mobilidade urbana em Salvador. “Os moradores das cumeadas são penalizados com uma menor frequência do serviço de transporte e menor fluidez, enfrentando velocidades baixíssimas nos horários de pico (9 a 15 km/hora). Nas avenidas de vale, verifica-se um melhor desempenho do serviço de ônibus em termos de frequência e velocidade. Ambos os subsistemas são interligados deficitariamente e poderiam ser conectados de maneira eficaz por planos inclinados ou elevadores, por meio dos quais pedestres e ciclistas poderiam acessar as avenidas de vale e, por conseguinte, o transporte de massa fazendo percursos de até 600 metros, usando assim o carro com menos frequência”, afirma o estudioso.

A realidade, contudo, não poderia estar mais distante do futuro. “Com a eleição de Jaques Wagner [PT], em 2006, falou-se em retomar as construções. Propuseram ligar a rua de Laranjeiras, no Pelourinho, ao Campo da Pólvora. Seria mais um elevador, que garantiria o transporte. Mas esse projeto está muito parado”, lamenta Lucas Portela.

Além disso, a cada ano o número de veículos particulares cresce nas ruas da cidade. Segundo pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Salvador teve um crescimento de 44,8% na frota de carros entre 2007 e 2011. Isso equivale a um carro para cada três habitantes.

“O pior trecho é a avenida Paralela”, diz Nalilton, vendedor de acarajé. “É muita gente, muito edifício num lugar só”. A Paralela, apelido dado à avenida Luis Viana Filho por correr paralelamente à orla, é a principal rota de ligação entre o aeroporto e o centro da cidade, justamente um dos pontos onde o transporte deveria funcionar mais adequadamente para receber a Copa do Mundo de 2014. “Hoje ninguém mais quer ser taxista do aeroporto. A avenida Paralela é um inferno. Tem um ano e meio mais ou menos que os prédios lá começaram a ficar prontos. Tem shoppings, loja de construção, universidades. O trânsito lá é horrível. Antes não tinha nada lá, era mangue”, diz o taxista Andrade.

A solução dada pelos governos federal, estadual e municipal foi a construção do metrô no corredor central da via, mas, por enquanto, as obras não saíram do papel. Depois de muitas idas e vindas, o edital para a linha 2, que será feita via Parceria Público-Privada, foi lançado por Jaques Wagner em 20 de junho deste ano e ficará em consulta pública durante 60 dias. A população desconfia que tudo esteja pronto a tempo do evento da Fifa: “É meio difícil de acreditar, né? A linha 1 está aí há tantos anos. E essa nem começou a ser feita”, diz o taxista Antônio Carlos.


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