quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O racismo é a base da desigualdade na América Latina


A desigualdade incessante, o despotismo social, a insegurança cidadã, vias fecais da democracia em grande parte da América Latina, têm muito a ver com o racismo, que é como a chave de abóbada que reúne e lubrifica todos eles.

M. Á. Bastenier
A desigualdade, o despotismo e a insegurança na América Latina têm muito a ver com o racismo
A desigualdade, o despotismo e a insegurança na América Latina têm muito a ver com o racismo
A presidente argentina, Cristina Fernández Kirchner, profissional da invectiva, atacou na semana passada o problema, mas no melhor estilo autocomplacente varreu a sujeira para baixo do tapete, atribuindo ao próximo o copyright da xenofobia, que como uma coisa "meio feinha" afeta a Europa. E menos ainda poderia faltar o recurso à Inquisição, que serve tanto para um varrido como para um esfregado, e pode fazer crer que os únicos que queimaram o réprobo nos séculos 16 e 17 foram espanhóis. Por isso, é uma pena que não tenha incluído em sua advertência a caça às bruxas na Europa central, que justiçou tantos ou mais dissidentes que os 9 mil ou 10 mil que a instituição espanhola enviou para a forca.
Mas a senhora Kirchner tinha muita razão. A Frente Nacional francesa, os ultras austríacos que até ganham eleições, os rebentos insubmissos da extrema-direita nos Países Baixos, Dinamarca e península escandinava, mais os que se agacham contra o imigrante no PP espanhol, assim o testemunham. Muitíssima razão, se não fosse porque com essa crítica severa estava exonerando seu país e por extensão o resto da América Latina. A viúva esquece "a guerra do deserto" na Argentina do fim do século 19, assim como que o quase extermínio dos índios foi obra do "criollo" (pessoa de ascendência europeia nascida nas colônias da América, e seu dialeto) e não dos espanhóis, que tiveram outras matanças mais urgentes para atender.
Se o latino-americano médio quer se sentir a gosto em sua pele exportando o racismo para outras terras, preferentemente hispânicas, basta ler "As Veias Abertas da América Latina", do uruguaio de origem italiana Eduardo Galeano - em plano vulgata para o aficionado ao traço grosso - e, em modo já plenamente acadêmico, com suas atrozes conclusões, "La Patria del Criollo", do guatemalteco filho de espanhóis Severo Martínez.
O combate contra o racismo foi uma poderosa arma eleitoral para Hugo Chávez na Venezuela e Evo Morales na Bolívia, embora agora seja preciso ver se, de tanto mudar de direção, vai se armar em La Paz um novo racismo antirracista: a vingança dos perdedores. A ocasião faz o ladrão. E o racista. Os que não tiveram colônias não sabem como poderiam ter sido racistas.
A Espanha, antes de outros impérios ocidentais, estratificou as Américas em classes ou grupos sociais racialmente segregados, e esse chip colonial não desapareceu porque em meados do século 19 se decretou a igualdade legal de todos os cidadãos, qualquer que fosse sua cor. O racismo latino-americano já não persegue a ostentação, mas discorre pelo eufemismo e a via subterrânea, operando a translação de responsabilidades para a antiga metrópole. Em muitos países da região se ensinou nos colégios que a Espanha colonizou aqueles territórios com a borra de suas prisões. Se isso fosse verdade, até poderia explicar tudo.
O racismo, uma outra forma de crer - e pôr em prática - que a sociedade é povoada por superiores e inferiores, se encontra na base da desigualdade na América Latina, estreitamente aliada ao estigma da cor; o despotismo social é exercido por um punhado de "criollos" que ditam as normas de quem e como ao resto do país; a insegurança pessoal é consequência direta das duas realidades anteriores, às quais oferece sua melhor oportunidade de atuação o supremacismo racial.
E contra esse déficit social há quem, em vez de promover uma integração cega à cor, trabalha para a revanche, ou, mais benevolamente, propõe um novo tipo de apartheid baseado na contrassoberbia étnica. E assim se estende pela América Latina, em uma imitação mostrenga dos EUA, o qualificativo de "afrodescendente" para designar o negro. Por acaso os "criollos" se autodenominam "hispânicos" ou "eurodescendentes"?
Age-se dessa maneira por um respeitável orgulho de reivindicar a origem africana, mas também se aprofunda no isolamento de quem para responder à discriminação acaba discriminando a si mesmo, ao negar-se a forma natural de identificação pela nação que lhe corresponde. Alguém em seu são juízo poderá afirmar que a equipe que ganhou o ouro do basquete da Espanha em Londres era de afrodescendentes norte-americanos, e não a dos EUA?

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