DEBATE ABERTO
Desoneração e previdência
A política generalizada e não planejada de desoneração tributária beneficia muito mais aqueles que dela não precisam. E, no caso da previdência social, corre o sério risco de promover um desequilíbrio em um regime que consegue se manter como pilar importante da redução das desigualdades e da distribuição menos injusta da renda.
Paulo Kliass
As informações oficiais sobre o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) relativas ao período janeiro-julho de 2013 não apresentam grandes mudanças em relação à tendência do modelo no médio e no longo prazos. A página do Ministério da Previdência Social (MPS) divulga periodicamente relatórios sobre a situação do sistema, para que se tenha um acompanhamento da evolução das principais contas previdenciárias.
No entanto, a maneira como o tema sempre foi tratado pelos órgãos da grande imprensa reflete uma perspectiva bastante peculiar de análise da questão da seguridade social. As manchetes estampam com grande estardalhaço os números catastróficos do “déficit fenomenal”, um “verdadeiro rombo” do modelo da previdência e por aí vai. Assim, por exemplo, o próprio MPS refez suas conta e reavaliou o tamanho do “suposto buraco” para o total do ano atual em um valor próximo a R$ 48 bilhões. O órgão chama isso de “resultado previdenciário”, sem maiores explicações a respeito da metodologia de cálculo. Ora, os números soltos e frios assim realmente podem parecer assustadores para quem não tem familiaridade com o assunto e suas especificidades.
A inclusão dos trabalhadores do campo
O detalhe é que as estatísticas são apresentadas de forma confusa e misturada. O RGPS, na verdade, é composto por dois subsistemas que devem ser compreendidos e analisados de forma diferenciada, principalmente se o interesse for o de verificar a verdadeira situação do equilíbrio previdenciário. Trata-se de verificar a dinâmica particular de: i) o conjunto dos trabalhadores urbanos; e ii) o conjunto dos trabalhadores rurais. Essa questão metodológica se justifica pela própria história recente do modelo previdenciário em nosso País. Os agricultores e assalariados do campo não tinham acesso aos benefícios da seguridade social até 1988, quando a Assembleia Nacional Constituinte resolveu corrigir essa enorme e flagrante injustiça social. A partir de então, essa parcela expressiva de nossa população passou a ser incluída ao RGPS.
Ocorre que, para promover essa reparação de cidadania tão necessária, teria sido preciso deixar bastante explícita a maneira pela qual o regime previdenciário recuperaria suas contas compensadas. Afinal, tratava-se de uma decisão da sociedade brasileira e não faria sentido promover dificuldades para o modelo de seguridade social por conta dessa novidade. Isso porque haveria, no mínimo, uma geração de cidadãos e cidadãs que passariam a receber os benefícios previdenciários sem que nunca tivessem contribuído para o INSS ao longo de sua vida laboral. E não pelo fato de que não queriam participar: o sistema é que não os aceitava.
Assim, não precisa ser especialista em cálculo atuarial para perceber que o RGPS passaria a ser bem mais solicitado pelo lado das despesas, pois deveria começar a honrar o pagamento dessas novas aposentadorias e pensões dos trabalhadores do campo, aumentando o nível geral de gastos do sistema. E tais despesas não teriam sua contrapartida do ponto de vista das receitas.
Essa compensação deveria ser efetuada, mês a mês, por meio de ressarcimento da contabilidade do Tesouro Nacional. Afinal, esse “desequilíbrio” nada tem a ver com a estrutura das variáveis que mais influenciam qualquer modelo previdenciário, tais como tempo de contribuição, idade mínima para requerer benefícios, alíquota de contribuição e variáveis do gênero.
Previdência social: urbanos e rurais
Tanto isso é verdade que o outro subsistema – o dos trabalhadores urbanos – sempre esteve como está hoje em dia: muito bem equilibrado. Se considerarmos apenas os dados disponíveis para os sete primeiros meses do presente ano, o subsistema dos urbanos apresenta uma receita total de R$ 161 bilhões, frente a uma despesa total de R$ 150 bi. Isso significa um superávit nas contas equivalente a R$ 11 bi. Além disso, se forem computadas as demais renúncias previdenciárias, o superávit sobe para R$ 25 bi. Longe, portanto, muito longe das previsões alarmistas sobre eventual “rombo estrutural” no regime.
No entanto, o subsistema dos rurais oferece um quadro bem distinto, em razão do já mencionado histórico de não contribuições. A consequência mais imediata é que seu lado de receitas é mais frágil. Para o mesmo período do que acima retratado, o quadro é de uma arrecadação total de apenas R$ 3,5 bi, face a uma despesa de R$ 44 bi. Esse descompasso de quase R$ 41 bi é que se soma ao superávit dos urbanos e resulta no tão alardeado “rombo previdenciário” de R$ 30 bi entre janeiro e julho. Nada mais falso, portanto.
A tentativa de responsabilizar essa diferença por conta de um inexistente desequilíbrio previdenciário é de uma irresponsabilidade atroz. Tanto que mais de 99% dos benefícios pagos mensalmente aos aposentados e pensionistas rurais é de valor menor ou igual a um salário mínimo. Não faz sentido que um modelo como esse seja o bode expiatório dos que propõem insistentemente reformas previdenciárias, com o único intuito de promover a privatização desse enorme volume de recursos que representa o RGPS.
Regime previdenciário está equilibrado
Afinal, é fácil imaginar a voracidade com que o sistema financeiro encara um sistema que arrecada e gasta quase R$ 350 bilhões por ano. Uma das metas mais estratégicas para esse mundo do parasitismo financeiro é arrancar esse regime previdenciário das mãos do Estado e convertê-lo em coisa privada, um negócio para ganhar muito dinheiro. Com isso, passariam a geri-lo como uma mercadoria a mais a ser oferecida na extensa prateleira das agências bancárias, ao lado de apólices de seguros, títulos de capitalização, talões de cheque especial, cartões de crédito y otras cositas más.
Como se pode perceber, o nosso modelo previdenciário está em equilíbrio. Na verdade, ele é até superavitário no momento presente. O que falta é a institucionalização desse repasse de recursos por parte do Tesouro Nacional, para que se tenha um quadro mais efetivo do balanço entre receitas e despesas do subsistema dos trabalhadores rurais e não se abra mais brechas para esse tipo de discurso mentiroso do financismo.
Como se não bastasse esse tipo de problema a enfrentar, o governo realizou uma outra aposta equivocada e se aventurou pelas trilhas perigosas da desoneração da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos. Ao ceder a mais essa antiga reivindicação do capital, a equipe econômica termina por expor de forma irresponsável o conjunto do RGPS ao risco de desequilíbrio no futuro. A alíquota de 20% sobre salários que as empresas devem recolher à Previdência Social foi substituída por uma receita derivada de outra alíquota (entre 1% e 2%, variável de acordo com os setores) incidente sobre o faturamento. Ocorre que o volume de recursos arrecadados por essa nova fórmula de cálculo tributário é mais reduzido que a antiga contribuição sobre a folha. Regulamento posterior prevê que o Tesouro Nacional promova uma compensação ao RGPS por conta dessa perda de receita. Mas o ajuste é incerto e só se efetua a cada 4 meses. Com isso, a previdência social é claramente prejudicada.
Os riscos da desoneração da folha de salários
De início, as autoridades governamentais haviam anunciado essa novidade como uma experiência piloto, bastante pontual e localizada. A ideia era avaliar o impacto da mudança, seja em termos dos custos das empresas como da arrecadação para os cofres da previdência. No entanto, as pressões se ampliaram e a falta de firmeza do governo permitiu que a mudança fosse rapidamente generalizada por muitos setores da economia. Cada vez mais representantes de empresários de setores não contemplados com a novidade clamam para verem suas atividades também incluídas na lista das benesses. E esse movimento de incorporação crescente de novos ramos à sistemática de tributação sobre o faturamento pode provocar um desajuste no atual equilíbrio do RGPS.
Há uma série de estudos demonstrando que as iniciativas adotadas pelo governo de desonerar o capital não tem provocado os efeitos econômicos desejados. Além da desoneração da folha de pagamentos, houve medidas na área de IR, IOF, IPI, PIS/COFINS e outros tributos. Os preços dos produtos e dos serviços não foram reduzidos no montante que se esperava e o fenômeno mais relevante foi a elevação da margem de ganho das empresas.
Além disso, outro fato a ser sublinhado é que a estrutura tributária em nosso País continua com sua característica acentuadamente regressiva. Isso significa que as camadas da população que auferem os mais baixos níveis de renda são exatamente aquelas que mais pagam impostos, em termos proporcionais.
Como a maior parte dos tributos incide diretamente sobre a compra de bens e serviços, os mais pobres recolhem ao fisco o mesmo valor que os ricos quando compram um litro de leite ou um pãozinho na padaria, quando pagam a fatura de eletricidade ou quando utilizam o transporte coletivo. Por outro lado, as alíquotas de imposto de renda beneficiam os que ganham muito acima dos limites e que contam todo tipo de abatimento no momento da declaração anual. Finalmente, a resistência em regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas soma-se às sucessivas facilidades para renegociar as dívidas das grandes empresas junto ao fisco.
Em suma, a política generalizada e não planejada de desoneração tributária beneficia muito mais aqueles que dela não precisam. E, no caso da previdência social, corre o sério risco de promover um desequilíbrio em um regime que consegue se manter como pilar importante da redução das desigualdades e da distribuição menos injusta da renda.
No entanto, a maneira como o tema sempre foi tratado pelos órgãos da grande imprensa reflete uma perspectiva bastante peculiar de análise da questão da seguridade social. As manchetes estampam com grande estardalhaço os números catastróficos do “déficit fenomenal”, um “verdadeiro rombo” do modelo da previdência e por aí vai. Assim, por exemplo, o próprio MPS refez suas conta e reavaliou o tamanho do “suposto buraco” para o total do ano atual em um valor próximo a R$ 48 bilhões. O órgão chama isso de “resultado previdenciário”, sem maiores explicações a respeito da metodologia de cálculo. Ora, os números soltos e frios assim realmente podem parecer assustadores para quem não tem familiaridade com o assunto e suas especificidades.
A inclusão dos trabalhadores do campo
O detalhe é que as estatísticas são apresentadas de forma confusa e misturada. O RGPS, na verdade, é composto por dois subsistemas que devem ser compreendidos e analisados de forma diferenciada, principalmente se o interesse for o de verificar a verdadeira situação do equilíbrio previdenciário. Trata-se de verificar a dinâmica particular de: i) o conjunto dos trabalhadores urbanos; e ii) o conjunto dos trabalhadores rurais. Essa questão metodológica se justifica pela própria história recente do modelo previdenciário em nosso País. Os agricultores e assalariados do campo não tinham acesso aos benefícios da seguridade social até 1988, quando a Assembleia Nacional Constituinte resolveu corrigir essa enorme e flagrante injustiça social. A partir de então, essa parcela expressiva de nossa população passou a ser incluída ao RGPS.
Ocorre que, para promover essa reparação de cidadania tão necessária, teria sido preciso deixar bastante explícita a maneira pela qual o regime previdenciário recuperaria suas contas compensadas. Afinal, tratava-se de uma decisão da sociedade brasileira e não faria sentido promover dificuldades para o modelo de seguridade social por conta dessa novidade. Isso porque haveria, no mínimo, uma geração de cidadãos e cidadãs que passariam a receber os benefícios previdenciários sem que nunca tivessem contribuído para o INSS ao longo de sua vida laboral. E não pelo fato de que não queriam participar: o sistema é que não os aceitava.
Assim, não precisa ser especialista em cálculo atuarial para perceber que o RGPS passaria a ser bem mais solicitado pelo lado das despesas, pois deveria começar a honrar o pagamento dessas novas aposentadorias e pensões dos trabalhadores do campo, aumentando o nível geral de gastos do sistema. E tais despesas não teriam sua contrapartida do ponto de vista das receitas.
Essa compensação deveria ser efetuada, mês a mês, por meio de ressarcimento da contabilidade do Tesouro Nacional. Afinal, esse “desequilíbrio” nada tem a ver com a estrutura das variáveis que mais influenciam qualquer modelo previdenciário, tais como tempo de contribuição, idade mínima para requerer benefícios, alíquota de contribuição e variáveis do gênero.
Previdência social: urbanos e rurais
Tanto isso é verdade que o outro subsistema – o dos trabalhadores urbanos – sempre esteve como está hoje em dia: muito bem equilibrado. Se considerarmos apenas os dados disponíveis para os sete primeiros meses do presente ano, o subsistema dos urbanos apresenta uma receita total de R$ 161 bilhões, frente a uma despesa total de R$ 150 bi. Isso significa um superávit nas contas equivalente a R$ 11 bi. Além disso, se forem computadas as demais renúncias previdenciárias, o superávit sobe para R$ 25 bi. Longe, portanto, muito longe das previsões alarmistas sobre eventual “rombo estrutural” no regime.
No entanto, o subsistema dos rurais oferece um quadro bem distinto, em razão do já mencionado histórico de não contribuições. A consequência mais imediata é que seu lado de receitas é mais frágil. Para o mesmo período do que acima retratado, o quadro é de uma arrecadação total de apenas R$ 3,5 bi, face a uma despesa de R$ 44 bi. Esse descompasso de quase R$ 41 bi é que se soma ao superávit dos urbanos e resulta no tão alardeado “rombo previdenciário” de R$ 30 bi entre janeiro e julho. Nada mais falso, portanto.
A tentativa de responsabilizar essa diferença por conta de um inexistente desequilíbrio previdenciário é de uma irresponsabilidade atroz. Tanto que mais de 99% dos benefícios pagos mensalmente aos aposentados e pensionistas rurais é de valor menor ou igual a um salário mínimo. Não faz sentido que um modelo como esse seja o bode expiatório dos que propõem insistentemente reformas previdenciárias, com o único intuito de promover a privatização desse enorme volume de recursos que representa o RGPS.
Regime previdenciário está equilibrado
Afinal, é fácil imaginar a voracidade com que o sistema financeiro encara um sistema que arrecada e gasta quase R$ 350 bilhões por ano. Uma das metas mais estratégicas para esse mundo do parasitismo financeiro é arrancar esse regime previdenciário das mãos do Estado e convertê-lo em coisa privada, um negócio para ganhar muito dinheiro. Com isso, passariam a geri-lo como uma mercadoria a mais a ser oferecida na extensa prateleira das agências bancárias, ao lado de apólices de seguros, títulos de capitalização, talões de cheque especial, cartões de crédito y otras cositas más.
Como se pode perceber, o nosso modelo previdenciário está em equilíbrio. Na verdade, ele é até superavitário no momento presente. O que falta é a institucionalização desse repasse de recursos por parte do Tesouro Nacional, para que se tenha um quadro mais efetivo do balanço entre receitas e despesas do subsistema dos trabalhadores rurais e não se abra mais brechas para esse tipo de discurso mentiroso do financismo.
Como se não bastasse esse tipo de problema a enfrentar, o governo realizou uma outra aposta equivocada e se aventurou pelas trilhas perigosas da desoneração da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos. Ao ceder a mais essa antiga reivindicação do capital, a equipe econômica termina por expor de forma irresponsável o conjunto do RGPS ao risco de desequilíbrio no futuro. A alíquota de 20% sobre salários que as empresas devem recolher à Previdência Social foi substituída por uma receita derivada de outra alíquota (entre 1% e 2%, variável de acordo com os setores) incidente sobre o faturamento. Ocorre que o volume de recursos arrecadados por essa nova fórmula de cálculo tributário é mais reduzido que a antiga contribuição sobre a folha. Regulamento posterior prevê que o Tesouro Nacional promova uma compensação ao RGPS por conta dessa perda de receita. Mas o ajuste é incerto e só se efetua a cada 4 meses. Com isso, a previdência social é claramente prejudicada.
Os riscos da desoneração da folha de salários
De início, as autoridades governamentais haviam anunciado essa novidade como uma experiência piloto, bastante pontual e localizada. A ideia era avaliar o impacto da mudança, seja em termos dos custos das empresas como da arrecadação para os cofres da previdência. No entanto, as pressões se ampliaram e a falta de firmeza do governo permitiu que a mudança fosse rapidamente generalizada por muitos setores da economia. Cada vez mais representantes de empresários de setores não contemplados com a novidade clamam para verem suas atividades também incluídas na lista das benesses. E esse movimento de incorporação crescente de novos ramos à sistemática de tributação sobre o faturamento pode provocar um desajuste no atual equilíbrio do RGPS.
Há uma série de estudos demonstrando que as iniciativas adotadas pelo governo de desonerar o capital não tem provocado os efeitos econômicos desejados. Além da desoneração da folha de pagamentos, houve medidas na área de IR, IOF, IPI, PIS/COFINS e outros tributos. Os preços dos produtos e dos serviços não foram reduzidos no montante que se esperava e o fenômeno mais relevante foi a elevação da margem de ganho das empresas.
Além disso, outro fato a ser sublinhado é que a estrutura tributária em nosso País continua com sua característica acentuadamente regressiva. Isso significa que as camadas da população que auferem os mais baixos níveis de renda são exatamente aquelas que mais pagam impostos, em termos proporcionais.
Como a maior parte dos tributos incide diretamente sobre a compra de bens e serviços, os mais pobres recolhem ao fisco o mesmo valor que os ricos quando compram um litro de leite ou um pãozinho na padaria, quando pagam a fatura de eletricidade ou quando utilizam o transporte coletivo. Por outro lado, as alíquotas de imposto de renda beneficiam os que ganham muito acima dos limites e que contam todo tipo de abatimento no momento da declaração anual. Finalmente, a resistência em regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas soma-se às sucessivas facilidades para renegociar as dívidas das grandes empresas junto ao fisco.
Em suma, a política generalizada e não planejada de desoneração tributária beneficia muito mais aqueles que dela não precisam. E, no caso da previdência social, corre o sério risco de promover um desequilíbrio em um regime que consegue se manter como pilar importante da redução das desigualdades e da distribuição menos injusta da renda.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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