quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Está rindo de quê?‏


Está rindo de quê?‏

Cameron teve um humor raro em governantes. Posso discordar, e discordo, de sua ideologia e de seu governo, mas admiro o espírito esportivo com que tratou os chifrinhos que lhe foram postos por um jogador de rugby. O mesmo não poso dizer com relação à censura que o governo cubano impôs ao pianista de jazz Robertico Carcassés.
O humor compreende também o mau humor. O mau humor é que não compreende nada (Millôr Fernandes)

Não sei quanto a vocês, mas para mim a melhor imagem da semana passada nasceu de um jogador de rugby. Para quem está habituado a ver nos atletas deste esporte apenas uma pilha de músculos trabalhados, foi surpreendente o gesto de Manu Tuilagi, da seleção britânica, recebida com a tradicional pompa pelo primeiro-ministro David Cameron. Na hora da foto oficial, Manu não resistiu: colocou dois dedos atrás da cabeça do premiê. O adorno chifrudo percorreu o mundo. A reação de Cameron foi bem-humorada, o que conta muitos pontos a seu favor. Ele reconheceu o menino que havia por trás dos bíceps avantajados e deixou a vida correr. Sem nunca ter lido Quintana, pôs em prática uma das magníficas sacadas do alegretense:

Seu Glicínio porteiro acredita que rato, depois de velho, vira morcego.

- É uma crença que ele traz de sua infância.

Não o desiludas com teu vão saber,

Respeita-lhe os queridos enganos:

Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança

- Tenha ela oito ou oitenta anos!


Pescar a criança dentro de nós, o moleque hibernante, é um dos segredos do bem viver. Minha família nunca foi religiosa, mas, quando completei treze anos, passei pelo ritual do bar-mitzva. Uma cerimônia que, hoje, alavanca o narcisismo nouveau riche dos endinheirados. Pois bem, entre os presentes tradicionais havia um tripé inevitável: livros, prendedores de gravatas e abotoaduras. Que festa para um pré-adolescente, hem ? No meio de Jorge Amado (veículo das primeiras fantasias eróticas), Charles Dickens e Michael Gold (escritor engajado, que escreveu o clássico Judeus sem dinheiro, sobre os trabalhadores da indústria têxtil nos Estados Unidos, as infames sweat shops), veio uma coleção de 6 livrinhos da extinta editora Biblos, condensação do peculiar humor judaico. Destaque para as histórias dos habitantes de Chelm.



Chelm é uma cidadezinha polonesa, hoje com pouco mais de 12 mil habitantes. Tal como aconteceu com muitos povoados poloneses, houve época em que a população judaica era proporcionalmente grande. Por razões que desconheço, estes judeus ficaram conhecidos pelo nonsense. Propunham soluções tolas para problemas simples, metiam-se em situações delirantes, subvertiam o bom senso mais elementar. Daí surgiu um portentoso manancial folclórico, carregado de ironia e humor. Não o humor das gargalhadas, mas o do sorriso e o da descontração. Destaque para os chelmer chochemim, sábios que eram a antítese da sabedoria. Ilustro com duas historinhas. Um rabino disse à sua congregação que havia encontrado a solução para a pobreza. De agora em diante, sentenciou o rebe, os pobres vão consumir creme de leite e os ricos terão que se contentar apenas com leite. Mas como ?, indagou em peso a congregação. Ora, muito simples. Chamaremos o leite de creme e o creme, de leite. Certa vez, os sábios de Chelm discutiam um assunto transcendente: o que era mais importante, o sol ou a lua ? Um rabino respondeu: a lua, é claro, pois quem precisa do sol, à luz do dia ? Precisamos é da luz da lua, à noite, quando é tão escuro.

As histórias de Chelm abasteceram muitos escritores importantes com matéria-prima robusta. Um deles, Isaac Bashevis Singer, foi prêmio Nobel de Literatura em 1978. Era um típico exemplar da ironia e do bom humor judaicos. Seu discurso ao receber o Nobel, na presença de uma plateia em trajes de gala e do rei da Suécia, foi um primor. Até o fim da vida, escreveu os originais em ídish, idioma de comunicação universal dos judeus ashquenazitas até a Segunda Guerra Mundial e que entrou em lenta mas inexorável agonia desde então. Hoje, é uma pálida caricatura dos dias de glória que encantaram muitas gerações. Voltando ao discurso. Singer disse que muitos lhe perguntavam por quê insistia em escrever numa língua ameaçada e cada vez mais inacessível. Respondia afirmando ser um judeu devoto (ironia: ele jamais foi isso) e, segundo a tradição, acreditava que, quando o Messias voltasse à Terra, todos os judeus, de todas as épocas, ressuscitariam. Ora, nesse momento, multidões se espreguiçariam e correriam atrás dos jornais e livros em ídish. Em suma: ele escrevia para que esses futuros ressuscitados não padecessem de fome literária.

Sei não, mas suspeito que foi um estudante judeu que pichou nos muros de Paris, em maio de 1968, uma das minhas frases favoritas: Sou marxista ... da linha Groucho. Frase que, de resto, poderia ter sido escrita pelo próprio Julius Henry, nome verdadeiro do Groucho. Os Irmãos Marx reinam absolutos na minha galeria de gênios do humor, um humor anárquico, surpreendente. Lembro de uma cena antológica. Groucho está na rua, apoiado num prédio. Chega um policial e, com a gentileza usual dos meganhas, exige que ele saia dali. Groucho alega que não pode, que está sustentando o prédio. O tira fica possesso, “está me gozando ?”, e enxota o bigodudo. Mal Groucho desencosta e dá dois passos, o prédio ... desaba ! Cheguei a perder o fôlego de tanto rir, mas hoje pergunto: o que é engraçado ? Por que rimos ? Harpo, que nunca abriu a boca nos filmes dos Irmãos Marx, não precisava de palavras. Antes de morrer, Groucho escreveu o que gostaria que fosse seu epitáfio quando morresse. Mantenho no original (por alguma razão, parece mais engraçado ...): Excuse me, I can’t stand up.

Há o humor involuntário. Na televisão em preto e branco, assisti muitas apresentações da dupla Jackson do Pandeiro e Almira. Achava gozadíssimo quando Almira enrijecia o pescoço e dava uns passinhos desengonçados. Era apenas um artifício para dar molho à performance da dupla, mas, para o Menino, aquela cabra da peste fazia rir. Políticos que fazem promessas impossíveis ou se travestem de profetas da salvação também são cômicos involuntários. O pior é que eles levam a estultice a sério. Rir pode não ser sinal de graça. Quem pode se divertir com as fartas gargalhadas de Maluf e Berlusconi ? Naquelas arcadas dentárias expostas está a marca da impunidade dos ricos, bofetada dolorosa na consciência dos povos.

Cameron teve um humor raro em governantes. Posso discordar, e discordo, de sua ideologia e de seu governo, mas admiro o espírito esportivo com que tratou os chifrinhos. O mesmo não poso dizer com relação à censura que o governo cubano impôs ao pianista de jazz Robertico Carcassés. Num recente concerto dedicado aos cinco presos políticos cubanos nos Estados Unidos, transmitido em cadeia nacional, fez críticas ao governo de Raul Castro. O cantor Silvio Rodriguez, que sempre apoiou a revolução cubana, discordou das colocações do pianista, mas convidou Robertico para participar de duas apresentações. Declarou que todos devem ter o direito de livre manifestação. Teve, sobretudo, o fairplay tão necessário numa sociedade saudável. Sou solidário às conquistas importantes da revolução cubana, à luta por criar uma alternativa às brutalidades do capitalismo. No entanto, a história já demonstrou à farta que censura não leva a bom lugar.

Cientistas do Imperial College of London e da Universidade de Kent, na Inglaterra, concluíram que colisões de cometas e asteroides podem ter semeado a vida na Terra. De acordo com eles, as ondas de choque destas colisões produzem quantidades monumentais de energia, suficientes para converter misturas de substâncias simples, como água e gás carbônico, em moléculas complexas, base para o desenvolvimento de seres vivos. Passo importante para desvendar as origens da vida. Seríamos criaturas, pois, de corpos cósmicos que viajam pelas galáxias. Como reagirão os criacionistas a mais este avanço da ciência ? Um leão acuado lambe a ameaça ? Aqui entra o mau humor, que, afinal de contas, não existiria sem o bom humor. Acabo de ouvir no rádio que o deputado Jair Bolsonaro forçou a entrada no quartel da Polícia de Exército, na Tijuca, que, durante a ditadura militar, foi uma das mais pavorosas câmaras de tortura. Lá desapareceu, por exemplo, Rubens Paiva. Oportunista, apareceu justamente quando se iniciava a visita da Comissão Nacional da Verdade. Ao ser impedido, reagiu com a truculência habitual, agredindo um dos membros da Comissão. É, positivamente os fascistas são mal-humorados.

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.

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