sábado, 7 de setembro de 2013

Maquiavel e o uso da força


Há exatamente 500 anos, um diplomata florentino que se vira obrigado a exilar-se em sua fazenda de San Casciano in Val di Pesa, na Toscana, abandonou alguns projetos que tinha nas mãos para tentar ganhar o favor de Lourenço, o Magnífico, com um pequeno tratado com conselhos para manter o poder. Teve pouco sucesso com os Médici - dizem que Lourenço, quando recebeu a obra, lhe dedicou apenas alguns segundos antes de se concentrar em cães de caça que lhe ofereceram na mesma audiência -, mas seu livro se transformou no mais influente, lido e analisado tratado de ciência política.

Guillermo Altares
Crianças sírias seguram cartazes pedindo para que os parlamentares digam sim e acabem com crimes contra a humanidade cometidos por Bashar al-Assad na Síria, durante protesto na cidade de Arbeen, subúrbio de Damasco
Um dos temas centrais de "O Príncipe", de Maquiavel, é a relação dos governantes com o uso da força, suas vantagens e inconveniências. Agora, com a dança diplomática em torno da Síria, o maquiavelismo volta à primeira fila porque não há qualquer decisão tão importante para um príncipe quanto o uso da força armada.
Outro livro, também influente (embora muito menos, é claro), premiado com o Pulitzer em 2002, quando o mundo discutia a invasão do Iraque, também é muito útil para tentar entender o que aconteceu naquele período. Trata-se de "A problem from hell: America and the age of genocide" (Um problema infernal: Os EUA na era do genocídio), e sua autora é Samantha Power, que era então professora em Harvard e hoje é embaixadora dos EUA na ONU, um dos cargos mais importantes da diplomacia americana.
A conclusão desse ensaio muito documentado, que revê a relação da superpotência com os horrores do século 20, inclusive antes que Raphael Lemkin cunhasse o conceito de genocídio (uma mistura da palavra grega "genos", raça, com a latina "cide", assassinato), é que os EUA nunca atuaram em política externa por problemas humanitários, e sim por interesses próprios (puro Maquiavel, ora). Power lembra uma frase do ex-presidente George H. Bush quando começou a guerra na Bósnia: "Os EUA não têm nenhum cachorro nessa briga".
Depois de anos de horrores sem nome na antiga Iugoslávia - como ocorreu na Síria -, uma selvageria excepcional - Srebrenica, o maior crime de guerra cometido na Europa desde o stalinismo - desencadeou uma ação militar do Ocidente, com a oposição da Rússia, que afinal desembocou em um processo de paz patrocinado por Washington (como na Síria?).
Quatro anos depois, Milosevic desencadeou uma onda de limpeza étnica em Kosovo, em um claro desafio ao Ocidente. Um grande debate eclodiu no seio do governo Clinton: o que fazer? "Além do sofrimento dos albaneses, a ameaça à credibilidade americana foi um fator crucial para convencer Clinton a agir", escreve Power, que lembra uma declaração do próprio presidente: "Já pensei muito neste assunto. Estou convencido de que os perigos de não agir são inferiores aos de agir, perigos para pessoas indefesas mas também para nossos interesses nacionais".
São frases que poderiam ter sido pronunciadas nesta crise (de fato, Kerry disse na sexta-feira (30) algo muito parecido), como também uma famosa citação de "O Príncipe": "Nada causa tanto a estima de um príncipe quanto as grandes empresas e dar exemplo particular de si mesmo".
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Nenhum comentário:

Postar um comentário