segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O jornal ‘El Mercurio’, os meios de comunicação e o fantasma do chavismo


O jornal ‘El Mercurio’, os meios de comunicação e o fantasma do chavismo

Convencido do triunfo de Michelle Bachelet nas próximas eleições presidenciais do Chile, o diário ‘ El Mercurio’ trabalha para desqualificar propostas programáticas da candidata socialista que poderiam mudar o status quo e corrigir ostensíveis déficits políticos, sociais e econômicos de nossa democracia. Por Gustavo González Rodrígues, para a IPS, em Santiago

O jornal ‘El Mercurio’ parece convencido da inevitabilidade do triunfo de Michelle Bachelet nas próximas eleições presidenciais e se mostra empenhado em colocar o curativo antes da ferida ou, o que vem a ser o mesmo, exercer sua influência para desqualificar propostas programáticas da Nueva Mayoría (Nota 1) que poderiam mudar o status quo e corrigir ostensíveis déficits políticos, sociais e econômicos de nossa democracia.

As páginas editoriais do decano da imprensa chilena mostram, nos últimos meses, um compêndio de alarmes a propósito do “desnecessário afã refundacional” que implica uma Assembleia Constituinte e da emergência de um “sentimento antiempresarial e estatista” que põe em perigo “o crescimento obtido graças à economia de mercado”, para mencionar os dois tópicos principais da preocupação mercurial, que coincidem obviamente com o discurso da Alianza por Chile (2).

Nos últimos dias o El Mercurio acrescentou um novo tema que, para dizer a verdade, esteve solapado na vitalícia transição chilena pelos quatro governos concertacionistas e pela administração de Piñera: o da indústria midiática. Na quinta-feira 30 de julho, o matutino dedicou seu principal editorial, sob o título “Risco para os meios de comunicação”, às propostas que contém ao respeito o documento “Compromissos para o Chile que queremos”, elaborado pela Comissão de Programa dos partidos da Nueva Maioria.

Se deve celebrar que finalmente as coletividades da clamada centro-esquerda abordem este vital assunto e, embora tivesse que agradecer ao “diario de Agustín” (3) por contribuir de sua maneira a fazer visível um problema que vem afetando profundamente a qualidade da democracia, não cabe mais impugnar a forma em que o faz, com um discurso fundamentalista que desconhece os dados da realidade e cai levianamente na desqualificação, recorrendo a dois termos que a linguagem direitista utiliza grosseiramente como estigmas: chavismo e kirchnerismo.

Em uma espécie de sobremesa do prato forte editorial, na segunda-feira 5 de agosto, também na página 3 do decano, se inclui uma coluna de opinião da jornalista Tamara Avetikian (“Hegemonía mediática ¡no!”), acerca do enfrentamento na Venezuela entre o governo de Nicolás Maduro e o jornal El Nacional. A colunista fecha seu texto dizendo que dispararam “alarmes” a propósito das propostas programáticas sobre os meios de comunicação recebidas por Michelle Bachelet, que poderiam reproduzir no Chile a situação venezuelana.

Nos “Compromissos para o Chile que queremos” se postula “o direito a uma informação plural, veraz e transparente, o que nos leva a lutar por estabelecer as condições para democratizar o atual sistema de meios de comunicação, que permitiu concentrar em poucas pessoas ou empresas, nacionais ou estrangeiras, o controle dos meios de comunicação massivos”.

“Também resulta necessário incentivar, nos meios de comunicação tradicionais, um autêntico pluralismo tanto nos conteúdos como na propriedade”, acrescenta o documento das comissões programáticas dos partidos da Nueva Mayoría.

Na visão mercurial o diagnóstico sobre a concentração da propriedade dos meios de comunicação e as aspirações de pluralismo viriam a ser consignadas chavistas ou kirchneristas, que ameaçariam o sistema de meios de comunicação no Chile, que por oposição a esses obscuros desígnios não teria rasgos monopólicos nem oligopólios e seria garantia de uma informação veraz, plural e transparente.

Foi esse próprio sistema de meios de comunicação o que se encarregou de construir visões tendenciosas, estereótipos, demonizações e estigmas sobre as experiências políticas da Venezuela e da Argentina, assim como do Equador e da Bolívia (seguidores do “modelo chavista” no discurso editorialista do El Mercurio). Assim, vem a ser quase um passe de mágica dar por encerrado o debate sobre a paisagem midiática chilena com o simples expediente de qualificar de chavistas aqueles reivindicam sua democratização.

Para que a operação seja completa, os meios de comunicação tradicionais (imprensa escrita, rádio e televisão) ignoraram ou censuraram os numerosos relatórios e estudos que documentam a concentração da propriedade dos meios de comunicação no Chile, elaborados por investigadores a salvo de qualquer suspeita de chavismo. “Os magnates de la prensa”, da Prêmio Nacional de Jornalismo María Olivia Mönckeberg (Random House Mondadori, 2009), foi mencionado pelo Mercurio, contra sua vontade, só nos rankings de altas vendas das livrarias.

A lista de exemplos similares é demasiado extensa. Basta citar dois casos recentes. A imprensa tradicional silenciou as “Propostas do Colégio de Jornalistas do Chile sobre Políticas Públicas para a Comunicação Social”, dirigidas a candidatas e candidatos presidenciais e parlamentares apresentadas no dia 11 de julho. Segundo os cânones mercuriais, esse documento estaria também contaminado com o vírus do chavismo, pese a sua aprovação por unanimidade no Conselho Nacional desta ordem, onde estão representadas diversas correntes ideológicas e políticas, algumas francamente identificadas com a oposição venezuelana. (Nota: o texto pode ser lido em www.colegiodeperiodistas.cl/images/documentos/propuestapolitica.pdf).

Entre outros pontos, o Colégio de Jornalistas faz eco de propostas das relatorias para a Liberdade de Expressão das Nações Unidas e da Organização de Estados Americanos, no sentido de que o pluralismo comunicacional se garanta com a convivência em pé de igualdade de três tipos de meios: comerciais, comunitários e públicos (não governamentais).

Segundo caso: quando em janeiro-fevereiro de 2014 se reunir o Conselho de Direitos Humanos da ONU para seu exame periódico universal sobre a situação nos países membros da organização mundial, contará quando analisar a situação da liberdade de imprensa com a contribuição de Repórteres sem Fronteiras (RSF), ONG internacional com caráter consultivo nessa instância.

O que diz a RSF sobre a liberdade de imprensa no Chile? Vale a pena ler o primeiro parágrafo do relatório:

“O Chile ocupa o 60o lugar, entre 179 países, na Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa 2013 de Repórteres sem Fronteiras. Esse país se caracteriza por uma concentração excessiva dos meios de comunicação, daí sua flagrante falta de pluralismo. Aproximadamente 95% das publicações de imprensa escrita se encontram em mãos de dois grupos de comunicação privados: El Mercurio e Copesa, únicos beneficiários do sistema de subvenção do Estado instaurado ainda na ditadura – pelo que recebem cerca de 5 milhões de dólares ao ano –, em detrimento dos meios de comunicação independentes. Também cerca de 60% das estações de rádio pertencem ao grupo de imprensa espanhol Prisa. Assim, os meios de comunicação independentes – como as rádios comunitárias – se debatem para sobreviver e assegurar sua subsistência econômica, posto que o país ainda não conta com um marco legislativo que garanta um equilíbrio entre os diferentes tipos de meios de comunicação no espaço de difusão”.

Dificilmente a RSF pode ser acusada de organização chavista. Pelo contrário, desde setores de esquerda afins aos governos de Cuba e Venezuela, é acusada de ser uma entidade “de fachada” da CIA estadunidense e de receber financiamento do Departamento de Estado norte-americano. O ranking da liberdade de imprensa em 179 países, onde o Chile aparece no lugar 60, relega a Venezuela ao posto 117 e Cuba ao 171. Estados Unidos ocupa a posição número 32, ainda que a RSF tenha levado a cabo uma campanha de defesa do soldado Bradley Manning, condenado a 35 anos de prisão por uma corte marcial estadunidense, sob acusações de espionagem pelas informações que vazou ao WikiLeaks.

O substantivo é que o diagnóstico sobre a falta de pluralismo no sistema midiático chileno é compartilhado pelos mais variados setores e só a partir de uma visão tendenciosa, como a que abunda nos editoriais do El Mercurio, se podem negar os perigos reais que representa a concentração da propriedade dos meios tradicionais.

A imprensa e a televisão chilenas estão contaminadas de afãs censuradores, que inclusive chegam a um canal supostamente público como TVN, manejado já não com critérios somente comerciais, mas com a lógica empresarial que permeia todo o atual governo. A vergonhosa censura à exibição de “El diario de Agustín”, o fim escondido do programa “La nueva belleza de pensar” e o patético episódio dos “problemas técnicos” que derivaram em mutilações do documental “Nostalgia de la luz”, são atos atentatórios à liberdade de expressão.

Não é uma simples anedota que o Canal 13, do grupo Luksic, com uma direção encabeçada pelo militante do PPD e ex-ministro da Fazenda Nicolás Eyzaguirre, censure um programa de investigação jornalística que denuncia más práticas de empresas produtoras de alimentos de consumo massivo. O que esse fato pôs de manifesto é a contradição implícita entre a liberdade de informação e a apropriação dos meios de comunicação por grandes grupos econômicos.

Quando o El Mercurio ataca o rascunho programático da Nueva Mayoría, lança advertências, implícitas chantagens em termos de suas pautas de cobertura da campanha eleitoral e, sem dúvida, busca também que no heterogêneo comando de Michelle Bachelet se imponham figuras moderadas e, obviamente “antichavistas”. Entre eles René Cortázar, outro ex-ministro e membro da direção do Canal 13 que, segundo o ex-senador Ricardo Hormazábal não está ali representando a Democracia Cristã, mas o grupo Luksic.

Juan Somavía, até há pouco diretor geral da Organização Internacional do Trabalho, integrante também do comando bacheletista, teve a honra, nos anos 80, de acompanhar Gabriel García Márquez como membro da comissão redatora do Relatório McBride, famoso documento da Unesco que colocou no debate internacional o tema da democratização das comunicações. Uma matéria pendente no Chile que deve ser debatida de frente ao país nesta hora de promessas de mudanças, à margem dos interessados “alarmes” do El Mercurio.


Notas 

(1) Nueva Mayoría, o conglomerado político que respalda a candidatura presidencial de Michelle Bachelet, integrado pelos partidos da Concertação Democrática - Democracia Cristã, Socialista, Radical Socialdemocrata e Partido pela Democracia (PPD)-, mais o Partido Comunista, o Movimento Amplo Social e a Esquerda Cidadã.

(2) Coalisão política da direita chilena.

(3) El Mercurio, principal jornal chileno, desde o ano de 1875 propriedade da família Edwards. Agustín Edwards Eastman (85 anos), presidente da empresa desde 1956, conspirou junto a Henry Kissinger contra o governo da Unidade Popular e recebeu financiamento da CIA, segundo consigna o censurado documentário "El diario de Agustín".


*Jornalista. Ex-acadêmico do Instituto da Comunicação e Imagem, Universidade do Chile. Diretor da Escola de Jornalismo desta universidade desde 2003 até 2007. Entre 1978 e 2006, desempenhou funções de editor e correspondente da IPS em Quito, Roma, San José da Costa Rica e Santiago do Chile.

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