sábado, 7 de setembro de 2013

O sonho vai à rua


Conselheiro de Martin Luther King ensina que a internet não substitui a força das massas, e as multidões é que acabam fazendo a diferença

Jamil Chade

Meninos, eu vi. Manifestante comemora os 50 anos da marcha de MLK, na qual esteve  - Jim Lo Scalzo/EFE

Meninos, eu vi. Manifestante comemora os 50 anos da marcha de MLK, na qual esteve
Um sonho que não se tornou realidade universal. Um sonho que, na verdade, ainda é pesadelo para muitos. Mas um sonho que necessita ser alimentado, principalmente por uma nova geração de líderes. Cinquenta anos depois do discurso de Martin Luther King que se transformaria num ponto de virada na luta nos EUA por igualdade racial, o braço direito do pastor americano e a pessoa que escreveu parte daquele discurso, Clarence Jones, insiste que o legado daquelas palavras de King continua mais vivo que nunca e a sociedade precisa sair às ruas para protestar: “Mudanças podem ocorrer”.

Em seu discurso no dia 28 de agosto de 1963, aos pés do memorial a Abraham Lincoln, em Washington, King apelou por tolerância racial e para que as pessoas não fossem julgadas pela cor de pele, mas pelo “conteúdo de seu caráter”. Acima de tudo, fez questão de marcar oposição a ações violentas. Sua luta acabou sendo fundamental na abolição de leis nos EUA que discriminavam a população negra.

Clarence Jones acompanhou tudo aquilo “sete dias por semana, 24 horas por dia”.  Nascido em 1931, ele foi testemunha e ator de um capítulo fundamental da história dos Estados Unidos. Escreveu parte do discurso que entraria para a história, foi o conselheiro pessoal de King, seu advogado e, acima de tudo, amigo inseparável. Hoje, ele dá um curso na Universidade Stanford - Da Escravidão a Obama. Nessa semana, foi recebido pelo presidente Barack Obama para marcar os 50 anos de um dos discursos mais importantes do século 20. Antes, conversou com o Aliás durante uma passagem por Genebra.

O sonho
“Eu não sabia de nada. Estava à direita de King, a uns 15 metros dele. Quando ouvi suas primeiras palavras, percebi que ele estava usando não só palavras soltas, mas também sentenças e parágrafos de um texto que entreguei a ele na noite anterior e sugeri que utilizasse. O texto não era nada brilhante, mas um resumo de coisas que falamos por semanas e mesmo naquela noite sobre a direção que seu discurso deveria tomar. No fundo, aquele papel que lhe entreguei se transformou nos sete primeiros parágrafos do discurso. Ele adicionou coisas depois. Enquanto falava, havia uma pessoa que não aparece nas imagens guardadas que gritava: ‘Martin, fale sobre o sonho, fale sobre o sonho’. De repente, vi que ele moveu os papéis do discurso para a lateral e olhou para os milhares de pessoas que estavam em Washington. Naquele momento, eu disse para a pessoa a meu lado: ‘Essa multidão não conhece King. Mas eles estão prestes a ouvi-lo falar como pastor’. Quando ele começou a falar de forma espontânea, sua linguagem corporal mudou. A verdade é que, salvo o início do texto, o discurso que King tinha programado para fazer naquele dia jamais foi lido. Tudo o que entrou para a história foi espontâneo. Só quando ia terminando de falar é que ele olhou de novo para os papéis e se referiu a um poema: ‘Free at last, Free at last, Free at last’.

Força cósmica
“Tudo o que até hoje é celebrado daquele discurso, portanto, é autêntico. Agora, o que fez aquela fala ser tão extraordinária?Estávamos juntos sete dias por semana, quase 24 horas por dia. Ou seja, eu já o tinha ouvido discursar em centenas de ocasiões, mas nunca daquela forma. Era como se uma força cósmica transcendental tivesse tomado aquele corpo e aquela voz. Foi a confluência de fatores que levou àquilo. Primeiro, ele estava falando nos degraus do memorial de Lincoln, que havia emancipado os escravos cem anos antes. Ele discursava para quase 300 mil pessoas, a maior reunião até aquele momento na história americana. Para completar, 25% dos que o ouviam eram brancos. As pessoas tinham vindo de todos os lugares do país, depois de meses de luta e ira contra a segregação racial.  King também sabia que, entre elas, havia gente que acabara de sair de prisões. O discurso foi um apelo à consciência da América. Ele estava cutucando: ‘Que tipo de país somos? Podemos ser melhores’.

Um leão
“King foi tirado de nós antes que cumprisse sua missão. Mas era um jovem leão extraordinário. Tudo o que ele fez o fez praticamente em 12 anos e 4 meses. Para mim, salvo Lincoln, Martin Luther King pode ter feito mais para conseguir justiça e igualdade política, social e racial que qualquer outra pessoa ou evento nos últimos 400 anos de história americana. Se você olhar para o céu durante a noite, a chance de ver uma estrela cadente é mínima. Martin Luther King era isso, uma estrela rara, uma pessoa sui generis. Nunca mais veremos alguém assim. Frequentemente me perguntam quem poderia substituí-lo. Eu apenas respondo: quem é hoje que pode substituir Michelangelo, Galileu, Mozart, Aristóteles? Ele nos desafiou a ser o melhor que podíamos como nação e mostrou a contradição entre o tratamento dado aos afro-americanos e os preceitos da nossa Constituição. Foi o compasso moral da nação, criando uma sociedade em que a cor seria irrelevante, sempre com base na capacidade de cada um e no respeito. Uma vez ele me disse: me recuso a aceitar o desespero como resposta final às ambiguidades da história ou da natureza humana.

Afro-americano no poder
“Em 2008, estava na casa de um colega da universidade assistindo aos resultados da eleição quando uma das redes declarou que o senador Obama havia obtido número suficiente de votos para ser presidente. Muita gente naquela sala começou a chorar. Eu também. E alguém me perguntou: professor Jones, o senhor achou que viveria para ver um afro-americano presidente dos Estados Unidos? Eu disse: ‘Não’. Mas também disse que minhas lágrimas não eram pela eleição de Obama. Eram por todos aqueles que conheci pessoalmente e não estavam mais vivos, mas tornaram aquela eleição possível. Pessoas como Martin Luther King e tantos outros.

50 anos depois
“Apesar de todo o avanço na ciência, nas telecomunicações, na medicina, na produção de alimentos, na ida do homem ao espaço, o fato é que o desafio existencial do século 21 é se vamos nos comprometer a adotar políticas que incentivem a não violência como uma escolha racional para resolver disputas entre nações. King resumiu um dilema moral em seu discurso. Ele lembrou que a humanidade aprendeu a voar como os pássaros, mas não aprendeu a simples arte de andar na terra como irmãos. O legado do compromisso da não violência de King continua sem saída. Nossa habilidade de sobreviver só tem duas opções: a não violência ou a não existência. O legado de King é a sua lembrança de que a violência não é a opção para resolver conflitos inevitáveis. Sua base da não violência é a capacidade de amar. Não é amar no sentido romântico. Mas ter a capacidade de amar uma pessoa que faça algo odiável. Amar a pessoa, mas odiar o que ela fez. Se acharmos que o homem tem o direito de viver, temos de encontrar uma alternativa à guerra e à destruição. O Comitê do Prêmio Nobel da Paz chegou a dizer que ele era a primeira pessoa no Ocidente a mostrar que uma luta pode ser conduzida sem violência. Nos Estados Unidos, temos evidências empíricas de que muitas escolhas políticas que tomamos nos últimos anos não estão funcionando, como o combate às drogas, o controle das armas, a disparidade de renda, nossa política externa no Oriente Médio. Em muitos casos, a violência está adormecida nas profundezas da sociedade, esperando pela erupção. Cidadãos e governos podem escolher entre apenas assistir a tudo isso, fechando olhos e ouvidos, ou aceitar o desafio que King lhes apresenta. Se Martin Luther King estivesse vivo hoje, cobriria o rosto com as mãos e choraria. O apelo que fez à América vale para o mundo, na reivindicação pelos direitos humanos, contra o trabalho escravo, contra a violência religiosa, contra o uso de armas químicas. Sua mensagem hoje seria consistente: parem com a violência. Mas, no século 21, ainda continuamos a debater entre violência ou não violência para realizar mudanças sociais profundas. Estudos mostram que, de 320 casos avaliados entre 1900 a 2006, a resistência não violenta foi estrategicamente superior em 60% dos casos. O que isso quer dizer? Que o sucesso é a participação em massa, que faz derrubar estruturas políticas.

Liderança
“O que vemos é uma nova forma de reivindicar as coisas. Mas gostaria de dizer que a liderança de um movimento social ou político é indispensável para fazer avançar a agenda de um movimento. É verdade que, hoje, esses movimentos têm instrumentos que nem sonhávamos ter. Vi que no movimento Occupy Wall Street um novo paradigma foi estabelecido. Talvez funcione. Mas, pela experiência que tenho, muitos dos problemas que enfrentamos hoje são causados pelo fracasso do exercício da liderança.

E-mails e as ruas
“Em 1963, se tivéssemos internet, Facebook, celulares, quantos estariam em Washington naquele dia? Mas volto a insistir que a internet não é um substituto ao poder político de colocar pessoas nas ruas. Apesar de ser importante ter a tecnologia, as injustiças não vão desaparecer  com um e-mail dizendo ‘Por favor, pare com isso’. Quer fazer a diferença? Junte 5 mil pessoas e vá com elas ao escritório do político que vocês elegeram. Diga a ele que não sairão de lá enquanto ele não mudar de opinião. Isso é o poder político. O movimento gay funcionou porque não ficaram só mandando e-mails. King era um grande orador. Mas sua maior qualidade era saber que a única forma de fazer um governo reagir era colocar pessoas nas ruas. Não foram cartas ao escritório de Hosni Mubarak que o fizeram cair. Se King estivesse vivo hoje, falaria sobre o fim da violência. Não aceitaria que algumas coisas não pudessem ser negociadas. Eu quero dizer uma coisa: o discurso ‘Eu tenho um sonho’ não foi pronunciado no passado nem no presente, mas no futuro. Portanto, as mudanças podem ocorrer.

Discriminação no Brasil
“A sociedade precisa se mobilizar mais. Um longo caminho já foi percorrido no Brasil. Mas me parece que há muito a ser feito. Para se ter um presidente afro-brasileiro, é preciso que primeiro haja um movimento, e esse movimento tem de ser forte. ”

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