A morte e a repressão foram os dois pilares para o apaziguamento das vozes do povo sírio. Diariamente, as pessoas debatem entre a tirania interna do regime e a intervenção estrangeira de seus inimigos, criando uma cruel indiferença midiática, que levou as narrativas da revolução a vocabulários que incluem termos como "intervenção militar", "bastiões do regime", "espaços estratégicos", entre outros, que se esqueceram da inspiração fundamental do movimento popular, que incluía, e inclui ainda, um tipo de governo "justo", uma forma de vida "digna" e, talvez a mais importante, a conquista de uma "independência política", que permita aos povos sírios concretizarem mecanismos de mobilização e troca de regime sem a necessidade de uma intervenção estrangeira.
Moisés Garduño García
Moisés Garduño García
Mas aproveitando o objetivo da revolução, o regime e seus inimigos sequestraram a mencionada agenda e a tornaram um cenário de ambições geopolíticas muito parecido ao que se forjou no Iraque há dez anos. Hoje em dia, os atores enfrentados tomam distância e posição quando falam de uma "possível intervenção pela defesa do povo sírio", "o uso de armas químicas por parte do regime", "o topo das linhas vermelhas", "a imposição de sanções econômicas", "enviados especiais da ONU", entre outras questões, que não fazem mais que lembrar velhas estratégias para novos conflitos; novos conflitos causados pelas mesmas elites que hoje se apresentam como "libertadoras" e favoráveis à primavera árabe.
Grosso modo, a "iraquização" da Síria não é outra coisa senão a criação de um cenário onde, como abutres, os atores internacionais em disputam chegam e se alimentam do moribundo cidadão sírio que lutou contra seu próprio irmão, devido à divisão ideológica semeada desde fora de suas fronteiras. A única diferença nessa metáfora é que os abutres são, além de oportunistas e necrófilos, os mesmos causadores das mortes de suas vítimas e, de maneira cínica e irresponsável, criadores das bombas que explodem diariamente nas casas, bairros, ruas e avenidas.
Assim, não se trata somente do uso de armas químicas na Síria, mas de cada bala que sai dos canhões e fuzis de manufatura russa, iraniana ou estadunidense ser o que verdadeiramente acaba com a revolução síria.
O slogan das forças extra-territoriais que diz "ser necessário intervir pelo bem da libertação do povo sírio" é uma falácia e um risco, ao mesmo tempo. Uma falácia porque não há tal liberação desde que o islamismo do Hizbollah ou do Catar, ou a guerra "preventiva e libertadora" dos EUA e sua democracia, demonstraram seu fracasso uma e outra vez, para conseguir a libertação permanente dos povos árabes, levando-os, pelo contrário, a condutas mercenárias, de insegurança e corrupção que se alimentam do mesmo financiamento e ideologias desses líderes que tanto agradam aos meios de comunicação internacionais.
É também um risco porque a receita da intervenção estrangeira sempre demonstrou que o remédio é pior que a doença quando se derruba um tirano e se dá boas vindas a um regime de incerteza e bruma política que, maquiado de transição democrática, somente traz obstáculos para que as pessoas façam uso e recuperação da própria voz, no sentido de sua própria memória histórica e seu próprio destino, como Sujeito Coletivo.
Pelo anterior, pouco importa a meta-narrativa que envolva enfoques islamistas, arabistas, nacionalistas ou de outro tipo que anule o desejo do povo sírio de entender sua revolução e a situação na qual se encontra. O que agora preocupa (porque ainda há coisas com que se pode preocupar mais) é que a revolução síria involua e seja massacrada por uma intervenção militar, a partir dos EUA e do Catar, que implique, a partir de Damasco, Homs e Alepo, uma resposta das forças aliadas do regime sírio e tenha como resultado a fatídica desaparição total do pouco que resta do povo sírio, sua herança cultural e seu tecido econômico e social.
Ambos os discursos levantam a bandeira da emancipação, seja contra a tirania ou contra o imperialismo, mas o risco verdadeiro que ninguém enuncia em seus discursos, longe de uma implicação semântica, é justamente a desaparição das propostas dos revolucionários sírios, que iam ganhando força no terreno, diante da debilidade mostrada pelo regime, de um lado, e do desprestígio das forças estrangeiras nos bairros do país, por outro lado. Uma narrativa que ninguém resgata na imprensa internacional, muito menos nos meios de comunicação regionais, dado que sua visão do que se passa na Síria se aproxima mais de um investimento de longo prazo, para ganhar apoio moral entre suas respectivas audiências, do que de uma necessitada missão informativa, que nos aproxime da realidade neste território.
Certamente, o custo de uma intervenção armada na Síria é muito alto, o mais alto que um povo possa pagar se completado, e inclusive mais caro que o da morte dos mártires caídos nas praças, pelas mãos repressoras e terroristas, posto que a intervenção estrangeira hipoteca a vida das gerações futuras. Essa afirmação não significa um argumento a favor da tese conspiratória com a que navega o regime sírio, posto que as forças de Assad foram as primeiras em desenhar esse cenário sangrento e devastador que se descreve.
O que se quer dizer é que uma intervenção estrangeira nunca se desenvolve a favor do povo oprimido, pois esses agentes terminam transformando os oprimidos em opressores em uma cadeia interminável de sofrimento e repetição de estruturas de poder. Foi justamente o que ocorreu com a elite pós-colonial na região do Oriente Médio, que apresentou a si mesma como libertadora dos colonizadores ingleses e franceses, mas que terminaram governando igual ou pior que essas mesmas metrópoles quando, paradoxalmente, governaram sob forma monárquica e ditatorial, coisas que vemos se desestabilizando no Norte da África, hoje.
Por outro lado, mas não tão distante, a intervenção militar nunca, nem em suas formas mais humanitárias, mostrou avanços de libertação em locais como Gaza, Bahrein, Iraque ou Afeganistão, e não haverá de fazê-lo na Síria, a menos que acidentalmente. Elaboramos: a Síria não é o Iraque nem a Líbia e, no contexto atual de revolução, se trata de um país que não tem grandes recursos naturais que se possam utilizar como um reembolso futuro de um "ato nobre", como o que pretende fazer com uma intervenção militar.
Por tal motivo, o enfoque intervencionista na Síria vê na derrocada de Bashar al Assad uma queda controlada que se possa manipular suficientemente bem, como para não dar vez a que uma narrativa revolucionária de Damasco ressurja e possa se estender até os sensíveis Estados da Península Arábica, pra não mencionar Líbano e Israel, pondo em sérias pressões os interesses desses "libertadores ocidentais" em terras árabes petroleiras.
Por tal motivo, o cenário de uma Síria interferida militarmente também é um risco para os próprios especuladores dessa tese, a menos que tenham bons cálculos que demonstrem, em palavras cruas, que "os sírios ficaram se matando uns aos outros com tanta insistência e ferocidade que estão adequadamente prontos para sofrerem intervenção e sufoco, a fim de abraçarem a intromissão do Ocidente".
Finalmente, apesar de os custos da intervenção já estarem na mesa, os riscos também estão sendo avaliados pelos seus impulsionadores, dando vazão para que o contexto e o desgastem facilitem as coisas para os EUA e as petro-monarquias. Mas se se espera que essa intervenção militar possa esmagar tanto o regime como os jovens revolucionários, não está demais pensar que um ato de tal magnitude também possa abrir a cloaca que geopoliticamente constitui a Síria para o mundo árabe, conseguindo, paradoxalmente, que a marcha da chamada "primavera árabe" superasse as barreiras do Mediterrâneo e pudesse se inserir plenamente nas águas do Golfo, alcançando seus similares em Bahrein, Arábia Saudita e Irã, cujas elites estariam tragadas por "sua própria libertação da Síria", criando espaços de ação que grande parte da coletividade nas ruas daqueles países, pragmaticamente, também está esperando.
Esse é o dilema da intervenção na Síria e a importância desse povo para a região, um povo que está dando literalmente seu sangue e sua vida para alcançar o estado de libertação permanente que muitos vizinhos começaram a dar e estão tratando de manter, ante a chegada de táticas contrarrevolucionárias que tendem a dividir as sociedades pluridiversas, com vistas a justificar a necessidade de uma linha dura, como acontece no Egito, Iraque e Afeganistão e outros povos que seguem em sua luta emancipatória, física e epistemologicamente.
Moisés Garduño García é professor na Universidade Nacional Autônoma do México e mestre em Estudos do Oriente Médio.
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