domingo, 5 de fevereiro de 2012

CORONEL PEDRO JOSÉ ABOUDIB (1873–1947) 3 – MEMÓRIA DA IMIGRAÇÃO LIBANESA



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Chegando à capital espírito-santense, não pude esconder a decepção que me causou. Ruas sem calçamento, mal iluminadas, nenhum sinal de prosperidade que eu ambicionava. Meu amigo, porém, afirmou-me ser o Espírito Santo um estado de grande futuro e, por isso, resolvi embrenhar-me pelo interior em busca de pouso para me estabelecer. Aluguei um animal de montaria na velha Capixaba, bairro junto ao cais de Vitória, assim denominada, que deu origem ao atual patronímico dos espírito-santenses: e pus-me a caminho, fazendo o percurso sozinho, auxiliado por um pequeno manual de conversação francês-português. Nas cidades de Serra e Nova Almeida, nada de interessante me deteve e por isso tomei rumo de Alfredo Chaves, cujas informações me pareceram mais animadoras.

Uma tarde, quase ao anoitecer, detive-me para jantar e passar a noite na fazenda São João do Jaboti, a beira da estrada, onde encontrei o bom acolhimento de costume na terra. Ai, por inclinação da idade, aproximei-me do jovem filho da casa, Joaquim Lima que induziu-me a ficar em Guarapari, perto do mar, escoadouro natural dos produtos da região ainda fértil.

No dia seguinte para lá rumamos e, tendo me agradado do lugar, procurei uma casa para me instalar. Sempre auxiliado pelo meu amigo Quincas Lima, consegui uma ao preço de vinte mil reis mensais.

Voltei então a Vitória em busca da bagagem e, tendo adquirido um animal para sela e carga, comecei a negociar com pequeno estoque trazido de Marselha, ora na cidade, ora viajando pelo centro do município. Por muitos anos serviu-me este burro adquirido por 170 mil réis, o qual me acordava todas as manhãs, à mesma hora, batendo a pata dianteira na porta de minha casa. Isto em agosto de 1889.

Em princípios de novembro, esgotadas as mercadorias, viajei para o Rio de Janeiro, embarcando no vapor ‘’Vera Londres’’ do Lloyd Brasileiro. Naquela época, a pequena cabotagem fazia escalas nos portos de São Mateus, Barra, Vitória, Guarapari, Benevente, Piúma, Itapemirim, Cabo Frio e São João da Barra, rumando para o Rio. Novamente instalado na casa do amigo Raimundo, comecei a fazer compras a crédito, apresentado por ele.

Certa manhã, conversando na sacada com meu conterrâneo, vimos passar a cavalo vários militares, em atitude marcial. Entre eles reconheceu Marechal Deodoro e Benjamim Constant, os quais, diziam-me, tinham graves responsabilidades no momento. Mais tarde, soubemos que a proclamação da República se fizera sem luta, tendo apenas ficado ferido o Barão de Ladário.

Notei que a República nos primeiros dias não deu aos brasileiros muita alegria. O povo queria bem ao Imperador que muito o merecia. Tivera a felicidade de vê-lo passar de carruagem pelo campo de Santana, no mês seguinte a minha chegada, sua fisionomia me impressionara. Em minha pouca idade e inexperiência não podia compreender o valor que nele descobriria mais tarde.

Nos primeiros dias de dezembro, regressei a Guarapari trazendo copioso sortimento (cerca de vinte contos) com o qual pude instalar-me. Durante quinze dias mantinha aberto meu estabelecimento na cidade e nos quinze restantes viajava; mascateando mercadorias. Meu objetivo era, antes de tudo, tornar-me conhecido no interior e arranjar freguesia para aumentar meu negócio na cidade. Assim permaneci até 1891.

Por essa época, aproveitando o decreto do Governo Provisório que facilitava aos estrangeiros a naturalização, desde que não apresentassem como tais nas Câmaras de suas municipalidades, tornei-me brasileiro. Assim fiz levado pelo fato de haver percebido o futuro deste grande e maravilhoso país, a hospitalidade generosa de seu povo bom e comunicativo. Não me lembro de que meu gesto de renúncia ao título de estrangeiro fosse no município, seguido por outros. Esta singularidade trouxe-me maiores simpatias entre a boa gente de Guarapari tendo mesmo um dos maiorais da terra, o Coronel Domingos Lima, que há muito me honrava com sua amizade, relatado o fato ao jovem político Moniz Freire, pouco depois de eleito presidente do Estado, no período governamental iniciado a 23 de maio de 1892.

Havia, no Guarapari desse tempo, certa vida de sociedade, pois além de sede da comarca, o comércio era florescente devido ao movimento do porto onde frequentemente ancoravam navios da frota de pequena cabotagem do Lloyd Brasileiro.

Apesar da existecia de dois bem arregimentados partidos, Conservador e Liberal na Monarquia, vivia-se como se numa só família. Cultivavam-se as boas maneiras e o bom gosto no trajar era peculiar às senhoras que, não raro, davam-se ao luxo de encomendar vestidos na capital e no Rio de Janeiro.

Seguidamente eu era convidado a fazer refeições em casa do Coronel Domingos Lima, que para várias legislaturas foi eleito deputado à Assembléia Estadual. Recordo-me que, em setembro de 1892, estando eu em Vitória em sua companhia, hospedados ambos no antigo Hotel de Europa, convidou-me a ir ao Palácio conhecer o presidentes, cujas qualidade enaltecia. Por modéstia recusei, mas por insistência sua, acompanhei-o até ao Palácio dos antigos Jesuítas, onde me surpreendi diante do presidente, moço de vinte e oito anos, irradiando simpatia profunda. Conquanto já me expressasse regulamente em português, preferiu o presidente Moniz Freire dirigir-me a palavra em francês. Admirou-se de, aos dezenove anos, já estar estabelecido em terra estranha e, mais ainda, sabendo que deixara o lar paterno com dezesseis. Contei-lhe então os motivos que me trouxeram ao Brasil, país pelo qual me sentia entusiasmado. Crivou-me de perguntas e não soube esconder sua admiração pela coragem, pelo adolescente que eu era, ao enfrentar sozinho o novo mundo. Comovido, voltou-se para o Coronel Domingos Lima dizendo: “Seu Domingos, faça por este moço tudo o que puder.” E, dirigindo-se a mim: Vem frequentemente a Vitória?

- Sim, Senhor Presidente.
- Pois bem: está convidado a visitar-me todas as vezes para tomar comigo uma xícara de café.

Recebi o convite como ordem que cumpri religiosamente. Assim foi se consolidando e estreitando uma amizade recíproca que permaneceu inalterável por longos anos na fortuna e na desgraça. Venero-lhe ainda a memória como a do mais querido amigo, o mais digno dos homens que conheci.

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