sexta-feira, 27 de julho de 2012

Quando Holywood cultivava sua fibra social




No entreguerras, alguns atores e diretores norte-americanos muito populares misturavam à sua ligação aos valores tradicionais uma clara sensibilidade progressista. O percurso do cineasta John Ford é testemunho disso

Édouard Waintrop
Na época do New Deal, nos anos 1930, dizer-se de esquerda ou demonstrar qualquer inclinação pelo Partido Comunista tinha um efeito positivo em alguns círculos de Los Angeles. Afinal, uma das consequências da passagem para o cinema falado tinha sido a chegada maciça de escritores vindos da costa leste, frequentemente oriundos da imigração europeia, e também de europeus que fugiam do nazismo.
Essa tendência inquietou rapidamente o Federal Bureau of Investigation (FBI), que chegou a montar um dossiê contra o diretor John Ford. Isso pode parecer estranho para aqueles que, lembrando-se dos filmes que o irlando-americano realizou depois da Segunda Guerra Mundial e de seus acentos marciais, veem nele um cineasta reacionário.
O interesse do FBI por esse filho de um organizador do Partido Democrata de Portland foi suscitado pelo nascimento da associação dos cineastas, a Screen Directors Guild (SDG), em 1935. Cineasta reconhecido, Ford era um de seus fundadores. Nenhum de seus sucessos dos anos 1910 e 1920 tinha, no entanto, traído a menor sensibilidade social: encontramos neles mais uma ideologia mid-west, que celebrava as viris virtudes rurais diante daquilo que o teórico populista do século XIX, William Cobbett, chamava de as "frivolidades afeminadas da metrópole".1
Durante a crise de 1929, Ford perdeu um pouco de dinheiro, mas continuou trabalhando e ganhando bem a vida. Depois, os problemas, principalmente financeiros, que pesavam sobre Hollywood se tornaram mais consistentes. Ford começou a criticar uma produção que era orientada apenas para a rentabilidade. Ele se radicalizou.
O diretor não chegou a se mostrar, como o ator James Cagney, a estrela desses anos, como um líder do Partido Comunista norte-americano:2 continuou animado por um anticomunismo sem falhas. Mas aos amigos, como o roteirista Philip Dunne, um homem de esquerda, confiou que era partidário do presidente Franklin Roosevelt, o artífice do New Deal.
Em dezembro de 1935, o cineasta King Vidor, um grande nome do cinema dos anos 1920 e 1930, recebeu em casa uns amigos. Ford se encontrava entre eles. Esses homens, alguns deles cineastas consideráveis, tinham a reputação de individualistas loucos. Isso não os impediu de criar, com um investimento de US$ 100 por cabeça, a SDG, "a fim de proteger", segundo as palavras do próprio Ford, "a integridade de sua profissão". Vidor foi eleito presidente. A iniciativa não foi aplaudida pelos donos dos estúdios.
A época foi ainda marcada pela Grande Depressão. Em todo o país, o patronato se mostrava agressivo contra os sindicatos e procurava questionar as conquistas sociais. Hollywood não escapava. Em março de 1934, a Associação dos Produtores de Filmes, em parceria com a Academy of Motion Pictures, tinha decidido impor reduções salariais de até 50%. Os sindicatos haviam protestado; pela primeira vez, em 13 de março, os técnicos pararam de trabalhar. O conflito foi curto e seu fim favorável aos grevistas. Foi esse sucesso que parece ter convencido alguns diretores a se organizar. Sua SDG, formada depois da associação dos atores (Screen Actors Guild) e a dos roteiristas (Screen Writers Guild), era considerada menos à esquerda que suas predecessoras. Ela, no entanto, incomodava os patrões das majors, que a acusavam de ser inspirada pelos comunistas...
Ford participou com fervor dos primeiros anos da SDG como tesoureiro. Exprimiu sua solidariedade com os outros assalariados dos estúdios, denunciou o desemprego que devastava o mundo do cinema e se opôs aos bancos que, segundo ele, eram quem dava as ordens atrás dos mogulshollywoodianos e organizavam a crise "para baixar os salários para o nível de 1910". Em 1935, começou também seu curto, mas real, período de engajamento político.
Todo o tempo, Ford tinha sido movido por uma verdadeira repugnância contra o establishment. Acrescente-se a isso a influência dos roteiristas Dudley Nichols e Philip Dunne, notoriamente progressistas, assim como suas discussões com o ator Will Rogers, que vinha do interior da América e defendia posições políticas originais. Satirista, crítico das transformações da vida norte-americana tanto em cena como na cidade, Rogers, que reivindicava suas raízes indígenas, tinha quase sido candidato à presidência dos Estados Unidos em 1932. No cinema, no qual ele iniciou carreira em 1918, esse homem magro, de cabelos grisalhos e sorriso tímido era, logo atrás de Shirley Temple, o ator que atraía mais público para as salas.
Os valores que ele defendia eram parecidos com os do People's Party, que tinha surgido no fim do século precedente e que, mesmo tendo desaparecido depois, sobrevivia no coração de alguns "conservadores de esquerda". Anticapitalista, antirracista, antiautoritário e vinculado aos ideais pioneiros, esse partido desconfiava do desenvolvimentoeconômico e do sistema salarial, que julgava incompatíveis com a liberdade e a democracia norte-americana. Ele defendia uma república de pequenos proprietários, de cooperativas, e uma maior igualdade. Nessa linha, o ator cultivava um bom senso popular, professava respeito pela tradição, pelos valores morais simples, desconfiava da política quando se afastava dos cidadãos, rejeitava o puritanismo e mostrava um grande apetite por justiça social. Ford lhe deu o papel principal em três filmes: Doctor Bull (1933), Judge Priest (1934) e Steamboat round the bend (1935), mistos de comédia e drama, injustamente esquecidos. O ator participou da escrita do roteiro. Nos dois últimos, fato raríssimo para a época, ele deu a réplica a Stepin' Fetchit, um ator negro, seu alter ego para o humor. Rogers morreu em um acidente de avião em 1935. O diretor continuou fiel às ideias do amigo - ao menos por algum tempo.
Pró-operário e democrático
No ano seguinte, Ford adaptou O delator, um romance de seu primo Liam O'Flaherty, um irlandês de esquerda. Dirigiu em seguida, para a RKO, Jornadas amargas,depois voltou para a Fox, dirigida por Darryl F. Zanuck. As relações com esse produtor autoritário foram inicialmente tempestuosas; depois, os dois homens se domaram. Zanuck admirava Ford, e este se sentia bem em uma empresa dirigida por um homem paradoxal, ao mesmo tempo republicano e sensível aos assuntos sociais. "Com ele, Ford rodou seus filmes diferentes, mais diretos, mais emocionantes. Tanto por gosto quanto por obrigação, ele se concentrou na história norte-americana e em assuntos com forte conotação social. Entre 1935 e 1941, ele conheceu um triunfo artístico com No tempo das diligências, A mocidade de Lincoln, As vinhas da irae Como era verde o meu vale."3 No primeiro filme - Stagecoach na versão original -, Ford se entregava a uma crítica social afiada, com uma bela caricatura de um banqueiro carcomido, massacrando alegremente os índios. No segundo - Young mister Lincoln-, ele celebrava os ideais de tolerância e a pessoa de Abraham Lincoln. No terceiro, adaptação do célebre romance de John Steinbeck, ele fustigava a injustiça social; no último, celebrava a classe operária por meio dos mineradores.
O engajamento pró-operário e democrático de Ford não se manifestou apenas em seus filmes. Em 1936, opondo-se ao apoio da Igreja ao levante militar de extrema direita contra o governo espanhol legítimo, esse estranho católico participou da fundação do Comitê dos Artistas de Cinema para Ajudar a Espanha Republicana. Estava rodeado por seu amigo Dudley Nichols e pelo romancista Dashiell Hammett, autor do Falcão maltês e de Seara vermelha, que trabalhava como roteirista em Hollywood.4 Nesse grupo figurava também Lester Cole, que em 1948 seria um dos "Dez de Hollywood", um grupo de roteiristas, produtores e cineastas condenados à prisão por terem se recusado a testemunhar sobre seu pertencimento ao Partido Comunista.
Quando Ernest Hemingway, autor do comentário de The Spanish earth, rodado por Joris Ivens em apoio aos republicanos, veio a Hollywood levantar fundos, Ford doou uma ambulância. Ele manteve também uma correspondência com seu sobrinho, Bob Ford, que tinha atravessado o Atlântico para juntar-se às brigadas internacionais. O cineasta o felicitou por sua coragem e se declarou "definitivamente socialista e democrata - sempre de esquerda". Acrescentou, no entanto, que o que estava acontecendo na União Soviética naquele momento (as grandes eliminações, o processo de Moscou) o tinha convencido de que o comunismo também não era a solução.
Em 1938, Ford foi eleito vice-presidente do Motion Picture Democratic Committee, fundado para lutar contra o fascismo e o racismo e apoiar o movimento pelos direitos cívicos. Hammett era o presidente. O pacto germano-soviético de 1939 fez rapidamente esse comitê se dividir em dois blocos opostos, antes de enfraquecer a esquerda hollywoodiana como um todo.
A época estava mudando. A direita conservadora tinha retomado fôlego. A Comissão das Atividades Antiamericanas acabara de ser criada; a guerra era uma ameaça. Ford iria se engajar completamente no Office of Strategic Services (OSS), o ancestral da Central Intelligence Agency (CIA) - primeiro por antifascismo, depois por patriotismo. Ele terminou com o título de almirante.
Em 1944, ele demonstrou um anticomunismo revigorado ao aderir, desde a sua criação (com Clark Gable, Gary Cooper...), à muito direitista Motion Picture Alliance. Dava as costas, assim, a seus amigos dos anos 1930. Como escreveu Joseph McBride: "Ele tinha passado quatro anos na companhia dos oficiais superiores e se uniu à causa do OSS, o que levou a uma mudança profunda de suas opiniões políticas".5 Isso não impediu, no entanto, sob o macarthismo, que Ford recusasse a caça às bruxas contra os comunistas. Ele até criticou aqueles entre seus colegas que, como Cecil B. DeMille, foram cúmplices.
Édouard Waintrop é delegado-geral da Quinzaine des Réalisateurs e autor do blog Cinoque (cinoque.blogs.liberation.fr)
Ilustração: reprodução
1 Citado por Christopher Lasch, Le seul et vrai paradis. Une histoire de l'idéologie du progrès et de ses critiques [O único e verdadeiro paraíso. Uma história da ideologia do progresso e de seus críticos], Champs Flammarion, Paris, 2006 [1991].
2 Cf. Paul Buhle e Dave Wagner, Radical Hollywood,The New Press, Nova York, 2003; e Patrick McGilligan, Cagney: the actor as auteur [Cagney: o ator como autor], Barnes & Co, San Diego, 1975.
3 Joseph McBride, À la recherche de John Ford [Em busca de John Ford], Actes Sud/Institut Lumière, Arles/Lyon, 2007.
4 Ler Jerome Charyn, "Hammett, le colt et le style" [Hammett, a pistola e o estilo], Le Monde Diplomatique, abr. 2011.
5 Joseph McBride, op. cit.
Assunto Visualizações Data - Hora Nº do texto Postagem
Cultura 69 20/07/2012 -20h 13001 Ricardo Alvarez


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