Em entrevista à Carta Maior, o economista egípcio da Universidade de Denison (EUA), Fadhel Kaboub, fala sobre o pano de fundo da crise política do país. Segundo ele, a proscrição da Irmandade Muçulmana decretada nesta segunda-feira (23) e a detenção de milhares de seus dirigentes não ajudará em nada a solucionar os problemas de fundo do Egito. “Temos uma política neoliberal que está aprofundando a desigualdade”. Por Marcelo Justo, de Londres.
Marcelo Justo
Londres - A proscrição da Irmandade Muçulmana nesta segunda-feira (23) e a detenção de milhares de seus dirigentes não ajudará em nada a solucionar os problemas de fundo do Egito. O governo islâmico de Mohammed Morsi, derrubado pelos militares no dia 3 de julho, tinha uma coisa em comum com a ditadura de Hosni Mubarak que, em 2011, perdeu o poder como consequência de um levante popular: os dois governos aderiram ao credo neoliberal. O atual governo ditatorial obteve uma ajuda dos países árabes no valor de 12 bilhões de dólares e conseguiu evitar o abraço do Fundo Monetário Internacional, mas, no momento, não há nenhuma indicação de que vá buscar um caminho alternativo.
A Carta Maior conversou com o economista egípcio da Universidade de Denison, dos Estados Unidos, Fadhel Kaboub, sobre o pano de fundo da crise política do país.
Há algum sinal de mudança da política econômica neoliberal que esteve por trás das quedas de Mubarak e Morsi?
Não. Com o governo de Morsi já tivemos um aprofundamento da agenda neoliberal tanto no plano do livre mercado como no de livre comércio. Seu programa se baseava na promoção do turismo, na empresa privada, no investimento estrangeiro e na abertura comercial. Assim como Mubarak, o acento estava em sair da crise pela via exportadora e para isso se necessitava de investimento estrangeiro para atrair, para dar um exemplo, companhias têxteis com o atrativo de uma mão de obra muito barata. O atual governo não é tão explícito porque não sabe como pode reagir o povo. Foram cautelosos e receberam bastante ajuda do Kuwait, da Arábia Saudita e dos Estados, o que lhes permitiu evitar o FMI. Sem eles, o banco central egípcio teria quebrado.
Muitos países procuram sair da crise pela via exportadora. Por que este modelo é tão prejudicial para o Egito?
O problema para países em desenvolvimento que não podem competir com as nações desenvolvidas é que, quanto mais se abre a economia e se busca acelerar as exportações, mais se terminam acelerando as importações. É o que acontece com o Egito com seu déficit comercial que disparou desde que iniciou a abertura com Mubarak. De modo que, para atingir um equilíbrio, precisamos importar uma quantidade enorme de matéria prima, tecnologia e outros bens. No Egito, tudo isso é mais grave porque o país apresenta dois grandes déficits: o déficit energético e o de alimentos. O Egito é o primeiro importador de trigo e está entre os cinco primeiros importadores de milho. Precisamos de moeda forte para comprá-los no mercado internacional. Com os preços altos com que são vendidos nos mercados, terminamos importando inflação. Esta inflação dos preços dos alimentos foi uma das fontes dos protestos.
Mas o modelo anterior tampouco conseguiu resolver os problemas do Egito.
No sistema estatista anterior havia uma espécie de acordo tácito entre o ditador e a população, na qual o governo garantia uma relativa prosperidade e uma razoável seguridade social em troca de que a população não protestasse pela falta de liberdade. Agora temos uma política neoliberal que está golpeando as classes médias baixas e os mais pobres, aprofundando a desigualdade. Além disso, não temos nem democracia nem liberdade. O acordo foi rompido e isso acelerou a crise política.
Em seu trabalho, você fala de um problema estrutural de balança comercial deficitária. O Egito exporta menos do que importa e até agora se endividou ou pediu ajuda para resolver este déficit. Que outra saída há além de pedir emprestado, seja aos países árabes ou ao FMI?
O problema não vai desparecer pedindo dinheiro emprestado. A única maneira de eliminar o déficit de alimentos é incrementar a produção doméstica. Esta é uma estratégia de longo prazo porque implica uma mudança cultural pela qual se possam substituir os produtos que importamos por colheitas de produtos egípcios. Precisamos de uma política integral em matéria alimentar, agrícola, ambiental e habitacional. Tudo isso sequer está sendo pensado. Podemos manter a cabeça acima da água este ano, mas a deficiência estrutural de alimentos vai ocorrer no ano que vem novamente, não importa quanto dinheiro obtenhamos este ano dos países árabes ou do FMI.
Mas esse é o problema. O Egito precisa de dinheiro agora para solucionar seu déficit alimentar. Não pode esperar que estas políticas de longo prazo deem resultado. Por isso pede emprestado.
Sim, é certo, mas a política de longo prazo não está sendo proposta. Quando negociamos estes empréstimos com a Arábia Saudita, os EUA e o Kuwait precisamos fazê-lo pensando nas soluções de longo prazo como o investimento em energia ou em produtos agrícolas egípcios. Os empréstimos também tem que estar vinculados a este plano. Por isso falo de soberania financeira. Temos que recuperar a capacidade de imprimir dinheiro e controlar nossa dívida e nossos investimentos, algo que a política neoliberal não permite.
Uma parte do problema das contas do Egito é a dívida externa que você defende que deveria ser declarada “odiosa”. Essa proposta seguiria o modelo do Equador?
Exatamente. A ideia da dívida odiosa tem mais de 100 anos e se baseia em que, se uma dívida foi contraída sem que o povo a tenha respaldado, ela é uma dívida ilegítima se o dinheiro emprestado não beneficiou o povo, mas sim a elite governante e se aquele que emprestou sabia de que maneira o empréstimo seria utilizado. O tema é que, na prática, se necessita de um respaldo internacional muito forte para poder avançar nesta direção ou uma forte posição político-ideológica. Se os Estados Unidos apoiarem não há problemas. Foi o que aconteceu com a dívida do Iraque após a queda de Saddam Hussein quando os Estados Unidos pressionaram os países do Oriente Médio para que aceitassem o cancelamento da dívida iraquiana.
Se o atual governo seguir com a mesma agenda neoliberal, terá o mesmo destino?
Se não mudarmos de curso, a história se repetirá. A crise política agrava esta situação porque a agenda neoliberal se apoiava muito no turismo e no investimento estrangeiro que foram seriamente afetados pela repressão e pela violência.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
A Carta Maior conversou com o economista egípcio da Universidade de Denison, dos Estados Unidos, Fadhel Kaboub, sobre o pano de fundo da crise política do país.
Há algum sinal de mudança da política econômica neoliberal que esteve por trás das quedas de Mubarak e Morsi?
Não. Com o governo de Morsi já tivemos um aprofundamento da agenda neoliberal tanto no plano do livre mercado como no de livre comércio. Seu programa se baseava na promoção do turismo, na empresa privada, no investimento estrangeiro e na abertura comercial. Assim como Mubarak, o acento estava em sair da crise pela via exportadora e para isso se necessitava de investimento estrangeiro para atrair, para dar um exemplo, companhias têxteis com o atrativo de uma mão de obra muito barata. O atual governo não é tão explícito porque não sabe como pode reagir o povo. Foram cautelosos e receberam bastante ajuda do Kuwait, da Arábia Saudita e dos Estados, o que lhes permitiu evitar o FMI. Sem eles, o banco central egípcio teria quebrado.
Muitos países procuram sair da crise pela via exportadora. Por que este modelo é tão prejudicial para o Egito?
O problema para países em desenvolvimento que não podem competir com as nações desenvolvidas é que, quanto mais se abre a economia e se busca acelerar as exportações, mais se terminam acelerando as importações. É o que acontece com o Egito com seu déficit comercial que disparou desde que iniciou a abertura com Mubarak. De modo que, para atingir um equilíbrio, precisamos importar uma quantidade enorme de matéria prima, tecnologia e outros bens. No Egito, tudo isso é mais grave porque o país apresenta dois grandes déficits: o déficit energético e o de alimentos. O Egito é o primeiro importador de trigo e está entre os cinco primeiros importadores de milho. Precisamos de moeda forte para comprá-los no mercado internacional. Com os preços altos com que são vendidos nos mercados, terminamos importando inflação. Esta inflação dos preços dos alimentos foi uma das fontes dos protestos.
Mas o modelo anterior tampouco conseguiu resolver os problemas do Egito.
No sistema estatista anterior havia uma espécie de acordo tácito entre o ditador e a população, na qual o governo garantia uma relativa prosperidade e uma razoável seguridade social em troca de que a população não protestasse pela falta de liberdade. Agora temos uma política neoliberal que está golpeando as classes médias baixas e os mais pobres, aprofundando a desigualdade. Além disso, não temos nem democracia nem liberdade. O acordo foi rompido e isso acelerou a crise política.
Em seu trabalho, você fala de um problema estrutural de balança comercial deficitária. O Egito exporta menos do que importa e até agora se endividou ou pediu ajuda para resolver este déficit. Que outra saída há além de pedir emprestado, seja aos países árabes ou ao FMI?
O problema não vai desparecer pedindo dinheiro emprestado. A única maneira de eliminar o déficit de alimentos é incrementar a produção doméstica. Esta é uma estratégia de longo prazo porque implica uma mudança cultural pela qual se possam substituir os produtos que importamos por colheitas de produtos egípcios. Precisamos de uma política integral em matéria alimentar, agrícola, ambiental e habitacional. Tudo isso sequer está sendo pensado. Podemos manter a cabeça acima da água este ano, mas a deficiência estrutural de alimentos vai ocorrer no ano que vem novamente, não importa quanto dinheiro obtenhamos este ano dos países árabes ou do FMI.
Mas esse é o problema. O Egito precisa de dinheiro agora para solucionar seu déficit alimentar. Não pode esperar que estas políticas de longo prazo deem resultado. Por isso pede emprestado.
Sim, é certo, mas a política de longo prazo não está sendo proposta. Quando negociamos estes empréstimos com a Arábia Saudita, os EUA e o Kuwait precisamos fazê-lo pensando nas soluções de longo prazo como o investimento em energia ou em produtos agrícolas egípcios. Os empréstimos também tem que estar vinculados a este plano. Por isso falo de soberania financeira. Temos que recuperar a capacidade de imprimir dinheiro e controlar nossa dívida e nossos investimentos, algo que a política neoliberal não permite.
Uma parte do problema das contas do Egito é a dívida externa que você defende que deveria ser declarada “odiosa”. Essa proposta seguiria o modelo do Equador?
Exatamente. A ideia da dívida odiosa tem mais de 100 anos e se baseia em que, se uma dívida foi contraída sem que o povo a tenha respaldado, ela é uma dívida ilegítima se o dinheiro emprestado não beneficiou o povo, mas sim a elite governante e se aquele que emprestou sabia de que maneira o empréstimo seria utilizado. O tema é que, na prática, se necessita de um respaldo internacional muito forte para poder avançar nesta direção ou uma forte posição político-ideológica. Se os Estados Unidos apoiarem não há problemas. Foi o que aconteceu com a dívida do Iraque após a queda de Saddam Hussein quando os Estados Unidos pressionaram os países do Oriente Médio para que aceitassem o cancelamento da dívida iraquiana.
Se o atual governo seguir com a mesma agenda neoliberal, terá o mesmo destino?
Se não mudarmos de curso, a história se repetirá. A crise política agrava esta situação porque a agenda neoliberal se apoiava muito no turismo e no investimento estrangeiro que foram seriamente afetados pela repressão e pela violência.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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