quarta-feira, 4 de julho de 2012

Como a Medicina ainda controla o corpo das mulheres


Como a Medicina ainda controla o corpo das mulheres

Uma obstetra mostra como autoritarismo médico fere liberdade das mães — e ignora evidências estatísticas em favor do parto domiciliar 
Por IHU On-Line
As recentes discussões e manifestações acerca do parto domiciliar e a Marcha do Parto em Casa, realizada em São Paulo, tiveram o objetivo de “chamar atenção sobre a questão das escolhas no parto”, disse a obstetra Ana Cristina Duarte, à IHU On-Line. “Não defendo que as mulheres devam optar pelo parto domiciliar. Penso que devem optar por obter o máximo possível de informações sobre as possibilidades de nascimento, e fazer uma escolha de acordo com o que o coração delas diz”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, a obstetra enfatiza que os “centros obstétricos ainda carecem de direitos básicos dos direitos humanos”. Na teoria médica, assegura, “as mulheres têm direito de escolher o que vai acontecer com o corpo delas”. Entretanto, “na prática isso não funciona. (…) Quando a mulher entra no hospital para ter o seu bebê, seja no sistema público ou no sistema privado, o seu corpo é levado pelas circunstâncias e pelos protocolos que forem determinados por aquela instituição”.
Ana Duarte também critica a maneira como os médicos orientam as mulheres a escolherem o parto normal ou a cesariana, e enfatiza que o direito ao acompanhante, determinado por lei, também não é respeitado em muitos hospitais brasileiros. Além disso, informa que pesquisas já retratam casos de violência nas maternidades. “Pelo menos, 25% das mulheres sofreram algum tipo de abuso físico ou verbal dentro das maternidades”.
Ana Cristina Duarte é formada em Obstetrícia pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente atua no Grupo Samaúma – Maternidade Consciente, e no Grupo de Apoio à Materinidade Ativa – GAMA.
Confira a entrevista.
Como avalia as discussões acerca do parto domiciliar? Quais as vantagens e desvantagens para as mulheres que desejam que os filhos nasçam em casa?
Ana Cristina Duarte: A discussão toda do parto domiciliar está relacionada com o reconhecimento dessa opção para as mulheres, e a liberdade de elas escolherem onde e como querem ter o seu bebê. Essa liberdade de escolha ainda não é reconhecida pela sociedade. Existe o direito, mas as mulheres e a sociedade não entendem isso. Então, toda a discussão sobre o parto, a marcha realizada recentemente e a discussão do parto domiciliar são feitas para chamar atenção sobre a questão das escolhas no parto.
Não defendo que as mulheres devam optar pelo parto domiciliar. Penso que devem optar por obter o máximo possível de informações sobre as possibilidades de nascimento, e fazer uma escolha de acordo com o que o coração delas diz. Portanto, o melhor lugar para se ter o bebê é onde a mulher se sente mais segura. Se ela se sente mais segura na casa dela, precisa procurar opções para ter o bebê em casa. Mas, por outro lado, se sentir mais segura no hospital, é bom se informar que, primeiro, será muito difícil conseguir realizar um parto normal e, segundo, vai ser muito difícil fazer escolhas dentro do hospital.
Dentro de casa, as vantagens são que não há interferência de uma instituição, ou seja, o protocolo de uma instituição em cima de um processo que é natural. Todo o processo do parto passa sob o controle exclusivo da mãe, pois é ela quem determina as pessoas que estarão presentes. Então, em geral é um processo natural, a não ser que haja uma circunstância de risco iminente.

Por que muitos obstetras são contra o parto domiciliar? A senhora, como obstetra, como avalia esse posicionamento?
Ana Cristina Duarte: Porque não conhecem as evidências científicas e não querem conhecê-las. Usam argumentos falaciosos do tipo “eu já vi muita mulher morrer de hemorragia”. Enfim, são argumentos que não têm consistência lógica. As evidências dizem que o parto em casa é seguro, e o obstetra que não quiser ler e se atualizar, vai continuar falando que é perigoso.

É possível definir o perfil das mulheres que têm optado pelo parto normal e parto domiciliar? Percebe uma retomada deste tipo de parto? O que isso significa?
Ana Cristina Duarte: As mulheres que têm buscado o parto domiciliar são, em geral, de nível superior, com idade acima de trinta anos, profissionais liberais, que trabalham fora, e com o nível educacional bem elevado. São mulheres que pesquisam bastante, leem muito, compram livros, procuram em sites brasileiros e internacionais antes de fazer a sua escolha. Então, em geral, é um pessoal de nível cultural bastante elevado. São pessoas que já fazem escolhas diferentes para sua vida: muitas já têm profissões diferentes, como cineastas, produtoras, fotógrafas e têm também algumas pessoas comuns, como advogadas, médicas. Em geral são pessoas que já levam um tipo de vida diferente.
O parto normal na rede pública é “meio” obrigatório. A mulher só fará uma cesárea se o médico achar que tem que fazer. Portanto, a cesariana não é uma escolha para as mulheres. No sistema de saúde privado, as mulheres que escolhem o parto normal geralmente são aquelas que procuram informação, que leem muito, que acabam conhecendo os benefícios e sabendo que isso é melhor para a mãe e para o bebê. Essa escolha é uma tendência mundial. O Brasil é um dos últimos lugares onde está chegando esse movimento. Na Inglaterra e nos EUA, já se fala disso há 30 anos, e em países da Europa isso nunca deixou de ser opção. Em nível mundial há um crescimento dessa visão do parto como sendo um processo fisiológico e que, dentro das circunstâncias normais, não deveria ser hospitalizado. A própria internet tem ajudado as mulheres a acharem mais facilmente essas informações.

Como a discussão acerca do direito de escolha é vista hoje na obstetrícia? De modo geral, as mães têm o direito de decidir como querem que aconteça o nascimento de seus filhos?
Ana Cristina Duarte: Na verdade, em termos de direitos básicos humanos as mulheres têm direito de escolher o que vai acontecer com o corpo delas. A medicina enxerga também esse direito nos tratados de ética. A questão é que na prática isso não funciona. Então, quando a mulher entra no hospital para ter seu bebê, seja no sistema público ou no sistema privado, o seu corpo é levado pelas circunstâncias e pelos protocolos que forem determinados pela instituição. Então, não perguntam para elas, por exemplo: “Nós queremos raspar os seus pelos. A vantagem de raspar os seus pelos é que facilita o nosso serviço; a desvantagem é que pode lhe incomodar no pós-parto. A senhora nos autoriza a fazer a raspagem?”. Então, as questões não são colocadas desse jeito. Acontece assim: “Senhora, por favor, abre as pernas, porque nós precisamos fazer a raspagem dos pelos”. Então, isso acontece desde a raspagem dos pelos até o corte da vagina dela. Então, quando o bebê está saindo, o médico faz a episiotomia. Esse corte é feito sem autorização, sem aviso prévio, sem um consentimento informado, e vai totalmente contra ao que prega a medicina. Um médico não consegue arrancar uma verruga sem explicar exatamente o que irá fazer e quais são os riscos para o paciente.
Toda a assistência ao parto carece desse tipo de cuidado. Num consultório que atende pacientes com plano de saúde, o médico diz assim: “O parto normal e a cesárea têm vantagens e desvantagens. O parto normal é melhor para você, mas o bebê pode ficar retardado. Você pode ficar com a vagina larga e seu marido ir embora, mas a recuperação é melhor para você. Na cesariana, a desvantagem é que a recuperação demora um pouco mais, mas aí o bebê fica bem, a sua vagina fica ótima e conseguimos organizar tudo, evita correrias e tal”. Então, quando as coisas são colocadas dessa forma mentirosa para a mulher, o direito às escolhas acaba existindo apenas no papel, mas não existe sequer na cabeça dos profissionais. O sistema de saúde não reconhece esse direito.
Se você vai no centro obstétrico, por exemplo, em qualquer hospital público, onde tiverem dez mulheres grávidas, todas estarão ligadas no soro com ocitocina, e nenhuma delas sabe o que tem lá dentro. Nenhuma delas sabe que esse medicamento pode causar morte, descolamento de placenta, dar excesso de contração. Ninguém fala isso para elas. Então, na verdade, os centros obstétricos ainda carecem de direitos básicos dos direitos humanos. E isso sem falar em violência obstétrica. Já existe um levantamento no Brasil que mostra que, pelo menos, 25% das mulheres sofreram algum tipo de abuso físico ou verbal dentro das maternidades. Penso que esse número é bem maior do que 25%, porque muitas mulheres não entendem que foram vítimas de violência. Quando a mulher está com oito centímetros, o médico faz uma cesariana para poder ir embora logo, dizendo que o bebê está em sofrimento. A mulher não faz a menor ideia de que sofreu um processo de lesão física grave. Se cada mulher souber exatamente o que é violência física, e se tiver noção real do que aconteceu com ela, esse número no Brasil vai chegar facilmente perto dos 70%.

E por que se age dessa forma?
Ana Cristina Duarte: Esse é um problema histórico, cultural, multifatorial. A população não está educada para exigir respeito. Não está imponderada para exigir seus direitos. Além disso, existem profissionais de saúde que estão atuando de forma desatualizada. A movimentação toda do governo para melhorar a assistência ao parto é muito lenta, embora tenha melhorado muito nos últimos anos. Mas para se ter uma ideia, o direito ao acompanhante, que é determinado em lei federal no Brasil desde 2005, não é respeitado por muitos hospitais. Algumas instituições ainda não permitem a presença do acompanhante, nem no pré-parto, nem no parto e tampouco no pós-parto. Então, se não obedecem nem uma lei federal, por que irão respeitar o restante?

Como vê a proposta de incluir a atividade de parteiras no Sistema Único de Saúde?
Ana Cristina Duarte: Primeiro vamos definir o que é parteira, pois tem dois tipos de parteira. Tem a parteira tradicional, que é a que trabalha nos rincões do Brasil, nas regiões ribeirinhas, florestas e aldeias indígenas, que aprendem por tradição. E têm as parteiras urbanas, que são profissionais formadas com curso superior de enfermagem ou de obstetrícia, e que atendem partos domiciliares nos grandes centros.

O governo está falando da parteira tradicional. Nesse momento, não vejo como o SUS não reconhecer o trabalho dessas mulheres, porque elas trabalham a vida inteira, sem ganhar nada, sem direito à aposentadoria, à assistência médica ou coisa alguma. O governo ignora a existência dessas parteiras, e elas precisam ser reconhecidas e remuneradas pelo seu trabalho. A questão é saber se o modelo de atenção baseado nessas parteiras tradicionais seria eficaz, porque nós sequer temos um estudo que nos diga se esse trabalho da parteira tradicional é eficaz e seguro. Essa questão tem de ser estudada.

Quais são, para a mãe e o bebê, os benefícios de contar com a presença de uma doula durante o parto?
Ana Cristina Duarte: Em geral, a doula acompanha a mulher onde ela quiser. Então, se ela for ter um parto hospitalar, a doula vai junto, desde que o hospital permita. O ideal seria que a mãe tivesse direito a um acompanhante de escolha dela e mais a doula, porque a doula não é da família, é uma profissional. O ideal seria a presença das duas pessoas. A doula é uma pessoa que já conhece o processo todo de nascimento, então ela reconhece as necessidades físicas e emocionais da mulher durante esse processo e pode oferecer ajuda e suporte durante todo o trabalho de parto, diante das necessidades da mulher.
Então, ela não ocupa o lugar do acompanhante. No site www.doulas.com.br tem um artigo que mostra quais são os resultados de ter a companhia de uma doula, como a diminuição da taxa de cesariana, a diminuição do uso de analgesia, a diminuição do uso de fórceps, aumento substancial do grau de satisfação da mãe. Existem diversas pesquisas bacanas mostrando como é importante a presença da doula no trabalho de parto.

Qual é o papel do pai durante o processo de parto?
Ana Cristina Duarte: O pai é o coautor da obra. Então, na verdade, o processo pode não estar acontecendo no corpo dele, mas a responsabilidade dele é muito grande no sentido de oferecer suporte. Ele tem suas próprias necessidades, obviamente, emocionais, e a doula pode ajudar, mas ele tem de estar junto, tem de participar do processo todo, dentro do que ele possa oferecer. Alguns são mais tímidos, outros fazem força junto, torcem, cada um tem o seu estilo, mas a presença deles durante todo o processo é fundamental, desde que a mulher queira.

Quais são os desafios em relação à orientação médica e ao direto de escolha da mulher?
Ana Cristina Duarte: Não podemos esperar que os médicos que ganham mais e trabalham menos em uma cesariana sejam os portadores da informação, porque a informação que ele traz tem um viés. A mulher tem de procurar as informações em fontes isentas, ou seja, evidências científicas, livros, grupos de apoio ao parto normal, enfim ela tem de procurar fora do consultório médico. O consultório médico é o último lugar onde ela deve procurar essas opções, até porque no Brasil a cultura médica ainda é muito intervencionista. Se ela quer saber como ter um parto menos medicalizado, ela tem que procurar outras fontes de informação. E hoje em dia já existem muitos livros interessantes publicados sobre isso.

O parto domiciliar é menos medicalizado?
Ana Cristina Duarte: O parto domiciliar tem que ser desmedicalizado, tem que ser um parto natural. São utilizados outros recursos, como água, banheira, massagem, respiração, visualização, mas não se pode usar droga, anestesia durante o parto. Ele é um parto natural e tem que ser, porque esses procedimentos todos trazem risco para a mãe e para o bebê. Eventualmente, algumas mulheres são levadas para a maternidade para poder fazer o procedimento, porque precisam receber um pouco de hormônio para melhorar as contrações.

Como você vê as campanhas de apoio do governo federal ao parto natural e humanizado?
Ana Cristina Duarte: É fundamental, mas ainda está muito lento. Se você pegar as campanhas de aleitamento materno que aconteceram depois que o leite de fórmula passou a ser uma realidade para a nossa sociedade – o que gerou muitos problemas para os bebês –, o governo respondeu com campanhas maciças e investiu muito dinheiro para reverter esse absurdo, porque estava lutando contra uma grande indústria do leite em pó.
Por outro lado, temas como o parto normal e a cesariana passam batido pelo governo, principalmente porque a cesariana acontece no serviço privado, onde quem paga por suas escolhas são as próprias mulheres. Elas pagam um plano de saúde, no qual já está incluso a cesárea absurda. Mas se a mulher for para a UTI porque perdeu o útero, ou está com uma hemorragia, o governo não paga um centavo por isso. Então, não custa caro para o governo o que está acontecendo e, portanto, o governo não investe tudo que poderia e deveria investir em termos de educação para melhorar a demanda das mulheres que fazem o parto normal.

Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?
Ana Cristina Duarte: Gostaria de ressaltar que o parto domiciliar tem de ser planejado. Ele não é uma aventura selvagem. As equipes que atendem o parto natural em casa têm o material completo, tanto para situação de baixo risco como para uma complicação. A única coisa que não podemos fazer em casa é uma cesariana, mas quando se tem uma hemorragia, é possível controlá-la. Além disso, o parto domiciliar é bacana, porque ele não é uma obrigação. A mulher pode começar o parto em casa e desistir, ir para o hospital. Ele é muito mais confortável para a mulher.

Leia também:
  1. A primavera das mulheres árabes
  2. As novas batalhas das mulheres extrativistas
  3. Europa: cresce o tráfico de mulheres
  4. Nomeações de mulheres e preconceitos da mídia
  5. Para acabar com a mutilação genital das meninas
  6. Seguem os protestos árabes, ainda sem respostas
  7. Educação: onde os EUA ainda são capazes de inovar
  8. Água: a privatização patina, mas o direito ainda está distante
  9. A crueldade das bestas
  10. Por que vou à Marcha das Vadias

Nenhum comentário:

Postar um comentário