Na cidade espanhola bombardeada por Hitler e Mussolini, um sobrevivente narra as horas da destruição — e fala sobre projeto para converter uma antiga fábrica de armas em centro cultural
Por Amy Goodman, no Diário da Liberdade
Há 75 anos, a cidade basca de Guernica foi bombardeada e ficou reduzida a escombros. Esse ato brutal inspirou a um dos maiores artistas do mundo a realizar uma pintura para a qual dedicou três semanas de trabalho frenético. Em um óleo de 3,50X7,80 metros, “Guernica”, de Pablo Picasso, mostra de maneira crua os horrores da guerra, refletidos nos rostos das pessoas e dos animais. Não foi o pior ataque da Guerra Civil Espanhola; porém, converteu-se no mais famoso graças ao poder da arte. O impacto de milhares de bombas lançadas sobre Guernica, do fogo das metralhadoras disparadas das aeronaves contra os civis que tentavam fugir do inferno podem ser sentidos até hoje através dos sobreviventes que partilham com entusiasmo suas recordações e também nos jovens de Guernica, que lutam para forjar um futuro para sua cidade, algo distante de sua dolorosa história.
A Legião Condor da Luftwaffe (a Força Aérea Alemã durante a Alemanha nazista) realizou o bombardeio a pedido do General Francisco Franco, que encabeçava uma rebelião militar contra o governo democraticamente eleito da Espanha. Franco procurou a ajuda de Adolf Hitler e de Benito Mussolini, que estavam muito entusiasmados em pôr em prática as modernas técnicas de guerra contra os indefesos cidadãos espanhóis. O ataque contra Guernica foi a primeira vez na história europeia que uma cidade civil foi completamente destruída por um bombardeio aéreo. Apesar de que as casas e as lojas foram destruídas, várias fábricas de armas, uma ponte de importância-chave e as linhas férreas ficaram intactas.
Ativo e lúcido aos 89 anos de idade, Luis Iriondo Aurtenetxea sentou-se junto a mim no escritório da organização Gernika Gogoratuz, que, em basco, significa “Recordar a Guernica”. O basco é um idioma antigo e um elemento fundamental da férrea independência do povo basco, que vive há milhares de anos na região fronteiriça entre a Espanha e a França.
Quando Guernica foi bombardeada, Luís tinha 14 anos e trabalhava como assistente em um banco local. Era dia de mercado, pelo que todo o mundo estava na cidade; a praça do mercado estava repleta de gente e de animais. O bombardeio começou às 16:30 horas do dia 26 de abril de 1937. Luís recorda: “Não terminava nunca. O bombardeio continuava e continuava. Umas três horas e meia de bombardeio. Quando terminou, saí do refúgio e todo o povoado estava ardendo; tudo em chamas”.
Luis e outras pessoas fugiram para o povoado vizinho, Lumo, em cima da colina, de onde, ao cair da noite, viram como sua cidade natal queimava e suas casas eram destruídas pelas chamas. Alguém deixou que dormissem em um celeiro. Luís continuou: “À meia-noite, mas não sei bem que horas eram, pois não tinha relógio… algo me despertou. Ouvi que me chamavam. E fui até a porta que dava para a praça e vi a silhueta de minha mãe. Ao fundo, se via Guernica ardendo. Vi minha mãe, que havia encontrado os outros três filhos (éramos quaro irmãos) e agora me encontrava”. Luís e sua família foram refugiados de guerra durante muitos anos e, finalmente, regressaram a Guernica onde, da mesma forma que Pablo Picasso em Paris, Luis vive e trabalha como pintor.
Luís me levou ao seu estúdio, cujas paredes estão cobertas por pinturas. A que mais se destaca é a que fez sobre aquele momento em Lumo, quando sua mãe o encontrou. Perguntei-lhe como tinha se sentido naquele momento. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Pediu desculpas e disse que não podia falar sobre isso. A umas quadras do estúdio de Luís, encontra-se uma das fábricas de armas que ficou intacta após a destruição: uma planta denominada edifício Astra, onde armas químicas e pistolas eram fabricadas. A Astra se mudou, mas a empresa de amas continua tendo vínculos com a cidade, já que várias de suas armas automáticas levam o nome de “Guernica” e, segundo indica a empresa, são “desenhadas por guerreiros, para guerreiros”.
Há alguns anos, um grupo de jovens ocupou a planta abandonada para exigir que fosse transformada em centro cultural. Oier Plaza é um jovem artista de Guernica. De pé, junto à planta, me disse: “Em princípio, a polícia nos expulsou; porém, voltamos a ocupá-la. Finalmente, a prefeitura comprou o edifício, em seguida, começamos esse processo de recuperá-lo para criar o projeto Astra”.
O objetivo do projeto Astra é converter essa fábrica de armas em um centro cultural onde sejam ministrados cursos de arte, vídeo e meios audiovisuais em geral. “Creio que devemos olhar o passado para poder compreender o presente e, se entendemos o presente, poderemos criar um futuro melhor. E creio que Astra é parte desse processo: faz parte do passado, do presente e do futuro dessa cidade”.
A partir do “Guernica” de Picasso, o autorretrato de Luís Iriondo Aurtenetxa junto à sua mãe, passando pela iniciativa de Oier Plaza e seus jovens amigos, o poder da arte de converter espadas em arados e de resistir à guerra renova-se constantemente.
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