quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A importação do modelo urbano britânico: as cidades-jardins

A Companhia City trouxe para o Brasil o conceito de morar dos britânicos e deixou sua marca na paisagem de grandes cidades do país

Marcus Lopes
Na segunda metade do século 19, a Europa enfrentava o outro lado da moeda da Revolução Industrial. Apesar do progresso econômico, as cidadessofriam com o inchaço populacional, poluição e precárias condições sanitárias. Em contraponto à insalubridade das metrópoles, em 1898 surgiu na Inglaterra um novo modelo urbano: as cidades-jardins. Criadas pelo urbanista Ebenezer Howard, elas buscavam integrar o campo e a cidade, com população reduzida, muitas praças, desenho urbano harmônico e casas com amplos jardins. A primeira delas, Letchworth, começou a ser construída em 1902, nos arredores de Londres.
Dez anos depois, o conceito chegou ao Brasil, por meio da City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited. Inspirada em Howard, a Companhia City, como ficou conhecida, foi a responsável pelos primeiros bairros planejados de São Paulo, como o Jardim América, o Alto da Lapa e o Pacaembu, que até hoje são sinônimos de qualidade de vida na metrópole. Logo, o conceito de planejamento urbano se espalhou por outros lugares, como Rio de Janeiro e Recife.
A City abriu seu escritório em São Paulo com uma meta ambiciosa: urbanizar uma área de 12,38 milhões de metros quadrados. Em 1912, isso correspondia a 37% do perímetro urbano da capital paulista. Não seriam meros loteamentos com o óbvio traçado em xadrez das ruas. O desenho tinha ruas sinuosas, seguindo a topografia do terreno, e praças internas. A ocupação dos lotes usava padrões de volumetria (a área construída não poderia ocupar mais da metade da área total do terreno) e de arquitetura, com muros baixos e veto a prédios altos. Tudo para o sossego do morador.

Alguns dos anúncios publicitários da Companhia na época
Laços com a Light

A fórmula deu tão certo que, hoje, esses bairros são "pulmões verdes" da metrópole, graças à abundância de árvores e ao baixo adensamento. O Jardim América e o Pacaembu foram tombados pelos órgãos de patrimônio histórico para impedir a especulação imobiliária. "Os padrões da City influenciaram as primeiras leis de zoneamento na cidade de São Paulo", diz o presidente da empresa, José Bicudo. A história dos bairros-jardins está diretamente ligada ao crescimento e à riqueza da cidade. Em 1890, a população paulistana era de 65 mil habitantes. Em 1900, já beirava 240 mil. Começava a surgir uma classe média emergente, formada por comerciantes, empresários e profissionais liberais, que precisavam de um lugar para morar. Um grupo de empreendedores imobiliários, liderados por Horácio Sabino e Cincinato Braga, se associou à City. A dupla já era conhecida por lotear e vender terrenos na área entre a Avenida Paulista e a Rua Estados Unidos.

A diretoria da empresa era composta de banqueiros, funcionários da Prefeitura e diretores da Light and Power, a concessionária canadense que monopolizava as linhas de bonde e os serviços de eletricidade. Uma articulação estratégica. "A Light era a peça decisiva no modo de expansão da cidade. Localizando as paradas finais de suas linhas em pontos extremos e de população rarefeita, gerou fluxos irradiados de valorização imobiliária", afirma Nicolau Sevcenko em Orfeu Extático na Metrópole. "Graças aos seus laços com a Light e com figuras-chave da política local, a City pôde usufruir do acesso, em condições privilegiadas, a serviços básicos de infraestrutura e valorização estética dos seus loteamentos", diz Sevcenko.

Elite emergente


"O fato é que Barry Parker realizou um trabalho excepcional" diz Sevcenko, referindo-se ao arquiteto e urbanista inglês que desenhou e coordenou a implantação dos empreendimentos da City. "Seu traçado para o Jardim América apresenta uma movimentação versátil e envolvente no plano de conjunto, graciosa na disposição das praças e amenidades, compondo um desenho intrincado e surpreendente nos arrua-mentos, que fugia da rotina quadriculada predominante até então na cidade, instaurando um novo padrão de equilíbrio entre funcionalidade, bem-estar, espacialidade e fluência." Projetado por Parker, o Jardim América foi o primeiro grande empreendimento da City, em 1915.

"Era um projeto direcionado à elite emergente da época. Os ricos e os barões de café continuavam morando em Higienópolis ou na Avenida Paulista", diz a arquiteta e urbanista Nadia Somekh, da Universidade Mackenzie. "Foi o primeiro projeto completo de bairro, com começo, meio e fim, além da alta qualidade de desenho urbano." Diante do sucesso de vendas, nos anos seguintes seriam criados outros nos mesmos padrões urbanísticos. "A partir do loteamento pioneiro e de seu sucesso, estabeleceu-se um padrão para ocupação de bairros exclusivamente residenciais, que se firmou e se reproduziu na cidade de São Paulo", diz a arquiteta Silvia Ferreira Santos Wolff, autora do livro Jardim América.

De São Paulo, os bairros-jardins se espalharam pelo Brasil. No Recife, o Derby foi inspirado nas garden-cities inglesas. "O Derby possui ressonâncias do urbanismo ajardinado", diz Silvia Ferreira. "As ruas de Boa Viagem foram bem projetadas, mas o Derby foi o primeiro bairro do Recife planejado como um todo", diz o historiador Leonardo Dantas Silva, do Instituto Ricardo Brennand, na capital pernambucana. "Os lotes não são tão grandes, as ruas são bem desenhadas e todas convergem para um parque central, a praça do Derby."

No Rio de Janeiro, os bairros-jardins inspiraram loteamentos como o Jardim Laranjeiras, na Zona Sul. O bairro surgiu na década de 30, quando a lei de zoneamento proibiu a instalação de fábricas na região. A Cidade-Jardim Laranjeiras brotou no terreno da antiga Companhia Têxtil Aliança Industrial. O Bairro Peixoto, outra ação do gênero, até hoje é considerado um "oásis de Copacabana".

"No caso do Rio, houve uma inversão de polaridade. Uma antiga região industrial virou bairro residencial planejado de alta renda", diz o arquiteto Nestor Goulart Reis, professor da USP e autor de livros sobre história do urbanismo no Brasil. Segundo Reis, o modelo dos bairros-jardins é demonstração de que nem tudo é caos e desorganização quando se fala em crescimento urbano brasileiro: "São Paulo, durante muito tempo, competiu com o Rio em termos de qualidade de vida, pois havia planejamento".

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