"o modelo de leilão contraria o interesse nacional, o interesse público e lesa o patrimônio público, porque transfere o poder de controle sobre o ritmo de produção nacional para contratos sob a financeira de empresas estrangeiras, sejam elas privadas atendendo aos interesses dos governos dos seus países de origem, sejam estatais como são as chinesas. Renunciar ao controle do ritmo de produção é renunciar ao poder de influenciar o preço do petróleo no mercado mundial e, com isso, colaborar para a desvalorização das reservas de petróleo existentes na plataforma continental e na zona econômica exclusiva, que constituem bens públicos, isto é, bens do povo brasileiro, administrados pela União", assevera Ildo Sauer, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, ex-diretor da Petrobras (2003-7), em nota que nos foi enviada e publicamos a seguir.
Ildo Sauer
Ildo Sauer
O único papel dos sócios da Petrobras no consórcio é buscar ofinanciamento. Onde? Nos bancos, pois nenhuma empresa tem em caixa recursos deste montante. O papel do sistema financeiro é exatamente fazer captar as disponibilidades e alocá-las em projetos de menor risco e maior rentabilidade possíveis, como será o desenvolvimento de Libra. Depois de concluída a exploração, com a certificação das reservas, o consórcio vai saber quanto petróleo recuperável se encontra no campo, e vai elaborar o plano de produção otimizado, definindo quanto vai produzir todo ano, vai fazer o plano de construir as plataformas, com sistemas de produção e de apoio logístico para extração e escoamento. Vai desenvolver o plano de investimento e buscar o financiamento.
Nas condições atuais de investimento e custo do capital, cada barril vai custar, em capital e trabalho, cerca de 15 dólares e mais a transferência de 15 dólares em royalties (15% de preço do petróleo). Com o preço atual do petróleo em torno de 100 dólares por barril, sobram 70 dólares por barril. Os sócios somente vão buscar o financiamento, que vai ser pago nos primeiros anos da produção, podendo absorver para isso até metade do óleo produzido no começo, sob a forma de óleo custo. Depois os sócios, tendo 60% do investimento, receberão 60% do óleo lucro que, nas condições nominais, será de 58,35%, pois a parte do governo ficou no percentual mínimo de 41,65%.
Esta participação pode ser reduzida se o preço cair ou se os poços tiverem redução de produção, como naturalmente terão. Poderá mesmo subir um pouco se o preço do petróleo ou a produtividade dos poços aumentarem, conforme tabela 10 do Edital, questionada judicialmente. A base de 41,65% é para a hipótese de o barril ser vendido por preço entre US$ 100,01 e 120,00, e a produção por poço manter-se entre 10.001 e 12.000 barris por dia. Com petróleo a US$ 60 por barril e produção média dos poços de 4 mil barris por dia, o excedente em óleo da União é de apenas 9,93%; com o petróleo a US$ 50 por barril, o excedente será de 15,2%. A lei determina um percentual mínimo de participação do Governo no óleo lucro, que o Edital, além de optar por um valor bem abaixo da experiência internacional em partilha, tornou variável para reduzir os riscos do consórcio, ao arrepio da lei.
Dois mitos, o da falta de tecnologia e de financiamento, estão sendo usados para justificar esta entrega. Não falta recurso financeiro para financiar operação tão vantajosa: produzir o barril a 30 dólares e vender a 100 dólares, tendo a Petrobras como garantia técnica e a reserva certificada, e, mais ainda, sabendo que todo o investimento será devolvido em petróleo nos primeiros anos da produção. Todo o recurso natural, propriedade do País, e toda capacidade e responsabilidade, de gerenciar a produção como operadora, será da Petrobras também patrimônio do País, como fruto do apoio à mesma ao longo de 60 anos. Caso mantida pela justiça a entrega de Libra repassa aos sócios dois tipos de patrimônio do País: o petróleo e a tecnologia e capacidade de gestão que a Petrobras estará dando às outras empresas se ser precificada. Estes fatores são o grande ativo dos sócios para negócio financeiro, onde atuarão como agentes intermediários, talvez os mediadores de maior ganho na história, uma vez que terão garantido para isso, nas condições nominais, cerca de 35% (60% de 58,35%) do óleo lucro, além do ressarcimento total do investimento inicial e do custo de operação. Participarão da captação de financiamento de cerca de 100 bilhões de dólares, que será devolvido nos primeiros anos de produção, e terão como prêmio de 35% do lucro, algo em torno de 245 bilhões de dólares.
Em dólares: se forem 10 bilhões de barris de reserva, a 100 dólares, cada, o faturamento será de 1 trilhão, abatendo-se o custo de 150 bilhões, e 15 % de royalties, 150 bilhões, o óleo lucro será de 700 bilhões, cabendo ao Governo 41,65% ou 291 bilhões e ao consórcio, o restante de 409 bilhões, sendo 245 bilhões para os sócios e 164 bilhões para a Petrobras. Pela legislação aplicável a qualquer empresa obviamente, estas parcelas estarão sujeitas aoImposto de Renda e Contribuições da ordem de 34%. O liquido dos sócios será 162 bilhões e da Petrobras 108 bilhões, e o Governo receberá mais 139 bilhões. Este recurso adicional não terão destinação estratégica indo para o custeio da máquina governamental. O Governo detém 47% das ações da Petrobras, sendo o restante privado, e assim da fração líquida da Petrobras terá mais 51 bilhões, parte em dividendos e juros sobre capital próprio e parte em valor retido no fundo de reserva da Petrobras. Balanço final para estas condições nominais: Governos terão 631 bilhões e os sócios levarão 162 bilhões, como remuneração pela intermediação do financiamento.
A contratação direta da Petrobras destinaria 47% deste valor ao Governo, US$76 bilhões, mais de 160 bilhões de reais, agora desviados para os sócios como prêmio e remuneração para serem os mediadores financeiros e participarem do negócio. Mesmo aceitando-se que as condições nominais prevaleçam o que é improvável, pela natural queda na produção de óleo pelos poços, são 245 bilhões ou, admitindo-se o contorcionismo tributário, são 162 bilhões de dólares de riqueza pública entregue desnecessariamente à empresas estrangeiras. Trata-se da maior privatização da história brasileira, superando em muito a soma do privatizado pelo governo FHC, com quem o atual governo também compete no uso das Forças Armadas para desrespeitar o interesse nacional e agredir trabalhadores. A ironia do processo é que com a aplicação do modelo de concessão, pagando apenas bônus de assinatura, royalties de 10% e participação especial aplicável ao caso, com percentual máximo de 40%, definida por decreto presidencial, a simulação indica que os benefícios financeiros seriam SEMEHANTES, pois todo o custo de investimento é dos concessionários, sem óleo custo e sem queda da participação vinculada ao natural declínio da produção dos poços, não considerada nas simulações da partilha. Seriam 500 bilhões em participação especial e royalties, 119 em tributos, com lucro de 231 bilhões para o concessionário. Se for a Petrobras sozinha, desse lucro 108 bilhões seriam do Governo, se a Petrobras for 40%, como na partilha, seriam 43 bilhões. Participação dos governos seria entre 662 e 727 bilhões de dólares, segundo esta simulação simplificada.
A contratação direta da Petrobras daria muito mais flexibilidade e transparência, permitindo chegar próximo do regime de prestação de serviços, muito superior para o interesse público. Leilão com preço mínimo fixado e somente um participante é simulacro. Se houve alguma concorrência foi pelo privilégio de ser sócio da Petrobras, pois sem a Petrobras como sócia qualquer consórcio fica fragilizado. A Petrobras agiu, segundo as normas empresariais em vigor, como empresa capitalista, buscando maximizar o benefício dos acionistas, e está claro que o cenário sem concorrência já revelou o resultado: fez prevalecer no processo a baixíssima participação governamental no óleo lucro em benefício do consórcio. Sempre que buscar a maximização do seu resultado nunca interessará à Petrobras a competição.
Ao optar pelo leilão o governo a empurrou para este roteiro. O Governo deveria ter criado a condição para o resgatar para a Petrobras, como instituição nascida do povo na rua, a função primordial de maximizar a geração de riqueza e recursos para transformar o País em favor do povo. A lei de partilha manda negociar diretamente com a Petrobras o contrato e suas condições quando o interesse nacional o impõe, e este era o caso pelos números demonstrados. Ficam reforçadas as ações judiciais ainda em curso visando a anulação do leilão e substituí-lo por negociação direta com a Petrobras, que, junto com o Governo poderá buscar parceiros estratégicos, se necessários, para viabilizar o financiamento em condições de oferecer retorno muito superior ao País.
Os regimes de concessão e de partilha não permitem o controle estratégico do ritmo de produção, definido pelas limitações das condições dos contratos, de natureza microeconômica. O regime de prestação de serviços, e mesmo a contratação direta da Petrobras, ao contrário permitem prescrever condições onde prevalece o poder estratégico do Estado, como acontece em todos os países grandes exportadores. O controle do ritmo de produção de petróleo no País precisa levar em conta dois fatores fundamentais: a coordenação com os países exportadores, liderados pelaOPEP e Rússia, do equilíbrio da oferta com a demanda, sob pena cooperar com a estratégia liderada pelos EUA, países europeus, Japão e China, que buscam a redução do preço para os patamares históricos, com escasso excedente, vigentes entre a criação da OPEP, em 1960, até 2005, não obstante dois choques tentativos de 73 e 79; a coordenação com o desenvolvimento dos fornecedores de bens e equipamentos do País, sob pena reduzir a geração emprego no Brasil dados os potenciais conflitos com os interesses de empresas privadas (Shell e Total) e da China.
O leilão do direito de exploração do campo petrolífero de Libra insere-se em contexto que em muito ultrapassa as barreiras de nossas fronteiras geográficas, o simplismo de um suposto livre exercício do poder discricionário da Administração e considerações de curto prazo de natureza financeira. Somente é possível tratar adequadamente o leilão de Libra à luz da Constituição e da legislação caso tenhamos em conta a dimensão geopolítica, o interesse nacional e a soberania popular e nacional. Assim, o “mundo do petróleo” somente pode ser adequadamente compreendido sob a lógica dicotômica da disputa conflitiva entre os interesses dos países produtores (países da periferia do sistema capitalista e a Rússia) e os interesses dos países consumidores (os países centrais do sistema mundial). De um lado, aos Estados Unidos e à China interessa produzir mais petróleo o quanto antes e reduzir o preço. Para um país que pretende ser exportador, como é o caso do Brasil, interessa controlar o ritmo de produção e manter o preço elevado. Em todo o mundo, nenhum país vinculado ao debate geopolítico e estratégico, como está o Brasil, renuncia ao controle sobre o ritmo de produção.
Por isso, o modelo de leilão contraria o interesse nacional, o interesse público e lesa o patrimônio público, porque transfere o poder de controle sobre o ritmo de produção nacional para contratos sob a financeira de empresas estrangeiras, sejam elas privadas atendendo aos interesses dos governos dos seus países de origem, sejam estatais como são as chinesas. Renunciar ao controle do ritmo de produção é renunciar ao poder de influenciar o preço do petróleo no mercado mundial e, com isso, colaborar para a desvalorização das reservas de petróleo existentes na plataforma continental e na zona econômica exclusiva, que constituem bens públicos, isto é, bens do povo brasileiro, administrados pela União.
O objetivo estratégico dos países centrais é reduzir o preço do petróleo no mercado mundial, fazendo-o retornar à condição de commodity concorrencial que detinha até a recente atuação coordenada entre a OPEP e a Rússia, que permitiu, a partir de 2005, elevar os preços e mantê-los em patamares próximos a 100 dólares por Barril, muito acima, portanto, da faixa entre 15 e 25 dólares do período anterior. Criada em 1960, a OPEP tentou, com os choques de 1973 e 1979, lograr esse objetivo de elevar os preços, porém, sem sucesso, em razão das condições geopolítica e a falta de coordenação entre o ritmo de produção e a demanda. Prova disso é o documento denominado “BLUEPRINT FOR A SECURE ENERGY FUTURE” (Modelo para um futuro energético seguro), de 30 de março de 2011, no qual se divulga a estratégia do Governo dos Estados Unidos em relação à energia e, de forma particular ao suprimento seguro e confiável, e com parâmetros econômicos desejáveis.
O referido documento oficial do governo norte-americano explicita a visão de como desenvolver e assegurar os suprimentos de energia para a “América”, a partir da expansão segura e responsável da produção e desenvolvimento doméstica de óleo e gás natural, e, principalmente, como liderar o Mundo para assegurar suprimento energético mais seguro, limpo e confiável. Resumidamente propõe a estratégia para o desenvolvimento de novas fontes, com a produção intensificada de shale gas e shale oil nos EUA e iniciativa internacional para disseminação da produção naChina, Europa e América Latina, produção de petróleo na plataforma continental americana, produção de biocombustíveis nos EUA, Brasil e iniciativa conjunta para disseminação de produção de biocombustíveis em outras regiões, de redução do consumo sem afetar a produção e conforto mediante medidas de eficiência. No que interessa diretamente aqui, o texto defende, como medida para aumento da produção mundial de petróleo (e consequente redução de seu preço) a promoção de acordos com o Brasil no desenvolvimento da produção dos recursos do pre-sal, “no interesse dos dois países”, segundo acordo entre os Presidentes Obama e Rousseff, de março de 2011. Claramente emerge desta estratégia o foco na intensificação da produção e na redução do consumo visando quebrar o domínio da OPEP sobre o ritmo de produção equilibrado com a demanda e, assim, o seu domínio sobre o controle dos preços do petróleo.
O significado da estratégia preconizada por este documento e do papel reservado ao Brasil somente pode ser interpretado a partir da compreensão do interesse nacional associado a um País potencialmente exportador de petróleo para gerar excedente econômico para promover o seu desenvolvimento econômico e social. Neste contexto adquirem relevância essencial os mecanismos de manutenção de preços elevados capazes de gerar rendas na exportação de petróleo, o que por sua vez, impõe a necessidade coordenar o ritmo de produção entre os países exportadores para manter o preço próximo do preço regulador, definido a partir do custo da alternativa que poderia suprir em escala a demanda por combustíveis líquidos da atual estrutura urbano-industrial mundial, que hoje seria o carvão liquefeito, a um custo da ordem de 100 dólares por barril.
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