No mês do centenário do poeta, a CULT buscou olhar para sua obra com outro olhar que não o biográfico; confira reportagem e entrevista
Mariana Marinho
Mariana Marinho
Ao longo do mês em que completaria 100 anos – Vinicius nasceu em 19 de outubro de 1913 – parece ainda mais difícil revisitar sua obra por outra lente que não a biográfica.
Nela, Alves tentou, justamente, se desvencilhar das armadilhas construídas em torno da folclórica figura do poeta e buscar encontrar o que está por trás dela. “Não sei se em minha tese consigo efetivamente driblar as armadilhas. A verdade é que Vinicius é um autor consagrado, vastamente comentado, mas pouco estudado seriamente. Esse conjunto de fatores nos vicia como leitores”, comenta.
Para o poeta e crítico literário Carlos Felipe Moisés, autor de Vinicius de Moraes – Literatura Comentada (Abril), além de inevitável, essa abordagem biográfica é unilateral e falseia a verdade das coisas – “que nunca foram, para Vinícius, tão simples quanto parece. É preciso opor alguma resistência a isso, mas não muita”, pondera. “A vida e o mito aí estão, ignorá-los seria uma bobagem. Mas é preciso encontrar, em relação a ele, aquela visão capaz de integrar vida e obra, poesia e música – facetas talvez contraditórias, mas interdependentes, e que formam, afinal, um todo homogêneo e muito coerente”, diz.
CULT – O mito criado em torno da figura de Vinicius de Moraes muitas vezes se sobrepõe a sua própria obra. Com a comemoração do centenário de Vinicius, por exemplo, muitos detalhes de sua biografia são revisitados e, geralmente, procura-se encarar a obra do poeta sob sua biografia. O que se perde com essa abordagem?
Carlos Felipe Moisés - Perde-se a compreensão de que, para Vinicius, a vida é contraditória: a legítima alegria de viver convive com a iminência da tragédia e com o desespero, muitas vezes subentendido, resultante da consciência de que a vida plena e o amor absoluto não existem. Então ele diz: “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Para que não haja dúvida: “é melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe”. E não se trata de ora isto, ora aquilo; não é a alternância entre momentos alegres e momentos tristes, ou entre a precariedade e a permanência. A vida é isso tudo junto, ao mesmo tempo.
Entre as muitas facetas de Vinicius há a questão de seu desprendimento e de seu romantismo. Muitas vezes, ao exaltar o lado boêmio do poeta, esquece-se de sua formação erudita. Ao contabilizar as inúmeras mulheres, pouco se analisa a forma como o feminino aparece em vários âmbitos de sua poética. Como o senhor encara essas duas questões?
Você foi direto ao ponto. Vinicius teve uma formação especial. Além de bacharel em Direito, estudou poética e literatura comparada em Oxford, nos anos 30 – formação de alto nível, para acadêmico nenhum botar defeito. Isto significa saber de ofício, conhecimento especializado, que veio a fazer parte inalienável da sua condição de artista. O curioso é que, ao estimular o mito, ele deu a impressão de renegar essa formação. Pura pose! É o pequeno teatro que ele sempre gostou de praticar, ao vivo. Ainda que quisesse, ele não teria como renegar a sua formação erudita. Caso contrário, como explicar que, já perto do fim, ele tenha cantado “um velho calção de banho, o dia pra vadiar, o mar que não tem tamanho, um arco-íris no ar” – esse primor de descontração – em versos redondilhos tão bem medidos, tão escrupulosamente rimados e metrificados?
E a presença da mulher é decisiva na visão que ele vai formando, da vida e da arte. Primeiro, o gesto um pouco teatral de afirmar que a mulher é “a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável”. Os mais racionalistas diriam: exagero! Mas qual é a mulher que não gosta de ser amada dessa forma? E que forma é essa? É a surpreendente mescla (surpreendente para os anos 30-40-50) de elevada espiritualização, bem de acordo com a antiga tradição lírica, que endeusa a mulher, e o erotismo mais desinibido, bem ao gosto contemporâneo. Vinicius diz que a mulher é “leve como um resto de nuvem: mas uma nuvem com olhos e nádegas”.
Como o senhor enxerga a passagem do poeta para o letrista? O lirismo permanece o mesmo?
É uma passagem natural, gradativa, nada de rompimento ou corte radical. Vinicius nunca abandonou a poesia para então se dedicar a “outra” forma de expressão, as letras de música. Primeiro, há um aspecto de ordem formal: nessa passagem, a expressão poética vai-se tornando cada vez mais simples (versos mais curtos, ritmos mais breves) e disciplinada (nas letras, predomina quase totalmente os versos rimados e metrificados).
Os temas e motivos acompanham essa mudança, mais ou menos na mesma direção: Vinicius vai transitando, aos poucos (ainda na poesia em sentido estrito) dos temas metafísicos para os mais singelos flashes da vida cotidiana. Exemplo: as meninas bicicletando na orla da praia, que Vinicius flagra num poema dos anos 50 (“meninas de bicicleta, que fagueiras pedalais, quero ser vosso poeta”) não são claramente precursoras da célebre garota de Ipanema, “menina que vem e que passa, ao doce balanço, caminho do mar”? Eu diria que, na essência, o lirismo é o mesmo. As diferenças que acabei de assinalar não são suficientes para se afirmar que as letras de música seriam “outra” coisa, substancialmente distinta.
O senhor acredita que há aspectos da obra de Vinicius de Moraes que ainda não foram bem explorados?
Acho que ainda existem vários aspectos na obra de Vinicius que pedem para ser explorados. “Orfeu da Conceição”, por exemplo, aclamado texto teatral, encenado pela primeira vez em 1956, e que é praticamente o início da sua guinada no rumo da música popular, ainda não mereceu, que eu saiba, um estudo comparativo com o mito original de Orfeu e com a tragédia grega em geral. Todo mundo conhece o Vinícius cronista, o Vinícius crítico de cinema, mas parece que essas facetas ainda não despertaram o interesse dos estudiosos.
E em relação à poesia, acho que seria interessante investigar as afinidades e aproximações entre os poemas em sentido estrito e as letras de música, que me parecem existir, em quantidade. Para isso seria preciso abrir mão da facilidade que tem sido, desde os anos 50, separar essas duas manifestações em blocos estanques e incomunicáveis. De acordo com a tradição consagrada, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa…
Eu sempre desconfiei que se trata da mesma coisa. Mas a gente chega lá. Afinal, só se passou um século desde que ele nasceu, faz só 33 anos que ele se foi.
Para o senhor, em qual ponto reside a beleza da obra de Vinicius?
Para simplificar: no seu extraordinário domínio de linguagem, na sua invulgar capacidade de nos passar sempre a impressão, em tudo o que escreveu, de que fazer poesia (ou letra de música) é simples e natural como respirar. Só grandes poetas são capazes disso. E a gente sabe: é só impressão, mesmo. É a “espontaneidade” que resulta do mais elaborado trabalho artesanal. Paradoxo? Contradição? Vinicius nos ensinou que a vida é assim mesmo. E a poesia também.
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