terça-feira, 4 de agosto de 2015

Para primeiro-ministro britânico, imigrantes são 'pragas humanas'

Mesmo assim, o discurso oficial conservador nunca se esquece de recordar a 'nobre tradição britânica' de asilo político. Hipocrisia pouca é bobagem...


Marcelo Justo
Robert Thom/ The Prime Minister%u219s Office
O primeiro-ministro David Cameron ganhou a rejeição de meio mundo ao qualificar os imigrantes ilegais que tentam atravessar o Eurotúnel – desde Calais, na costa francesa, até ao Reino Unido – como “enxames” ou “pragas” humanas (“swarms”). As Nações Unidas, o governo sueco, a Igreja Anglicana, grupos de direitos humanos e a oposição em Westminster disseram se tratar de uma retórica “inumana”, “incendiária” e “oportunista”. Impávido, o governo conservador respondeu nesta segunda-feira (3/8) com um endurecimento maior das medidas para lidar com os imigrantes que diariamente buscam cruzar o Canal da Mancha.
 
Além da construção de novas barreiras de segurança, do aumento do contingente policial, câmeras de vigilância e cães adestrados na fronteira, o ministro de comunidades Greg Clark agregou que uma das medidas será uma mudança legal que permitirá dar penas de prisão ao proprietário que alugue ou que dê alojamento a estrangeiros sem verificar sua situação legal, ou que não expulse os que não tenham seus papéis em dia. “Vamos perseguir com todo o peso da lei os proprietários que fazem dinheiro com a imigração ilegal, soterrando nosso sistema imigratório”, afirmou o ministro. Segundo o chanceler Phillip Hammond, “o governo está começando a controlar essa crise, e os imigrantes ilegais estão diminuindo”.
 
Muitos conservadores, o partido antieuropeu UKIP e até setores da polícia britânica pediram a intervenção do exército e a utilização de unidades especiais de gurkas para a caça de imigrantes ilegais. O governo, reeleito em maio com uma plataforma dura a respeito do tema, se negou a essa possibilidade, mas endureceu sua retórica para mostrar que o Reino Unido não é um “soft spot” de fácil acesso e vida subvencionada pelo Estado. Em sua última intervenção, na quinta-feira passada (30/7), antes de sair de férias, David Cameron aumentou os decibéis do debate até roçar um racismo colonial. “Existem enxames humanos que cruzam toda a Europa buscando uma vida melhor, que agora querem vir à Grã-Bretanha porque têm uma economia vibrante, muitos empregos e é um lugar incrível para viver”, comentou.
 
Ato deliberado ou traição do inconsciente, a conotação insetificante do termo “swarms”, usado pelo primeiro-ministro causou uma onda de reprovações. Dois dias antes, um sudanês de 25 anos havia perdido a vida, atropelado por um caminhão que ingressava no Eurotúnel – que atravessa o Canal da Mancha. Foi a nona morte em apenas um mês. Em nome da Igreja Anglicana, o bispo de Dover, Trevor Willmott, pediu ao primeiro-ministro mudar o tom de suas intervenções. “Estamos nos transformando num mundo de intolerância crescente. Temos que redescobrir o que significa ser humano”, disse.
 
O questionamento mais ácido veio de um sócio do Reino Unido na União Europeia (UE), o ministro de Justiça e Imigração da Suécia, Morgan Johansson. “A Suécia está aceitando entre mil e dos mil imigrantes por semana. O Reino Unido não está assumindo a responsabilidade que lhe corresponde”, indicou Johansson.
 
Os números imigratórios europeus respaldam o ministro sueco, e refutam o papel de vítima dos caóticos “enxames humanos”, que as autoridades britânicas tentaram projetar para justificar as medidas anunciadas. Nos primeiros quatro meses do ano, cerca de 250 mil pessoas solicitaram asilo político a países da União Europeia: menos de 10 mil (3%) buscaram essa ajuda no Reino Unido (que tem mais de 10% da população europeia). Segundo as Nações Unidas, há um total de 250 mil refugiados na França: mais que o dobro que no Reino Unido.
 
A realidade é que, com uma sociedade que direitizou o seu discurso, o governo britânico mescla deliberadamente asilo político, imigração ilegal econômica e o que sucede em Calais. “A imensa maioria dos imigrantes ilegais são gente que chegou normalmente ao Reino Unido e ficou depois que venceu seu visto para trabalhar num restaurante ou montar um negócio. Não é alguém que veio da Eritreia, que trepa no teto de um caminhão em Calais para ver se consegue furar as barreiras da fronteira”, explica Jonathan Portes, diretor do National Institute of Economic and Social Research. 
 
O problema do governo é ter prometido reduzir a imigração a menos de 100 mil pessoas por ano – quando chegou ao poder, em 2010. Longe desse objetivo, os números dispararam a mais de 300 mil. A imensa maioria são imigrantes econômicos, sejam de outros países da União Europeia (legais) ou do planeta (com ou sem permissão de estadia).
 
A única maneira de seguir projetando uma imagem de firmeza é com pronunciamentos de linha dura com os imigrantes que se concentram em Calais, muitos deles provenientes da Síria, Afeganistão, Iraque, Eritreia e Sudão, todos eles países imersos em guerras civis ou sob governos ditatoriais.
 
Como a hipocrisia é a homenagem do vício à virtude, o discurso oficial conservador nunca se esquece de recordar a “nobre tradição britânica” de asilo político, desde as revoluções europeias do Século XIX ao nazismo ou os países convulsionados nos Anos 70. Na prática, a ministra do Interior Theresa May, aspirante a suceder Cameron, afirmou abertamente que os refugiados de um país como a Eritreia são econômicos e não políticos, apesar de as Nações Unidas terem publicado um documento de 500 páginas sobre a “violação sistemática e absoluta dos direitos humanos” sob o governo de Isaias Afwerku, que, entre outras coisas, tem um sistema de alistamento obrigatório para toda a população masculina ou feminina, o que, segundo as organizações de direitos humanos, os transforma numa população escrava. 
 
Em Calais, os testemunhos da grande maioria são contundentes. Um dos refugiados africanos comentou, numa reportagem do dominical britânico “The Observer”, que preferia que essas barracas precárias em que se aloja a voltar ao seu país. “Não quero morrer, não quero matar a ninguém. Não me importa ficar aqui para sempre. Pelo menos aqui não há armas, não há mortes”.
 
Tradução: Victor Farinelli

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