Chegou a vez do Coronel Kadafi?
A Líbia foi reabilitada de seu status de Estado pária, em 2003, concordando em abandonar
seu programa nuclear e promover a abertura aos investimentos ocidentais, principalmente
para as grandes empresas petrolíferas que assinaram contratos bilionários. Em 2006, o
coronel Kadafi aderiu a um programa para instaurar o livre mercado e reconheceu o papel
central da iniciativa privada na Líbia, preparando o caminho para implementar as
chamadas reformas econômicas sob a supervisão do FMI e do Banco Mundial.
Reginaldo Nasser (*)
A marcha das revoluções continua com vigor no mundo árabe. Agora é a vez da Líbia. Os protestos
tiveram início com a prisão do advogado líbio e ativista dos direitos humanos Fathi Terbil dias antes
do "Dia de Fúria" (17 de fevereiro). Terbil representa um grupo de famílias cujos filhos foram
massacrados (por volta de 1200 prisioneiros opositores do regime) pelas autoridades da Líbia, em
1996, em Trípoli (prisão de Abu Salim). No dia 17 de fevereiro, o líbio-americano Najla
Abdurrahman escrevia, indignado, um artigo na revista Foreign Policy com o seguinte título: líbios
estão entregando suas vidas para derrubar Muammar al-Gaddafi. Será que ninguém está prestando
atenção?
Com razão. Até o momento não há nenhum sinal de qualquer ação mais contundente da celebrada
“comunidade internacional”. Mesmo após centenas de mortos, no 5º dia de repressão, a repercussão
ainda é pequena. O que seria de se estranhar, num primeiro momento, pois o regime de coronel
Kadafi está no poder mais tempo do que qualquer outra ditadura no mundo árabe (42 anos) além de
ser responsável por várias ações terroristas na década de 80.
Mas, não deixa de ser tão surpreendente assim se lembrarmos que, em 2008, a então secretária de
Estado dos EUA, Condoleezza Rice, realizou um tour no norte da África passando por Tunísia,
Argélia, Marrocos e Líbia ( coincidência?) declarando, ao final, que as relações entre os EUA e a Líbia
entravam numa nova era de cooperação. Quando questionada sobre o problema dos direitos
humanos naquele pais, Rice disse que havia discutido com o Sr Kadafi “de maneira respeitosa”. O
ministro líbio de Relações Exteriores, por sua vez, disse que a presença de Rice foi a prova de que a
Líbia, os EUA e o mundo tinham mudado. Sem dúvida nenhuma que o mundo mudou! A Líbia foi
reabilitada de seu status de Estado pária, em 2003, concordando em abandonar seu programa
nuclear e promover a abertura aos investimentos ocidentais, principalmente para as grandes
empresas petrolíferas que assinaram contratos bilionários. A Líbia, conformando-se às resoluções da
ONU, livrou-se do embargo econômico, e passou a restabelecer seus laços políticos e diplomáticos
com os países europeus e os EUA, reintegrando-se na comunidade internacional. Em 2006, o coronel
Kadafi aderiu a um programa para instaurar o livre mercado e reconheceu o papel central da
iniciativa privada na Líbia, preparando o caminho para implementar as chamadas reformas
econômicas sob a supervisão do FMI e do Banco Mundial. O ministro Tony Blair teve atuação
destacada nesse entendimento aprovando ainda a venda de gás lacrimogêneo, armas de “controle
de multidões”, fuzis e metralhadoras para Bahrein e Líbia. “Revoluções no Mundo Árabe e Islâmico: Regimes Políticos, Síria e Irã - 2012
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O embaixador norte-americano na Líbia, Cretz, em depoimento no Carnegie Endowment for Peace,
em 2008, informou que houve grandes progressos durante esses dois anos de “normalização” nas
relações EUA-Líbia e que estava iniciando uma cooperação significativa entre os dois países. Cretz
elogiou ainda os esforços de privatização, enfatizando que as missões de comércio dos EUA tiveram
excelente receptividade. No que se refere aos Direitos Humanos, o embaixador afirmou existir um
diálogo aberto e franco entre os dois paises, reconhecendo, entretanto, que a promoção da
democracia é uma questão delicada e deve ser abordada com cuidado.
Mas o embaixador esqueceu de mencionar que a economia da Líbia continua extremamente
dependente das flutuações dos preços internacionais do petróleo e do gás. Os bilhões de dólares
acumulados ao longo dos anos não foram utilizados para diversificar a economia. Há uma enorme
discrepância entre as várias classes sociais e seus respectivos setores produtivos. O setor agrícola,
por exemplo, emprega 20% da força de trabalho, embora contribua apenas com 2% do PIB. O setor
industrial, incluindo petróleo, gás e petroquímica, é responsável por mais de 60% do PIB, e emprega
menos de 25% da força de trabalho. As taxas de desemprego variam entre 20 a 30 %.
É importante notar que a Líbia é um Estado-nação sui generis onde as ligações tribais são
fundamentais. Kadafi tem governado por meio da mediação de um "comitê de liderança social",
composto por cerca de 15 representantes de várias tribos que tem presença até mesmo dentro das
fileiras das forças armadas, cada qual representando um grupo tribal. Assim, ao contrário dos
militares da Tunísia ou Egito, a inexistência de coesão e profissionalismo não permite a intervenção
para resolver o conflito com os manifestantes. Ainda não se sabe quais as unidades militares foram
envolvidas na tentativa de conter os distúrbios e se há cisão entre elas. Também não sabemos se
são verídicas as informações de que há mercenários e criminosos contratados pelo governo.
Entretanto algumas declarações que começam a circular na mídia podem indicar o desfecho da crise.
Uma das lideranças mais destacadas da poderosa tribo Al-Zuwayya disse à rede Al Jazeera que já
intimou o coronel Kadafi deixar o país, ameaçando cortar as exportações de petróleo.
Infelizmente, ao que tudo indica, o alerta do filho de Kadafi, de que há risco iminente de uma
verdadeira guerra civil, parece ser procedente, pois como bem observou um jornalista perspicaz o
comportamento dos manifestantes e das forças de segurança dão razão para acreditamos que
qualquer recuo de um dos lados significará a morte ou a prisão definitiva. Será que ninguém está
disposto a ajudar os líbios?
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-SP
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