Para Ruy Braga, as principais tendências do mercado de trabalho brasileiro na última década tendem a combinar a formalização do emprego e a precarização das condições de trabalho
Graziela Wolfart
Graziela Wolfart
Ruy Braga: “Estamos no ápice da curva histórica do emprego formal no Brasil”
Ao descrever a recente dinâmica do mundo do trabalho, o professor Ruy Braga, da USP, explica que “os trabalhadores jovens entram no mercado de trabalho, são rapidamente absorvidos pelas empresas, consumidos por um regime fabril despótico, e quando adoecem são também rapidamente demitidos e substituídos por outro trabalhador jovem, que recomeça o mesmo ciclo”. Na entrevista a seguir, concedida por telefone àIHU On-Line, ele considera que faltam hoje, no Brasil e na sociologia do trabalho internacional, mais estudos sobre a discriminação por orientação sexual dos trabalhadores. E continua: “nós temos grandes desafios do ponto de vista do mundo do trabalho, da mobilização sindical pela frente, de defesa e ampliação dos direitos trabalhistas. Penso que a melhor maneira de se lidar com esses desafios, do ponto de vista da sociologia crítica e do trabalho, é pensar a fundo esses problemas em uma perspectiva independente dos governos e das empresas, assumindo o ponto de vista da sociedade civil e dos trabalhadores”.
Ruy Braga é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. É graduado em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas – Unicamp, onde cursou mestrado em Sociologia e doutorado em Ciências Sociais. É pós-doutor pela Universidade Califórnia/Berkeley, nos Estados Unidos, e livre-docente pela USP. Entre outros, é autor de Por uma sociologia pública (São Paulo: Alameda, 2009) e A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que medida a política do precariado reflete a situação do mundo do trabalho brasileiro?
Ruy Braga – Vamos começar falando do que seria a política do precariado. Parto da ideia de que a reprodução do capitalismo na semiperiferia, em vez de produzir o consentimento operário, como foi, de alguma maneira, mais frequente nos países de capitalismo avançado, em especial nos setores monopolistas, promove, na realidade, o que eu costumo chamar de inquietação operária. O regime de acumulação, nessas condições semiperiféricas, tem dificuldade de garantir e ampliar concessões materiais aos trabalhadores, o que acaba fazendo com que esses mesmos trabalhadores sejam levados compulsoriamente a um processo de automobilização em busca tanto da efetivação quanto da ampliação dos direitos trabalhistas. Muitas vezes, esse processo de automobilização pela efetivação e ampliação dos direitos trabalhistas é feito contra a vontade dos próprios sindicatos. Os trabalhadores têm que se mobilizar contra o controle da burocracia sindical. Esse processo encontra-se em curso, ainda hoje, no Brasil. É de flagrante atualidade, a despeito de que se consegue identificar hoje uma dinâmica um pouco mais fragmentada. Sem dúvida, essa dinâmica encontra-se presente, por exemplo, no atual ciclo grevista das obras do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC, em especial em Belo Monte , onde os trabalhadores se encontram em greve, ou paralisados, ou se mobilizando. Além disso, encontramos esse processo de política do precariado, de mobilização daqueles que são os trabalhadores mais precarizados e pior remunerados, também, por exemplo, no Estado, com o precariado associado à educação, principalmente da educação do ensino fundamental e secundário. Temos greves acontecendo em escala nacional dos professores, temos dinâmicas grevistas de trabalhadores pobres precarizados, como é o caso dos trabalhadores dos correios. Então, é possível dizer que essa dinâmica política do precariado reflete a situação do mundo do trabalho brasileiro de diversas maneiras e tem efetivamente uma atualidade.
IHU On-Line – Qual o poder e a força da insegurança na trajetória dos assalariados em nossos dias?
Ruy Braga – A reprodução do capitalismo na semiperiferia transformou a condição de insegurança em regra. Podemos identificar aqui a insegurança salarial, com os baixos salários e as poucas garantias trabalhistas. Entre 2002 e 2010 foram criados 2.1 milhões de empregos formais, todo ano, no mercado de trabalho brasileiro, mas 94% desses empregos pagava até 1.5 salário mínimo, ou seja, até 900 e poucos reais. Isso significa que os baixos salários correspondem à regra, o que evidentemente implica em uma insegurança monetária. Temos associado a isso a insegurança do processo de trabalho, com o aumento do número de acidentes trabalhistas, que praticamente duplicou nos últimos 10 anos, além de um aumento também significativo no número de adoecimentos, em especial aqueles associados a Lesão por Esforço Repetitivo (LER), a Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho (DORT) e a doenças de fundo psicossomático.
Temos uma insegurança imposta pela própria reprodução do regime fabril, ou seja, basta olhar as taxas de rotatividade ao longo dos últimos 10 anos para ver como houve um aumento nelas. Como no Brasil não há efetivamente uma cláusula contra demissão imotivada, isso favorece o que costumamos chamar, em sociologia de trabalho, de manejo predatório da força de trabalho. Isto é, os trabalhadores jovens entram no mercado de trabalho, são rapidamente absorvidos pelas empresas, consumidos por um regime fabril despótico, e quando adoecem são também rapidamente demitidos e substituídos por outro trabalhador jovem, que recomeça o mesmo ciclo. E eu diria também que existe uma flagrante insegurança nas condições de vida nas cidades. A violência urbana está associada com as condições de vida precárias, ocupações irregulares, ilegalismo, favelização. De acordo com os dados oficiais do IBGE, coletados pelo Censo 2010, temos praticamente 12 milhões de pessoas, ou seja, 6% da população brasileira, vivendo em favelas. Isso implica uma flagrante insegurança do ponto de vista das condições de vida nas cidades e aponta para uma ampliação da insegurança do trabalhador brasileiro.
IHU On-Line – Quais são as principais tendências do mercado de trabalho no país na última década?
Ruy Braga – Eu destacaria duas tendências principais. Por um lado, é flagrante o que poderíamos chamar de formalização do emprego, ou seja, a criação de milhões de empregos formais, o que praticamente inverte aquela relação entre formal e informal que tínhamos na década de 1990. De fato, em termos de formalização estamos no ápice da curva histórica do emprego formal no Brasil. Isso é evidentemente positivo porque, junto com o emprego formal, existem algumas garantias trabalhistas. Mas, por outro lado, existe também uma ampliação da precarização das condições de trabalho. A precarização normalmente está muito associada à precarização contratual. No entanto, existe uma outra forma de precarização do trabalho, que é mais complexa, porque é multifacetada e se associa ao problema das condições de trabalho, ou seja, as condições de consumo da mercadoria “força de trabalho”. Temos o aumento da taxa de rotatividade, o aumento da flexibilização, do número de acidentes de trabalho e a generalização do que podemos chamar de trabalho assalariado sub-remunerado, apesar de formal. Ou seja, as principais tendências do mercado de trabalho brasileiro nessa última década tendem a se polarizar, a combinar essas duas principais dinâmicas: de um lado, a formalização do emprego e, de outro lado, a precarização das condições de trabalho.
IHU On-Line – O que faz dos operadores de telemarketing um “retrato” do precariado pós-fordista?
Ruy Braga – Eu tenho insistido nessa ideia de que o grupo de teleoperadores é uma espécie de retrato do precariado brasileiro pelo fato de que podemos identificar uma certa coincidência das principais características desse grupo com as grandes tendências do mercado de trabalho brasileiro nos últimos 10 anos. Existe basicamente uma sobreposição de características. Eu destacaria, em primeiro lugar, a questão do emprego formal, ou seja, não existe praticamente o emprego informal na indústria do call-center brasileiro, o que coloca o precariado vinculado a essa tendência. No entanto, existe também um baixo nível de qualificação dessa força de trabalho, que acaba implicando na multiplicação de baixos salários que, por sua vez, colocam esses trabalhadores em condições efetivamente precárias de vida. Além disso, esse grupo é um retrato do precariado pós-fordista brasileiro porque é fundamentalmente formado por trabalhadores jovens. De fato, a indústria do call-center se tornou, nos últimos 15 anos, a principal porta de entrada para o emprego formal, para os jovens, assalariando predominantemente mulheres não brancas.
IHU On-Line – Quais são hoje as demandas das pautas operárias e em que elas se diferem da sociedade trabalhista de 30 anos atrás?
Ruy Braga – Existem diferenças relacionadas às pautas específicas, ou algumas demandas históricas. Por exemplo, há 30 anos uma das demandas era a oficialização ou a efetivação do salário mínimo, ou a conquista do direito ao décimo terceiro salário. O que me chama atenção, na verdade, é uma certa permanência, uma similaridade. Se analisarmos hoje as principais campanhas nacionais e mobilizações de trabalhadores no Brasil, iremos perceber claramente uma tentativa de articulação de demandas que exigem uma ampliação da proteção social com a busca da ampliação do progresso material dos trabalhadores. Ou seja, temos uma demanda por melhores salários, mas ao mesmo tempo temos demandas por garantia de proteção do trabalhador contra a demissão imotivada, por diminuição da jornada de trabalho para garantir o emprego, mas sem diminuição de salários, temos demandas por proteção contra a precarização das condições de trabalho, pela efetivação dos direitos trabalhistas para os trabalhadores domésticos, pelo fato de que esses constituem o principal grupo sócio-ocupacional brasileiro, com mais de 7 milhões de trabalhadores.
IHU On-Line – O que deve ser comtemplado nos estudos da sociologia do trabalho do século XXI?
Ruy Braga – A agenda da sociologia do trabalho no Brasil e em escala internacional tem sido dominada por um tripé muito correto, conveniente e importante que busca, por um lado, aprofundar o estudo da relação entre a política e o trabalho, ou seja, aprofundar a pesquisa sobre as diferentes relações entre estados, sindicatos, trabalhadores em diferentes contextos nacionais; por outro lado, temos um exponencial aumento dos estudos de caso que se dedicam a perscrutar as formas atuais de precarização do trabalho. E finalmente o que tem se consolidado nos últimos anos na sociologia brasileira e internacional são os estudos concentrados nessa nova composição da força de trabalho pós-fordista: uma flagrante preocupação com a feminização da força de trabalho. No caso de países como o Brasil, precisamos pensar evidentemente em estudos que colocam num primeiro plano o problema racial, ou seja, a questão de que essa força de trabalho é predominantemente não branca. O que está faltando são estudos que destaquem diferentes formas de dominação não tradicionais ou menos conhecidas. Faltam no Brasil e na sociologia do trabalho internacional mais estudos sobre a discriminação por orientação sexual dos trabalhadores.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a opção de apostar no desemprego como controle da inflação?
Ruy Braga – Essa é uma tese de economistas ortodoxos, neoclássicos que imaginam que o problema da inflação passa fundamentalmente por uma, dentre tantas variáveis. Isso não procede. Se a relação entre desemprego alto e inflação baixa fosse efetivamente verdadeira, como defendem esses economistas, a Alemanha, para citar um exemplo histórico que muitos conhecem, nas décadas de 1920 e 1930, seria o país com as menores taxas de inflação do mundo. Essa relação não é mecânica. A realidade da inflação é marcada por um arranjo complexo de variáveis e de causas. Deve-se evitar o descontrole inflacionário, porque isso prejudica principalmente o trabalhador. No entanto, eu não apostaria no desemprego. Essa é a pior maneira de se lidar com isso. Sou favorável que o governo lance mão de medidas mais agressivas de administração dos preços, principalmente daqueles produtos que compõem a cesta básica. Essa é uma maneira, do ponto de vista do mundo do trabalho, mais eficiente de controlar o que chamo de inércia ou descontrole inflacionário.
IHU On-Line – Tendo em vista o cenário de desaceleração econômica, o que podemos esperar da realidade do mundo do trabalho no Brasil para os próximos anos?
Ruy Braga – Em primeiro lugar, não acredito que vá haver uma mudança drástica do atual cenário político, do ponto de vista do mundo do trabalho, no curtíssimo prazo. Coloco essa mudança mais no médio e longo prazo. No entanto, se acompanharmos a evolução da curva das greves no Brasil, de 2000 para cá, houve, de fato, um aumento discreto permanente na atividade grevista. Eu aposto que esse cenário marcado por um baixo crescimento econômico vai continuar alimentando esse aumento progressivo, permanente e constante das mobilizações grevistas no Brasil.
IHU On-Line – Qual a inspiração que Robert Castel pode oferecer para os desafios do mundo do trabalho em nossos dias?
Ruy Braga – Robert Castel foi um dos mais importantes sociólogos do trabalho do segundo pós-guerra. Eu diria que ele foi um dos mais importantes sociólogos do período. As pesquisas que ele desenvolveu nos últimos 40 anos sobre, principalmente, o processo de institucionalização dos direitos trabalhistas ao longo do século XX, destacando evidentemente a Europa e, em especial, a Europa ocidental, é uma das mais importantes contribuições sobre o tema para a sociologia do trabalho. Robert Castel é incontornável nesse sentido. É uma grande perda para a sociologia, para a sociologia do trabalho e para a sociologia crítica internacional. No entanto, vejo questões problemáticas também no seu trabalho que, evidentemente, inspiram a sociologia do trabalho hoje e continuarão inspirando, sendo fonte permanente de inquietação, de levantar desafios para o tema na contemporaneidade. Por exemplo, Robert Castel, ao enfatizar aquela dinâmica de institucionalização dos direitos e seus desdobramentos, a relação do Estado com os sindicatos e os trabalhadores, naquilo que ele chamava de salariados (a classe dos trabalhadores assalariados), acabou tendo alguma dificuldade em interpretar a centralidade que a insegurança social inerente ao processo de mercantilização do trabalho ocupa no mundo do trabalho contemporâneo. Eu vejo uma área problemática na teoria de Castel que, por sua vez, tem alguma dificuldade de refletir sobre essa relação entre a insegurança inerente à mercantilização do trabalho e o processo de crise do Estado de bem-estar social, crise da relação salarial fordista, crise financeira e econômica. Ele acabou tentando dar conta disso através de um conceito de precariado que colocava muita ênfase num certo comportamento político regressivo, autoritário, antidemocrático, que ele chamava de novas classes perigosas na Europa, em especial na França. Não vejo o precariado dessa forma, nem que essa seja uma boa solução para o caso europeu e, sem dúvida, não é uma boa solução teórica para o caso brasileiro.
IHU On-Line – O senhor gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?
Ruy Braga – Nós temos grandes desafios do ponto de vista do mundo do trabalho, da mobilização sindical pela frente, de defesa e ampliação dos direitos trabalhistas. Penso que a melhor maneira de se lidar com esses desafios, do ponto de vista da sociologia crítica e do trabalho, é pensar a fundo esses problemas em uma perspectiva independente dos governos e das empresas, assumindo o ponto de vista da sociedade civil e dos trabalhadores.
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