quarta-feira, 29 de maio de 2013

Sobre a pretensão da Academia e da mídia de pararem a história


Sobre a pretensão da Academia e da mídia de pararem a história

Os professores tem questionado acerca da persistência ou não de artistas malditos no mundo de hoje. Será a sociedade contemporânea infensa a desconsiderar os verdadeiros artistas?

A pergunta posta por um colóquio da USP – e que motivou a vinda de alguns professores estrangeiros ao Brasil – sobre a persistência ou não de artistas malditos no mundo de hoje levantou uma questão do passado, mas não parece ter respondido a muitas dúvidas do presente: será a sociedade contemporânea infensa a desconsiderar os verdadeiros artistas? 

Para muitos professores, a resposta seria, desta vez, positiva. Com todo o tipo de licenciosidade não mais fora de lugar, e outros cometimentos plenamente aceitáveis , tudo levaria o conceito do artista maldito à órbita em que expressão nasceu - apenas aos séculos XIX e parte do XX – ou seja, com Mallarmé, Baudelaire, Van Gogh e outros que se lhes seguiram, inclusive no Brasil, como Cruz e Souza, e quem sabe, Nelson Rodrigues ou Plínio Marcos, para só citar alguns. O mais, seriam as extensões desses artistas. Deste modo, aqueles que eventualmente, na atualidade, têm suas obras interditadas, não seriam propriamente "malditos"- mas, quem sabe, qualitativamente desconsiderados, por razões , digamos, "corretas". O desprezo tanto da mídia quanto da academia seria perfeitamente aceitável. Certos artistas seriam ignorados por não o merecerem. Nada de maldições.

A pretensão de deter a pedra filosofal é da natureza da academia. É da certeza de que o ensino deve ser conduzido - daí a palavra corpo docente- ou seja de que há uma parcela da academia que deve dirigir também as opiniões, que é o que fazem, aliás, os professores terem a justa certeza de que são detentores da verdade; essa a sua pretensão natural ; quanto à outra parte, a dos discentes, vale dizer, dos alunos - os que são conduzidos - esse devem ouvir. E se não forem "malditos", mas apenas maus alunos, paciência. 

Resumidamente, à universidade caberia, por sua função precípua, dizer não apenas o que é bom - mas extinguir a palavra "maldito" em alusão aos artistas que fazem o momento em que vivemos na arte - em todas as artes. Haveria agora um guarda-chuva - nada mais do que a sapiência pretendida na própria universidade - a resguardar a academia de cometer injustiças.

O assunto vai longe e evidentemente comporta o olhar não só da Universidade, mas também da mídia. A questão, porém, pode ser vista "stricto sensu ( para usar uma expressão cara aos acadêmicos), com o que não existiriam mais "artistas malditos", já que ambas, a crítica da mídia e a academia usariam critérios democráticos e, até certo ponto, infalíveis. A maldição faria parte da pré-história da modernidade. Plínio Marcos não teria sido maldito, a não ser para a censura do regime militar brasileiro. Suas peças não seriam reencenadas hoje por razões, digamos, estéticas. Assim também com Brecht e outros. Vivemos a vanguarda, Plínio Marcos não faria parte do seu repertório. Será?

É possível.

Realmente, nada mais à vanguarda atualmente do que a academia. Ela é a primeira a avalizar as bienais, sejam quais forem. O passado histórico que marcou o antagonismo da academia, contra todos os movimentos que se seguiram ao revolucionarismo político do século passado, parece lhe ter se imposto como uma espécie de acatamento " in limine " de qualquer cometimento no presente. 

Aos mestres que, em todo o caso, compareceram ao simpósio da USP não se sabe de nenhum que tenha ocorrido que os artistas malditos talvez existam; e que seriam exatamente os que não entram, de novo, nas cartilhas acadêmicas. Por exemplo: há um sem número deles que não comunga das idéia de que a arte conceitual, ou o que quer que seja considerado que tal, de modo algum responde ou esgota o que seja arte numa totalidade. A pergunta então que se impõe é: não seriam esses, de alguma forma, "malditos"? E os que ainda sabem desenhar ou escrever - não responderiam de uma certa forma a essa categoria, justamente por deterem algumas técnicas que a academia exorcizou como parte do repertório tradicional, e que, a "bom tempo" ela rejeitou e que se tornou, afinal, o corriqueiro, quando não o canônico?

Parece haver uma tarefa ingrata nisso de ser mestre do ensino superior em nossas tempos. De um lado, há o passado. Cruz e Souza, o poeta negro, foi solenemente ignorado. Sobre a sua poesia, quando ela apareceu, pouquíssimo a dizer - afinal era negro e o que importava era fundamentalmente isso. Hoje os mestres o conhecem a saciedade, do contrário não seriam professores. De outro, porém, como conciliar o necessário vanguardismo, com o respeito aos que já não o acatam, como parte justamente do seu estofo, de serem ou de se proclamarem artistas? São perguntas que, de uma certa forma, atingem o ensino. Assim como, no passado, era impossível a um aluno de artes plásticas, e de composição musical não saberem o desenho clássico ou a harmonia tradicional, em quase todas as instituições de ensino, atual, jogou-se para um segundo plano exercitar o desenho clássico e a harmonia tradicional. Quanto ao escrever corretamente, consoante as normas - aquelas que se encontram nos dicionários - ficou para o lado obscuro do ensino, exigir-se dos alunos terem claro o correto, do simplesmente incorreto. Com o que, evidentemente, os artistas malditos, seriam não aqueles que não escrevem segundo as normas, mas os que o fazem. E que talvez por isso mesmo, não podem ser inscritos na pecha de malditos, já que isso não mais existe. 

A absolvição decretada pelo simpósio da USP da responsabilidade da academia, no julgamento de maldito, dispensa-a de, a seu turno, não ter atentado para a maldição que a sua indiferença acarreta. Claro que ao proclamar que não existem artistas malditos, a academia se junta à mídia, na conclusão de que já não se cometem injustiças, e de que os artistas ignorados pela mídia – e pela academia – são simplesmente incapazes, ou medíocres. Ao proclamar a inexistência de artistas malditos, a academia se livra da pecha que a persegue e a perseguiu no passado. E isso que, sob o ponto de vista artístico, a contribuição da academia tem sido nula, não só nos últimos séculos. E ao buscar um vanguardismo talvez inexistente, que hoje se encontra mais na academia do que em qualquer outro lugar, talvez ela pense em se livrar do julgamento da história. Se a isso for decretado que artistas malditos não existem, restar-lhe-ia, por fim, a glória de,desta vez, não errar. A começar pela decretação de que "não existe artistas malditos". Seria essa a lógica. No entanto, talvez exatamente no vanguardismo a qualquer preço esteja justamente um novo academismo. E , portanto, o indesculpável dessa história toda. Mas aí se volta ao de sempre. Onde o papel da academia - e da mídia - nunca foi exatamente o de não decretar maldições. 

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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