Inocência
Tudo tinha um toque meio inocente, vizinhos se frequentavam, pedir emprestada uma caneca de farinha não era pecado. A Suécia, por exemplo, não passava do país das lourinhas espigas de milho, do cavalheirismo e do fairplay, demonstrados na final da Copa do Mundo de 1958.
Jacques Gruman
Soa estranho, esta manhã/tudo o que sempre foi meu, como pode ? (Paulo Leminski)
Terá sido a Linda ou a Dircinha? As irmãs Batista estavam no auge da carreira e uma delas gravou um jingle que não esqueço. Dizia assim: Revista do Rádio/que toda semana eu espero/Revista do Rádio/Ei, jornaleiro !/É essa que eu quero. Sem imagens, as transmissões de rádio obrigavam os ouvintes a usar a imaginação, fantasiando a aparência de seus ídolos (atores das novelas, cantores e apresentadores de auditório). A Revista do Rádio saciava parte da curiosidade, alimentando fofocas (a coluna dos Mexericos da Candinha criou escola) e abrindo o buraco da fechadura para voyeurs e sonhadores. Lá ia o Paulo Gracindo no carrão rabo-de-peixe. Carminha Mascarenhas mostrava seu novo apartamento em Botafogo, a penteadeira era um luxo. Dalva de Oliveira falava de amores e dúvidas existenciais. Emilinha não saía do quarto depois de ter comprado um moderno aparelho de ar condicionado, pela fortuna de 200 contos. A rotina das donas-de-casa e empregadas era impregnada por aqueles sons e por um Eldorado inatingível, mas hipnótico. O Menino ficava impressionado com aquela força, que fazia a tia Marília, solteirona de perfil cadavérico e bigode ralo, passar o dia inteiro colada nas ondas da Nacional. Tudo sob o patrocínio da Auricedina, das Pílulas de Vida do dr. Ross, dos sabonetes Lifebuoy e Eucalol e Avon chama ! O reinado parecia imbatível.
Certo dia, alguém trouxe para casa um móvel imponente, madeira de lei. Os vizinhos da Vila ardiam de excitação. Seria possível ? Aquilo era uma televisão ? Ora, ora, não é que era mesmo ? Formou-se um pequeno ajuntamento. Da tela pequena, imagens em preto e branco, que a todo momento, teimosas, subiam e desciam de elevador (mexe aí no botão Vertical !), viravam um desenho zebroide diagonal (vê se o botão Horizontal dá um jeito !) ... e um imenso fascínio. Junto com o trambolho, uma revistinha com a modestíssima programação dos três únicos canais: Tupi, Rio e Continental. Mais tarde, viria a Excelsior. Intervalo repetia a fórmula da Revista do Rádio e marcava a transição que desbancaria, aos poucos, o monopólio radiofônico. Era, também, representação gráfica de uma instituição nutrida pelos altos preços iniciais dos aparelhos de televisão: os televizinhos. O Menino tinha carteira deste clube. Só os vizinhos “ricos” tinham TV. Assistiu, de carona, a alvorada de grandes atores como Zilka Salaberry, Norma Blum, Roberto de Cleto, Fábio Sabag e Isaac Bardavid no antológico Teatrinho Trol, que ia ao ar aos domingos (pé de cachimbo, não é, tia Marília ?). Assustou-se com as histórias de terror do Boris Karloff. Não perdia Carequinha, Fred e Oscar Polidoro. Era uma época amena, vizinhos se frequentavam, pedir emprestada uma caneca de farinha não era pecado. Servia de gancho para uma boa conversa. Era tudo olho no olho, sem óculos Google. Virtual, no sentido que hoje empregamos o termo, era ficção científica.
Tudo tinha um toque meio inocente. Suécia, por exemplo, não passava do país das lourinhas espigas de milho, do cavalheirismo e do fairplay, demonstrados na final da Copa do Mundo de 1958. Tinha chovido a cântaros (essa é uma crônica empoeirada) na véspera, tornando o gramado pesado, mais favorável a um time musculoso e cintura dura como o sueco. Para não se beneficiarem do acidente meteorológico, os suecos obrigaram os funcionários do estádio Rasunda a secarem a grama com esponjas. Baldes molhados de dignidade. Revistas eróticas com as lourinhas, inocência amadora, eram desejadas mas inacessíveis. Hoje, o Menino abre outros olhos e vê o desmonte do modelo socialdemocrata sueco, num flerte-quase-casamento com a direita xenófoba. Democracia burguesa sofisticada, acaba de reprimir com violência manifestações em bairros pobres de Gotemburgo. Há tinturas de racismo no episódio.
Dos Estados Unidos vinham envelopes. O Menino trocava selos e recebia catálogos de grandes companhias de aviação. Não importava o conteúdo, valia o fato de receber material “de fora”. Dava status. Filatelistas, aliás, estão em avançado estágio de extinção. Quem ainda se interessa por selos ? Tal como palavras e expressões, teve seu ciclo de vida. Quem é que, hoje, fala cáspite ou alhures, se espanta exclamando cos diabos ? Ajustando o filtro, o Menino vê sinais perturbadores. Sai do correio e entra nas instalações militares. Descobre que seus soldadinhos de chumbo causaram pelo menos 26 mil incidentes de abusos sexuais, apenas em 2012. Oficiais engajados em evitar esse tipo de crime, frequentemente o praticam. Constata o poderio do lobby pró-armamentos, que barra qualquer tentativa de reduzir a posse de armas pelos cidadãos. Vê o direito internacional ser pisoteado pelo uso intensivo de drones em execuções extrajudiciais. Chet Baker, Miles Davis, Woody Guthrie, Billie Holliday, Angela Davis, Julius e Ethel Rosenberg e Bessie Smith não mereciam isso.
Futebol, para o Menino, era arquibancada de cimento, procissões de barrigas de chopp, camiseta sem manga, criatividade popular na geral. Qualquer um podia bancar uma ida ao Maraca. Novo ajuste nas lentes. Despedida do Neymar tomara-que-caia. Os ingressos para o jogo, em Brasília, variaram entre R$ 160 e R$ 400. Privatizados, os estádios serão, cada vez mais, o circo dos graúdos. À la Nelson Rodrigues, com traje obrigatório: fraque e cartola. Com rara sinceridade, Paul Breitner, ex-jogador alemão de bom nível e embaixador do Bayern de Munique, disse que “futebol é show business. O Bayern não é só um clube, mas uma empresa”. Uma ironia: Uli Hoeness, presidente do Bayern e proprietário de uma fábrica de salsichas, está sendo investigado por sonegação milionária de impostos. Fica a lição para os adoradores do “empreendedorismo” no futebol. O Menino pensa, parado no tempo, como mestre João Saldanha. O futebol pode ser profissional, mas a torcida é amadora. Gosta de pensar, também, que os jogadores não são apenas mercadorias com certo talento. Que, tal como disse mestre Tostão, “o maior compromisso do artista é com sua arte. Não é com a fama nem com o dinheiro”. Não dá. Precisaria voltar aos tempos d’antanho. Tão impossível como recolocar pasta de dente no tubo depois de apertá-lo.
O grande neurologista britânico Oliver Sacks, cientista que tem a preocupação de explicar seus conhecimentos numa linguagem acessível, disse que “com frequência nossa única verdade é a verdade narrativa, as histórias que contamos uns aos outros e a nós mesmos – e que reclassificamos e refinamos sem cessar”. A memória, segunda Sacks, “é dialógica e nasce não só da experiência direta, mas também da intercomunicação de muitas mentes”. O Menino concorda. Sabe que suas vinculações sensíveis com o passado podem ter acontecido de forma diferente da que se lembra. Talvez nem tenham acontecido. Não importa. Se estimularem por aí qualquer forma de sensação, emoção ou prazer fugaz, terão valido a pena.
Terá sido a Linda ou a Dircinha? As irmãs Batista estavam no auge da carreira e uma delas gravou um jingle que não esqueço. Dizia assim: Revista do Rádio/que toda semana eu espero/Revista do Rádio/Ei, jornaleiro !/É essa que eu quero. Sem imagens, as transmissões de rádio obrigavam os ouvintes a usar a imaginação, fantasiando a aparência de seus ídolos (atores das novelas, cantores e apresentadores de auditório). A Revista do Rádio saciava parte da curiosidade, alimentando fofocas (a coluna dos Mexericos da Candinha criou escola) e abrindo o buraco da fechadura para voyeurs e sonhadores. Lá ia o Paulo Gracindo no carrão rabo-de-peixe. Carminha Mascarenhas mostrava seu novo apartamento em Botafogo, a penteadeira era um luxo. Dalva de Oliveira falava de amores e dúvidas existenciais. Emilinha não saía do quarto depois de ter comprado um moderno aparelho de ar condicionado, pela fortuna de 200 contos. A rotina das donas-de-casa e empregadas era impregnada por aqueles sons e por um Eldorado inatingível, mas hipnótico. O Menino ficava impressionado com aquela força, que fazia a tia Marília, solteirona de perfil cadavérico e bigode ralo, passar o dia inteiro colada nas ondas da Nacional. Tudo sob o patrocínio da Auricedina, das Pílulas de Vida do dr. Ross, dos sabonetes Lifebuoy e Eucalol e Avon chama ! O reinado parecia imbatível.
Certo dia, alguém trouxe para casa um móvel imponente, madeira de lei. Os vizinhos da Vila ardiam de excitação. Seria possível ? Aquilo era uma televisão ? Ora, ora, não é que era mesmo ? Formou-se um pequeno ajuntamento. Da tela pequena, imagens em preto e branco, que a todo momento, teimosas, subiam e desciam de elevador (mexe aí no botão Vertical !), viravam um desenho zebroide diagonal (vê se o botão Horizontal dá um jeito !) ... e um imenso fascínio. Junto com o trambolho, uma revistinha com a modestíssima programação dos três únicos canais: Tupi, Rio e Continental. Mais tarde, viria a Excelsior. Intervalo repetia a fórmula da Revista do Rádio e marcava a transição que desbancaria, aos poucos, o monopólio radiofônico. Era, também, representação gráfica de uma instituição nutrida pelos altos preços iniciais dos aparelhos de televisão: os televizinhos. O Menino tinha carteira deste clube. Só os vizinhos “ricos” tinham TV. Assistiu, de carona, a alvorada de grandes atores como Zilka Salaberry, Norma Blum, Roberto de Cleto, Fábio Sabag e Isaac Bardavid no antológico Teatrinho Trol, que ia ao ar aos domingos (pé de cachimbo, não é, tia Marília ?). Assustou-se com as histórias de terror do Boris Karloff. Não perdia Carequinha, Fred e Oscar Polidoro. Era uma época amena, vizinhos se frequentavam, pedir emprestada uma caneca de farinha não era pecado. Servia de gancho para uma boa conversa. Era tudo olho no olho, sem óculos Google. Virtual, no sentido que hoje empregamos o termo, era ficção científica.
Tudo tinha um toque meio inocente. Suécia, por exemplo, não passava do país das lourinhas espigas de milho, do cavalheirismo e do fairplay, demonstrados na final da Copa do Mundo de 1958. Tinha chovido a cântaros (essa é uma crônica empoeirada) na véspera, tornando o gramado pesado, mais favorável a um time musculoso e cintura dura como o sueco. Para não se beneficiarem do acidente meteorológico, os suecos obrigaram os funcionários do estádio Rasunda a secarem a grama com esponjas. Baldes molhados de dignidade. Revistas eróticas com as lourinhas, inocência amadora, eram desejadas mas inacessíveis. Hoje, o Menino abre outros olhos e vê o desmonte do modelo socialdemocrata sueco, num flerte-quase-casamento com a direita xenófoba. Democracia burguesa sofisticada, acaba de reprimir com violência manifestações em bairros pobres de Gotemburgo. Há tinturas de racismo no episódio.
Dos Estados Unidos vinham envelopes. O Menino trocava selos e recebia catálogos de grandes companhias de aviação. Não importava o conteúdo, valia o fato de receber material “de fora”. Dava status. Filatelistas, aliás, estão em avançado estágio de extinção. Quem ainda se interessa por selos ? Tal como palavras e expressões, teve seu ciclo de vida. Quem é que, hoje, fala cáspite ou alhures, se espanta exclamando cos diabos ? Ajustando o filtro, o Menino vê sinais perturbadores. Sai do correio e entra nas instalações militares. Descobre que seus soldadinhos de chumbo causaram pelo menos 26 mil incidentes de abusos sexuais, apenas em 2012. Oficiais engajados em evitar esse tipo de crime, frequentemente o praticam. Constata o poderio do lobby pró-armamentos, que barra qualquer tentativa de reduzir a posse de armas pelos cidadãos. Vê o direito internacional ser pisoteado pelo uso intensivo de drones em execuções extrajudiciais. Chet Baker, Miles Davis, Woody Guthrie, Billie Holliday, Angela Davis, Julius e Ethel Rosenberg e Bessie Smith não mereciam isso.
Futebol, para o Menino, era arquibancada de cimento, procissões de barrigas de chopp, camiseta sem manga, criatividade popular na geral. Qualquer um podia bancar uma ida ao Maraca. Novo ajuste nas lentes. Despedida do Neymar tomara-que-caia. Os ingressos para o jogo, em Brasília, variaram entre R$ 160 e R$ 400. Privatizados, os estádios serão, cada vez mais, o circo dos graúdos. À la Nelson Rodrigues, com traje obrigatório: fraque e cartola. Com rara sinceridade, Paul Breitner, ex-jogador alemão de bom nível e embaixador do Bayern de Munique, disse que “futebol é show business. O Bayern não é só um clube, mas uma empresa”. Uma ironia: Uli Hoeness, presidente do Bayern e proprietário de uma fábrica de salsichas, está sendo investigado por sonegação milionária de impostos. Fica a lição para os adoradores do “empreendedorismo” no futebol. O Menino pensa, parado no tempo, como mestre João Saldanha. O futebol pode ser profissional, mas a torcida é amadora. Gosta de pensar, também, que os jogadores não são apenas mercadorias com certo talento. Que, tal como disse mestre Tostão, “o maior compromisso do artista é com sua arte. Não é com a fama nem com o dinheiro”. Não dá. Precisaria voltar aos tempos d’antanho. Tão impossível como recolocar pasta de dente no tubo depois de apertá-lo.
O grande neurologista britânico Oliver Sacks, cientista que tem a preocupação de explicar seus conhecimentos numa linguagem acessível, disse que “com frequência nossa única verdade é a verdade narrativa, as histórias que contamos uns aos outros e a nós mesmos – e que reclassificamos e refinamos sem cessar”. A memória, segunda Sacks, “é dialógica e nasce não só da experiência direta, mas também da intercomunicação de muitas mentes”. O Menino concorda. Sabe que suas vinculações sensíveis com o passado podem ter acontecido de forma diferente da que se lembra. Talvez nem tenham acontecido. Não importa. Se estimularem por aí qualquer forma de sensação, emoção ou prazer fugaz, terão valido a pena.
(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.
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