terça-feira, 1 de outubro de 2013

A difícil democracia na América Latina



Por trás de cada atentado, de cada figura heroica que tentou trazer uma vida decente, democracia e justiça social para o seu povo, os Allende, Lumumba, Cabral, Arbenz, Luther King e tantos outros, se ergue uma imensa muralha de hipocrisia, de justificativas absurdas para o eterno adiamento da democratização efetiva das nossas sociedades

Ladislau Dowbor
Allende agiu rigorosamente dentro da lei, foi um presidente que cumpriu a constituição do seu país. E cumpriu com igual rigor o programa para o qual foi eleito. Este programa envolvia essencialmente reduzir as desigualdades. E reduzir as desigualdades implica evidentemente não só distribuir a renda, mas assegurar acesso à terra, democratizar as relações de trabalho nas empresas, utilizar as matérias primas naturais – em particular o cobre – para que sirvam ao desenvolvimento do país e não apenas ao consumo de luxo de intermediários nacionais e ao fortalecimento de países mais ricos, em particular os Estados Unidos. Foi o suficiente para que fosse derrubado e morto, seguindo-se o elenco tétrico de assassinatos, sequestros, tortura e expropriações que conhecemos. (nota 1) 

Tudo foi feito em nome da defesa da democracia. Instalar uma ditadura e governar acima das leis em nome da democracia é em si impressionante. Curiosas democracias latino-americanas: se um governo decide governar democraticamente, ou seja, assegurar a função social da propriedade, reduzir as desigualdades, promover os direitos básicos de acesso à saúde, educação, cultura e semelhantes, é derrubado. Mas se, ainda que ostentando um programa progressista, mantém uma política de defesa dos privilegiados de sempre, ou seja, se não aplicar a constituição nem os preceitos democráticos, poderá sim continuar a governar. É uma variedade particular de democracia que se derruba apenas se quiser ser democrática, que se mantém apenas se não se usa. Na prática, é defesa dos privilégios na lei ou na marra. 

Os Estados Unidos se tornaram o principal vetor de reprodução da desigualdade e de sobrevivência das oligarquias na América Latina. Somoza podia ser um ditador, mas estava do bom lado. Um comentário famoso de um empresário na época era que “he’s a son of a bitch, but he’s our son of a bitch”, que dispensa tradução. A maior democracia do mundo tornou-se a maior defensora de ditaduras. Hoje, com a abertura progressiva dos documentos do Congresso americano, fica bem documentada a intervenção americana no Chile, no Brasil e tantos outros países. Em nota para o embaixador americano em Santiago, Helms, diretor da CIA, escrevia: “Make the economy scream”, faça a economia gritar. Obedientemente, as dondocas de Santiago saiam à rua para o “panelaço”. Até o Irã teve recentemente direito a desculpas, pela derrubada do democraticamente eleito Mossadegh, gerando um caos político que dura até hoje. 

Havia, naturalmente, a grande justificativa, o comunismo. Estava-se salvando o mundo livre. Hoje, com as análises mais objetivas do passado recente, se constata a que ponto era um espantalho que justificava tudo, e não uma realidade. A própria facilidade com que se impuseram os regimes militares em todos os países mostra a que ponto a ameaça era fictícia. Cuba, aliás, não tinha nenhum objetivo de se tornar comunista até ser tão pressionada pelos Estados Unidos, com invasão, atentados e bloqueio, que foi forçada para os braços da União Soviética como forma de sobrevivência. O que Castro tinha no horizonte político era justiça econômica e social. Goulart foi apresentado como ameaça comunista! Stephen Kinzer apresenta um excelente estudo comparativo de algumas dezenas de golpes ou invasões protagonizados durante o século XX pelos Estados Unidos, e constata que se tratava em geral de se opor não a comunistas mas a nacionalistas que queriam utilizar os seus recursos para os seus próprios povos. (nota 2) 

Há alguns anos me pediram para avaliar políticas sociais na Guatemala, no quadro de uma pesquisa do Unicef. Nas minhas reuniões com movimentos sociais guatemaltecos, organizados pelo escritório local das Nações Unidas, só tinha jovens. A velha guarda, lideranças indígenas, sindicais, até feministas, tinham sido liquidadas, basicamente por milícias e esquadrões da morte financiadas pelos Estados Unidos, através entre outros da United Fruit, hoje rebatizada, a conselho das empresas de imagem corporativa, como Chiquita. Mataram 200 mil pessoas, 35 mil estão desaparecidas. O mesmo Stephen Kinzer publicou uma pesquisa detalhada sobre o envolvimento americano na Guatemala. (nota 3)

Hoje, é claro, temos o terrorismo. Este Bin Laden foi um achado. Permite aos fanáticos de um lado jogarem gasolina na vontade incendiária de outro, e a direita conservadora americana renova a sua justificativa de espionar, invadir, assassinar com drones – é prático, permite travar a guerra sem precisar pisar no território alheio – tudo em nome de nos proteger dos terroristas que nos querem matar. No Iraq se constituiu uma rede de centros de tortura e esquadrões da morte, coordenada pelo mesmo militar que montou um sistema similar em El Salvador. Abu Ghraib, Guantânamo se tornaram centros oficiais de tortura, frequentemente terceirizada no Mossad israelense ou em serviços de países amigos. 

As pessoas não têm a dimensão das proporções. Acho o atentado das torres de Nova Iorque uma tragédia, sobretudo porque justifica mais tragédias. Mas temos hoje um bilhão de pessoas que passam fome, dentre elas 180 milhões de crianças, e destas entre 10 e 11 milhões morrem de fome ou de doenças conexas todo ano. As crianças mortas são o equivalente de oito atentados de Nova Iorque por dia. Se se gastasse um décimo do que se gasta com o terrorismo...

Por trás de cada atentado, de cada figura heroica que tentou trazer uma vida decente, democracia e justiça social para o seu povo, os Allende, Lumumba, Cabral, Arbenz, Luther King e tantos outros, se ergue uma imensa muralha de hipocrisia, de justificativas absurdas para o eterno adiamento da democratização efetiva das nossas sociedades.

Notas

1) Para os detalhes do golpe, ver o excelente artigo de Hugh O’Shaughnessy, no Guardian, 7 de set. de 2013. Além de testemunha ocular, é autor de um dos melhores livros sobre o drama, Pinochet: the Politics of Torture. New York University, 2000 http://www.theguardian.com/world/2013/sep/07/chile-coup-pinochet-allende

2) Stephen Kinzer – Overthrow: America’s Century of Regime Change, from Hawai to Iraq, Times Books, New York, 2006, Ver resenha em http://dowbor.org/2006/07/overthrow-americas-century-of-regime-change-from-hawaii-to-iraq-golpe-de-estado-um-seculo-de-derrubada-de-regimes-de-hawai-ate-o-iraque-384-p.html/

3) Stephen Kinzer - Bitter Fruit: the untold story of the American coup in Guatemala, New York, David Rockefeller Center, 2005 (expanded edition)

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