Por trás de cada atentado, de cada figura heroica que tentou trazer uma vida decente, democracia e justiça social para o seu povo, os Allende, Lumumba, Cabral, Arbenz, Luther King e tantos outros, se ergue uma imensa muralha de hipocrisia, de justificativas absurdas para o eterno adiamento da democratização efetiva das nossas sociedades
Ladislau Dowbor
Ladislau Dowbor
Havia, naturalmente, a grande justificativa, o comunismo. Estava-se salvando o mundo livre. Hoje, com as análises mais objetivas do passado recente, se constata a que ponto era um espantalho que justificava tudo, e não uma realidade. A própria facilidade com que se impuseram os regimes militares em todos os países mostra a que ponto a ameaça era fictícia. Cuba, aliás, não tinha nenhum objetivo de se tornar comunista até ser tão pressionada pelos Estados Unidos, com invasão, atentados e bloqueio, que foi forçada para os braços da União Soviética como forma de sobrevivência. O que Castro tinha no horizonte político era justiça econômica e social. Goulart foi apresentado como ameaça comunista! Stephen Kinzer apresenta um excelente estudo comparativo de algumas dezenas de golpes ou invasões protagonizados durante o século XX pelos Estados Unidos, e constata que se tratava em geral de se opor não a comunistas mas a nacionalistas que queriam utilizar os seus recursos para os seus próprios povos. (nota 2)
Há alguns anos me pediram para avaliar políticas sociais na Guatemala, no quadro de uma pesquisa do Unicef. Nas minhas reuniões com movimentos sociais guatemaltecos, organizados pelo escritório local das Nações Unidas, só tinha jovens. A velha guarda, lideranças indígenas, sindicais, até feministas, tinham sido liquidadas, basicamente por milícias e esquadrões da morte financiadas pelos Estados Unidos, através entre outros da United Fruit, hoje rebatizada, a conselho das empresas de imagem corporativa, como Chiquita. Mataram 200 mil pessoas, 35 mil estão desaparecidas. O mesmo Stephen Kinzer publicou uma pesquisa detalhada sobre o envolvimento americano na Guatemala. (nota 3)
As pessoas não têm a dimensão das proporções. Acho o atentado das torres de Nova Iorque uma tragédia, sobretudo porque justifica mais tragédias. Mas temos hoje um bilhão de pessoas que passam fome, dentre elas 180 milhões de crianças, e destas entre 10 e 11 milhões morrem de fome ou de doenças conexas todo ano. As crianças mortas são o equivalente de oito atentados de Nova Iorque por dia. Se se gastasse um décimo do que se gasta com o terrorismo...
Por trás de cada atentado, de cada figura heroica que tentou trazer uma vida decente, democracia e justiça social para o seu povo, os Allende, Lumumba, Cabral, Arbenz, Luther King e tantos outros, se ergue uma imensa muralha de hipocrisia, de justificativas absurdas para o eterno adiamento da democratização efetiva das nossas sociedades.
Notas
1) Para os detalhes do golpe, ver o excelente artigo de Hugh O’Shaughnessy, no Guardian, 7 de set. de 2013. Além de testemunha ocular, é autor de um dos melhores livros sobre o drama, Pinochet: the Politics of Torture. New York University, 2000 http://www.theguardian.com/world/2013/sep/07/chile-coup-pinochet-allende
2) Stephen Kinzer – Overthrow: America’s Century of Regime Change, from Hawai to Iraq, Times Books, New York, 2006, Ver resenha em http://dowbor.org/2006/07/overthrow-americas-century-of-regime-change-from-hawaii-to-iraq-golpe-de-estado-um-seculo-de-derrubada-de-regimes-de-hawai-ate-o-iraque-384-p.html/
3) Stephen Kinzer - Bitter Fruit: the untold story of the American coup in Guatemala, New York, David Rockefeller Center, 2005 (expanded edition)
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