A China tem 2.500 canais de TV, mas a diversidade não está à altura da quantidade. O público é a vítima consentida de uma luta entre o controlo do Estado e as forças do mercado que sufocam a criatividade
Jordan Pouille
Jordan Pouille
Nenhum jornal foi notado no autocarro articulado 639, que todas as manhãs percorre o novo centro financeiro de Jianwai Soho. Isso porque os passageiros só têm olhos para seus smartphones, nos quais se desenrola o duelo verbal entre o carismático Pan Shiyi, 49 anos, e o convidado do dia. O magnata do mercado imobiliário apresenta o Amigos de Pan Shiyi, um programa de debate muito popular que vai ao ar bem cedo e depois pode ser feito download para ser visto no transporte.
Ele concorre com Chamada matinal, emissão diária de conversa on-line comandada por Gao Xiaosong, de 44 anos, compositor de cabelos compridos que foi jurado de um programa de competição musical e cumpriu seis meses de prisão por dirigir embriagado. Durante vinte minutos, e sem teleponto, esse falso diletante oferece as suas luminosas reflexões sobre os mais diferentes assuntos: jogos roubados nos campeonatos de futebol chineses, código de trânsito norte-americano, cinema europeu. Com 3 milhões de espectadores fiéis, Chamada matinal enlouquece os canais de TV tradicionais, que lutam para adquirir os direitos de transmissão do programa... em vez de inovarem eles próprios.
A televisão chinesa e os seus 400 milhões de aparelhos (um para cada três habitantes) são um templo da competição musical. Os canais das províncias de Hunan, Zhejiang, Xangai e Jiangsu orgulhosamente adaptam os reality shows musicais estrangeiros. Este ano, entre janeiro e abril, o horário nobre das sextas-feiras na Hunan TV foi do programa I am a singer. Um conceito simples: sete celebridades da China, Taiwan ou Hong Kong enfrentam-se ao microfone, retomando os grandes sucessos do repertório nacional. Cada mínimo detalhe – da bebida do júri às palavras estampadas no figurino dos artistas – foi aproveitado para uma ação publicitária sem precedentes, que rendeu 300 milhões de yuans (cera de 36 milhões de euros). Graças à transmissão via satélite que lhe garante audiência nacional, em poucos anos a Hunan TV tornou-se o canal mais visto no país, perdendo apenas para o China Central Television 1 (CCTV1).
O canal modesto do sul do país já impressionava em 2004, com o programa Super girl. A sua conceção era original: as jovens cantoras, selecionadas entre 300 mil candidatas, eram todas não profissionais, e o espectador tinha o privilégio de votar por SMS na sua voz favorita. Mas só as personalidades atrevidas e de aparência estranha conseguiam vencer – o que gerou críticas até da cúpula do Partido Comunista Chinês (PCC). Pressionada pela Administração Estatal de Rádio, Cinema e Televisão, a Hunan TV encerrou o seu programa de maior audiência. Na noite da última final, em 10 de abril de 2011, o programa teve 400 milhões de telespectadores.
“Valores perniciosos”
Este ano, I am a singer superou Chinese idol e China’s got talent, da Dragon TV (Xangai), e The voice of China, da Zhejiang TV. O canal de Hunan não pretende parar por aí. Ele acaba de lançarChina’s strongest voice e Super boy, sempre de olho na chegada de Super star China, produzido pela Hubei TV. Isso sem contar as reprises, nos horários de menor audiência, de todas as temporadas anteriores, que acabam transformando os televisores chineses em verdadeiros karaokês.
“Continuar adaptando de novo e sempre conceitos de programas estrangeiros de sucesso prova que ainda temos um longo caminho a percorrer para entender o mercado chinês”, lamenta o jornalista Yuan Zhiqiang, do diário Global Times. Até o momento, as produtoras chinesas têm se preocupado sobretudo em adaptar os programas às necessidades dos seus potenciais anunciantes, sem temer uma overdose.
Enquanto as noites são dedicadas à música, as tardes são dos jogos matrimoniais. Desde 15 de janeiro de 2010, a Jiangsu TV faz explodir a audiência com Feicheng wurao (“Infiéis, não perturbem”), um “Namoro na TV” adaptado aos costumes chineses contemporâneos. Hoje é um rapaz esguio que avança, coberto de suor, para o centro da arena. Em torno dele, 24 lolitas o afogam em perguntas sobre a sua situação, com a mão sobre um botão. Se o solteiro dececiona, as pretendentes retiram-se, apagando a lâmpada que as ilumina. Numa hora e meia, Feicheng wurao tem o poder de formar duplas improváveis: um trabalhador atarracado e uma sofisticada moça de Xangai, um laowai (estrangeiro) excêntrico e uma tibetana de traje tradicional...
Sete meses após a estreia, o programa provocou a ira dos quadros do partido e um formidável burburinho para o canal, quando uma participante proclamou: “Prefiro chorar num BMW a rir na garupa de uma bicicleta”. Noutro dia, um candidato sedutor brandiu fotos de seu carro desportivo e extratos das suas contas bancárias. Os jornais atacaram a Jiangsu TV e seus “valores perniciosos”. E as autoridades exigiram a presença de dois psicólogos no palco, para moderar os ímpetos do apresentador turbinado. O facto é que, com uma média de 60 milhões de telespectadores por programa, Feicheng wurao já deu filhotes, na Hunan TV (Women yuhui ba– “Vamos ficar juntos”) e na Zhejiang TV (Wei ai xiang qian chong– “Em busca do amor”), entre outros.
Depois da música e da comédia de costumes, o circo é o terceiro conceito em voga. O splash das celebridades chinesas, no qual estrelas mergulham numa piscina com a orientação de medalhistas olímpicos, foi um grande sucesso para a Zhejiang TV, apesar da morte por afogamento de um técnico, no dia 19 de abril. A concorrente Jiangsu TV não demorou a copiar o programa, rebatizado de Estrelas em perigo e exibido no mesmo horário. Só mudam os convidados...
Nenhuma surpresa que os funcionários desses canais sejam tão jovens quanto o seu público. O canadiano Mark Rowswell, conhecido como Dashan, é um comediante de sucesso e dono de um programa individual (stand up) na China. Realiza performances televisivas há quase vinte anos: “Recentemente estive em Changsha para um show na Hunan TV. Tenho 48 anos de idade e podia jurar que eu era a pessoa mais velha do lugar. Os produtores, diretores e roteiristas não têm mais que 30 anos e me tratam como um ícone, um velho astro do rock”.
Antenas parabólicas são proibidas em solo chinês – com exceção dos grandes hotéis, administrações centrais, sede de empresas estatais e bairros diplomáticos – desde um decreto de Li Peng, de setembro de 1993. O primeiro-ministro não gostou nadinha de uma declaração à queima-roupa de um tal Rupert Murdoch. O bilionário australiano e magnata da imprensa anglo-saxã, que acabara de conseguir participação maioritária num canal de Hong Kong à deriva pela bagatela de US$ 525 milhões, lançou: “Os novos meios de telecomunicação têm se revelado uma ameaça direta a todos os regimes totalitários do mundo. A transmissão via satélite dá aos habitantes ávidos por informação dessas sociedades fechadas a possibilidade de contornar os canais de televisão controlados pelo Estado”. Pronto, fim das parabólicas.
Nada de British Broadcasting Corporation (BBC) ou Cable News Network (CNN) para os chineses comuns, ainda que eles tenham acesso a um amplo grupo de canais regionais – cada província pode ter um canal nacional via satélite –, ou seja, uns quarenta canais gratuitos. A esses se somam os dezanove da China Central Television (CCTV), fundada em 1958. O acesso é feito por meio de um aparelho parecido com os decodificadores da televisão a cabo.
No coração do centro financeiro de Pequim, a nova sede da CCTV em forma de calças pode até ser alvo de piadas, mas em casa a TV estatal e seus quatrocentos programas continuam reinando. Em média, por dia, um telespectador chinês assiste à CCTV durante 45 minutos, das 2 horas que passa diante da TV (sem contar os downloads da internet).
Treze mil euros por segundo
Xinwen lianbo, o telejornal das 19 horas do CCTV1, exibido simultaneamente pelos canais de notícias de cada província, continua a ser o programa mais visto do país desde o seu nascimento, em 1978, com 135 milhões de espectadores “fiéis” em 2013, segundo as estatísticas oficiais. Mas costuma ser bastante criticado. Reuniões de chefes de Estado nos salões de receção do Palácio do Povo, declarações solenes de quadros do partido, exaltação dos sucessos económicos do governo: o telejornal de 34 minutos é o instrumento privilegiado da propaganda política. Corre a piada de que a única informação verdadeira que ele veicula é a frase de introdução: “Boa noite, são 19 horas. Este é oXinwen lianbo”. E mais: o jornal não é transmitido ao vivo, e sim gravado alguns minutos antes, para permitir que os censores verifiquem seu conteúdo...
Outro exemplo impressionante do irredutível controlo do partido sobre a rede de canais públicos: o CCTV7. Desde a aurora, animado pelo hino nacional, o canal dedica-se aos assuntos militares. Precedido por anúncios de diversos destilados de arroz, Military report, o boletim informativo, é apresentado por dois jovens oficiais de uniforme. O programa exibe principalmente cenas de treinamento militar e termina com imagens de animadas refeições entre os soldados.
À noite, num cenário digno de filme de ficção científica, um gigante surge no palco portando uniforme de combate, botas militares e óculos de sol. Em tom enérgico, detalha o poder de fogo dos tanques MBT-3000, a rapidez do caça invisível Chengdu J-20 ou a precisão dos drones Lijian. Em seguida, respeitáveis especialistas da Universidade da Defesa tomam a palavra e lembram as ambições militares chinesas diante das questões geopolíticas que constituem a soberania nacional sobre as ilhas Diaoyu (Senkaku, para o Japão), no Mar da China Oriental, ou o armamento de Taiwan pelos Estados Unidos. Quando ocorrem terremotos ou deslizamentos de terra, tragédias que requerem a ajuda maciça dos militares para socorrer as vítimas, o CCTV7 faz a cobertura completa ao vivo.
Por razões financeiras, a CCTV é a única rede chinesa autorizada a cobrir eventos desportivos. Portanto foi ela que transmitiu integralmente os 64 jogos do último Mundial de futebol, em 2010, conseguindo assim receitas colossais, na proporção de 13 mil euros o segundo de publicidade.
Além da festa de gala do Ano-Novo Chinês – que apresentou Peng Liyuan, cantora e esposa do atual presidente, Xi Jinping –, o outro programa verdadeiramente inter-geracional da televisão chinesa chama-se Coleções sob o céu. Passa quatro vezes por semana no canal via satélite da Beijing TV. Desde abril de 2006, chineses de todas as condições sociais sucedem-se no palco, com uma estátua de jade ou um vaso da dinastia Ming nos braços. Diante deles, quatro renomados especialistas examinam o objeto nos seus menores detalhes. Se for uma autêntica antiguidade, ele recebe o selo de “tesouro nacional”, junto com uma avaliação de valor. O candidato então volta para casa coberto de glória. Mas se o objeto revelar-se apenas uma quinquilharia, o apresentador Wang Gang toma a peça e destrói-a ali mesmo, oferecendo aos espectadores divertidos a expressão arrasada do proprietário.
Jordan Pouille é jornalista - correspondente em Pequim, China
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