sábado, 19 de outubro de 2013

A substância supérflua


“Ao desvalorizar a força viva de trabalho, a terceira revolução industrial destrói o próprio valor e coloca todo o sistema de produção de mercadorias em xeque”, diz, em entrevista, o ensaísta Robert Kurz

José Galisi Filho
Uma das características mais notáveis do ensaísmo de Robert Kurz, 63, partilhada por seus leitores marxistas ou não, é a capacidade de dramatizar, com ironia, no movimento do texto, o tecido complexo da trama contemporânea, agregando, à observação do detalhe, a fantasia de imaginar um mundo diferente com categorias experimentais.
Essa qualidade é, por assim dizer, literária, uma antiprosa, cujo saldo decorre daquilo que o dramaturgo Heiner Mueller chamou certa vez de a “pressão da experiência autêntica” no movimento do material. Nesse sentido, a reflexão de Kurz sobre a constelação pós-Guerra Fria precisa ser pensada, em seus devidos termos, dentro da particuliaridade da experiência alemã nos últimos 16 anos desde a Reunificação, nos quais seu país, relativamente civilizado e pacificado pela social-democracia depois da barbárie, transformou-se novamente num laboratório social e num pesadelo darwinista.
Ninguém menos que o poeta e editor Hans Magnus Enzensberger reconheceu prematuramente nessa imaginação sobre a fatalidade histórica da Reunificação e seu curso de desastre o convite para entrar em um território desconhecido. No outono de 1991, “O Colapso da Modernização”, de Kurz, era lançado na Andere Bibliotheke, editada por Enzensberger, dois anos antes da publicação de “Visões sobre a Guerra Civil”, livro deste poeta e ensaísta.
A sombra do argumento de Kurz projeta-se literariamente no argumento de Enzensberger sobre o excesso e o autismo de uma violência libertada das antigas amarras ideológicas nos Balcãs como metástase de uma crise que se irradia da periferia para o centro do sistema. Uma das características mais marcantes do ensaio é a homologia subjacente entre o “êxtase” dessa “subjetividade balcanizada” e o pathos niilista da crítica cultural pós-moderna.
Ao despedir-se das armadilhas morais do universalismo esclarecido, impotente pelo bombardeio de informações, Enzensberger convidava o leitor a uma ética da responsabilidade civil, além da política partidária. Se, para Kurz, o colapso do socialismo de caserna significava menos uma vitória do capitalismo sobre a antiga ditadura do SED (sigla em alemão do Partido Socialista Unificado da Alemanha, que se converteu depois no Partido Social-Democrata da Alemanha - SPD), do que o signo de uma crise da própria concepção de “trabalho abstrato” arraigada na ética protestante tanto no Leste como no Ocidente, Enzensberger sinalizava nesse processo o termo histórico da modernização.
A questão da pós-modernidade era objeto da antologia de Kurz de 1999, “O Mundo como Vontade e Design, Estilos de Vida de Esquerda e Estetização da Crise”, uma cartografia do novo yuppismo intelectual nas figuras dos críticos Nobert Bolz e Diedrich Diederichsen e do desinteresse “individualizado” de uma geração, os ex-plebeus 68 que “chegaram lá”, a política como pose de charutos e ternos Armani, no auge da bolha financeira da “new economy”. Amor virtual, internet, Love Parade, analfabetismo funcional, legiões de mães solteiras empobrecidas, colapso da masculinidade, Kurz traçava um inventário da miséria individualizada da geração “single”.
Em 2000, “O Livro Negro do Capitalismo” dava forma enciclopédica ao programa categorial da antiga revista “Krisis”. Pela primeira vez, uma obra de Kurz ganhava ressonância nacional, chegando a ser considerada pelo “Die Zeit” como o mais importante lançamento nos últimos dez anos.
Ao contrário do sociólogo Ulrich Beck, que se tornou conselheiro da ala modernizadora do SPD durante os anos da coalizão vermelho-verde, Kurz sempre manteve uma distância crítica da política partidária. Mas sua reflexão, em sentido concreto, é antes de tudo um ajuste com a “chispa desembestada” (na expressão de Roberto Schwarz) da esquerda tradicional alemã que, entre outras aberrações, se transformou em terrorismo anti-semita no início dos anos 70 e se aglutina hoje em torno da “LinkBuendnis” capitaneada por Oskar Lafontaine, na forma de uma crítica vulgar do capitalismo financeiro, emparedada pela dessolidarização do rápido desmonte da máquina social.
Na entrevista a seguir, Kurz fala sobre a atual situação da Alemanha e do capitalismo e responde à pergunta da Documenta: “A modernidade é nossa Antigüidade?”.
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Quando se fala no fim da modernização, à qual paradigma estamos ainda nos referindo?
Robert Kurz: O conceito de moderno é bastante mutável e apreendido de maneiras inteiramente distintas, dependendo do contexto no qual se argumenta. Entre os históriadores, por exemplo, existe o conceito de “pré-moderno”, datado entre os séculos 16 e 17, e o moderno compreenderia todo o processo histórico a partir dessa época. Já na filosofia, o início do moderno é frequentemente assimilado ao Esclarecimento (ou Iluminismo) do século 18, ao qual todas as teorias e ideologias posteriores até hoje se referem direta ou indiretamente. Para a maioria dos economistas e sociólogos, por sua vez, o moderno começaria com a industrialização no início do século 19, da qual se origina uma história das diversas revoluções industriais, que culminaria hoje na terceira revolução industrial da microletrônica.
No campo da arte e da cultura, o conceito de moderno se estabelece de maneira marcante na reflexão apenas no século 20, antes da Primeira Guerra Mundial, não se estendendo como “clássico moderno” além das décadas de 50 e 60, quando parece se esgotar e desembocar no assim chamado pós-moderno.
Do campo da arte e do aparelho cultural, o tema do fim do moderno e do início de um pós-moderno estendeu-se, neste entretempo, para a filosofia, as teorias da história, a sociologia e até para a economia. A “nova economia” do capitalismo-cassino-internet foi descrita como um paradigma socioeconômico pós-moderno, como uma nova era de acumulação de capital e prosperidade, cuja bolha, de maneira patética, já estourou há alguns anos.
A desorientação parece tão completa, que Juergen Habermas já proclamava, no início dos anos 80, uma “nova intransparência”. O problema consiste no fato de que, no desenvolvimento do moderno, a perspectiva da totalidade social e da história se torna cada vez mais fugidia. As ciências sociais se “diferenciaram”, as teorias referem-se cada vez mais apenas a “partes do sistema”. O conjunto se perdeu, e desse refluxo e vazio o pós-moderno fez precisamente soar sua hora no culto desta desconexão.
Na pós-história, a história mesma foi atomizada; na sociologia, os “processos de individualização” (Ulrich Beck) reabilitados; e na economia os pontos de vista “microeconômicos” realçados e o conjunto capitalista dissolvido na particularidade dos “sujeitos econômicos”.
A mesma atomização processou-se na arte, na indústria cultural e nos estilos de vida alternativos. Cada um por si e Deus contra todos. Essa tendência à atomização não é apenas pura ideologia, mas apresenta também pressupostos sociais bem objetivos, que, não obstante, não foram até agora refletidos. A sociedade parece se dissolver numa ausência de conexão real, e esse processo é pensado de maneira igualmente sem conexão com a base social real, isto é, ele é reduplicado idealmente. Nesse sentido, o pós-moderno é, por assim dizer, a realização de sua própria profecia.
Mas uma outra perspectiva se oferece quando consideramos o conjunto da sociedade e da história. O moderno constituiu um contínuo e uma conexão categorial, uma certa formação histórica da sociedade, diferenciada de suas formas agrário-religiosas tradicionais. Essencial nesse processo é a constituição do capitalismo, por um lado, isto é, do moderno sistema de produção de mercadorias, e, por outro, das relações modernas entre os gêneros, no qual o patriarcado, bem como a reprodução social, foram “objetivados”.
O “trabalho abstrato”, a forma da mercadoria, a mediação do mercado mundial e a concorrência universal tornam-se determinações centrais. Essas formas aparentemente neutras são também “estruturalmente masculinas”, isto é, espelham a supremacia masculina na política e na economia, em certo sentido, também no aparelho cultural. As mulheres estão representadas neste setor, mas são também, como afirma a socióloga Regina Becker Schmidt, “duplamente socializadas”, pois aqueles momentos não originários da reprodução social (atividades domésticas, educação dos filho, empatia, trabalho amoroso), no “trabalho abstrato”, na política e no aparelho cultural foram apartados pelo capitalismo ascendente da sociabilidade oficial e historicamente delegados às mulheres. O capitalismo, o objetivo do moderno sistema de produção de mercadorias como da “valorização do capital” e de sua esfera política, constitui, dessa forma, igualmente, um sistema de “separação de gêneros” (Roswitha Scholz).
Mas o assim entendido “moderno” não constitui nenhum contínuo estático, porém dinâmico. Por essa razão, o conceito de “moderno” vai a par com o de modernização. A modernização foi inicialmente um processo de colonização externa e interna, ou seja, um processo de consolidação das modernas categorias sociais através do colonialismo europeu, externamente, e de subversão das velhas relações agrário-religiosas e dos vínculos pessoais, internamente. Esse processo foi desigual e completou-se nas diversas partes do mundo fora da Europa e da América do Norte em ondas intermitentes sucessivas, que se estenderam pelo século 20 adentro. Por esse motivo, fala-se também em “não-simultaneidade histórica”.
Mas, em segundo lugar, o conceito de modernização designa o desenvolvimento das modernas relações a partir de “seus próprios fundamentos” (Marx), a história da Revolução Industrial, as metamorfoses emergentes da esfera política (democratização) e as novas formas de expressão e da separação entre os gêneros.
Seria, portanto, o pós-moderno uma época essencialmente distinta do moderno. Por outro lado, o discurso do pós-moderno pressupõe que a modernização teria atingido seus limites históricos. O capitalismo e sua divisão de gêneros tornaram-se, na globalização, um sistema planetário e, nessa simultaneidade, esse desenvolvimento interno pareceria ter se esgotado. Há, de fato, novas formas de individualização, a internet, a economia transnacional, mas as modernas categorias sociais tornaram-se vazias e ocas. As mudanças econômicas, sociais e técnicas não correspondem mais aos novos conteúdos e perspectivas. Isso se mostra particularmente claro na esfera sensível da arte e da cultura. Mas essa dinâmica é apenas exterior. Com Paul Virilio, poderíamos falar de uma “rasante inércia”.
Tudo isso vem a par com um “crise econômica radicalizada”, que se estende da periferia até os centros capitalistas, na imagem do desemprego e da miséria em massa, nas infra-estruturas desarticuladas, no declínio da classe média, com as pessoas cada vez mais lançadas na precariedade social, entre elas muitas existências intelectuais e artísticas. Também a crescente migração global é parte da síndrome. No conjunto, estamos diante de uma crise global de nova qualidade. O pós-moderno não é uma época além do moderno, mas sim uma época da crise fundamental do moderno, uma época de transformação crítica rumo ao desconhecido, já que não se pode ser “mais moderno”, isto é, a modernização não encontra mais espaço para avançar.
A teoria e a ciência majoritariamente não compreenderam essa nova situação e procuram ainda navegar ao sabor do vento, pois não querem reconhecer o pós-moderno como crise do moderno em suas fronteiras históricas. Em parte, o pós-moderno é apresentado como uma suposta e completa nova época de virtualidade auto-confiante e de contigências “abertas”, enquanto que a realidade social se esfacela na dureza dos pressupostos reais do capitalismo, que já não podem mais nem sequer serem preenchidos.
É dessa maneira que Ulrich Beck e Anthony Giddens falam de uma “modernização reflexiva” e de uma “nova descoberta do político”. O moderno deve tornar-se “auto-reflexivo” em relação aos seus próprios potenciais engendrados e ameaças crescentes, sobretudo em relação ao equilíbrio ecológico. Mas aqui não há nenhum modo de trabalho compatível com o moderno. A destruição capitalista dos recursos vitais prossegue irrefreada e politicamente não há nada de novo a ser descoberto, pois a política, como instrumento corretivo de regulamentação do Estado nacional, não surte mais qualquer efeito na crise globalizada.
E também no cotidiano das relações essa crise fundamental se mostra evidente. Os indivíduos atomizados não se suportam mais entre si, as relações se precarizam no amor, a divisão de gêneros se decompõe e o cotidiano e o trato pessoal são, por assim dizer, “barbarizados”. O pós-moderno como uma nova época, ou como continuação da modernização, é simplesmente um embrulho enganador.
E como se definiria nossa época em contraste com esse ciclo que se encerra e o atual estágio da acumulação capitalista?
Kurz: Se podemos descrever nosso tempo como crise do moderno, marcado por uma perda de substância, então esse problema tem um fundamento social elementar na economia do moderno sistema de produção de mercadorias. Segundo Marx, o trabalho abstrato constitui a transferência da energia humana com a finalidade de valorizar a substância do capital. Na terceira revolução industrial da microeletrônica, essa substância mesma torna-se cada vez mais supérflua.
Pela primeira vez na história do capitalismo, a racionalização da produção supera a expansão dos mercados. Na medida em que a força de trabalho humana, em pulsos sucessivos, é retirada do processo produtivo, o capital real fica para trás. Ele deixa de ser a instância de entrelaçamento do conjunto econômico e do social. A transferência da capacidade de produção para países de baixos salários, como a China ou a Índia, não é um jogo de soma zero, mas está ligado à exportação de alta tecnologia. Ela se limita nestes países apenas a uma minoria de “zonas preferenciais de exportação”.
Na globalização, não existe mais nenhum “desenvolvimento” econômico nacional, no qual a população, como um todo, possa ser integrada. Também nesse sentido a modernização acabou. O capitalismo tornou-se um capitalismo de minorias. Ele estabeleceu a conexão planetária da humanidade, mas apenas em sentido negativo, como processo de crise, que em toda parte dissolve as conexões elementares do social. A sociedade capitalista mundial constituída não pode mais integrar a maioria das pessoas.
Mas esse não é apenas um problema de miséria e desemprego em massa. A crescente fragmentação social libera, na mesma medida, nos níveis macro e micro, processos de desintegração “pós-políticos”. Em todas as partes no mundo desenvolvem-se, como continuação da concorrência por outros meios, novas relações de força. Podemos falar, por um lado, de um processo sorrateiro de desestatização. No lugar das guerras tradicionais aparecem, nessa anomia, guerras civis de um novo tipo, ligadas a uma violência particular contra mulheres e crianças. As zonas de insegurança crescem a cada dia.
Mas o capitalismo planetário sufoca não apenas em função de sua própria incerteza auto-produzida. Na mesma proporção em que a força de trabalho é desvalorizada, processa-se simultaneamente uma “dessubstancialização” do capital. O valor e sua forma de aparição como dinheiro resultam, em última instância, de uma energia humana transferida, e apenas por essa razão é que os produtos assumem sua forma de mercadoria, isto é, numa abstrata “coisicidade de valor” em oposição a sua qualidade sensível. Ao desvalorizar a força viva de trabalho, a terceira revolução industrial destrói o próprio valor e coloca todo o sistema de produção de mercadorias em xeque. A crise do “trabalho abstrato” torna-se a crise do capital ele mesmo, pois a “valorização do valor” atinge suas fronteiras históricas.

Como entender a produção cultural neste contexto? O sr. acredita que, no plano da arte, a modernidade é nossa Antigüidade?
Kurz: Acredito que, referidos à relação econômica como centro da sociedade oficial, mostra-se uma clara distinção entre moderno e pós-moderno. O moderno foi o contínuo da ascensão histórica e da consolidação do trabalho abstrato. A substância do capital tornou-se, no processo de acumulação, cada vez mais rarefeita. Ela compreende cada vez mais esferas da vida e se estende à produção cultural, que se organiza dentro da lógica capitalista da indústria cultural.
Literatura e arte refletem imanentemente esse movimento substancial, cujo nome é modernização, até os poros mais remotos e nichos do cotidiano, como mudanças das relações psíquicas, dos caracteres sociais, da sexualidade e da percepção do mundo. Nesse ponto, tanto a crítica tradicional de esquerda como aquela do antigo campo do socialismo real, bem como a conservadora em todos os seus matizes, não pouparam esforços. Mas essa crítica teve sempre a dinâmica da expansão do trabalho abstrato como seu presuposto silenciado.
Isso se mostra não apenas do ponto de vista cultural, mas também político e econômico. A “democratização” política foi idêntica com a integração das massas no capitalismo. O reconhecimento do trabalhador assalariado como sujeito de direito civil, bem como da cidadania (eleições universais, voto feminino apenas no século 20, direito à greve e à liberdade de reunião) constituem apenas reverso da medalha de sua submissão ao trabalho abstrato. E o socialismo real foi apenas um sistema alternativo, concebido a partir dos mesmos fundamento sociais e ontológicos. Como socialismo real na periferia do mercado global desde a Revolução de Outubro, ele se desenvolveu como um paradigma da modernização recuperadora, na qual o trabalho abstrato não foi superado, senão apenas tardiamente introduzido e aplicado.
Em contrapartida, o pós-moderno representa o processo de dissolução e declínio do trabalho abstrato. O fim do socialismo real pertence a esse contexto e marca o fim da modernização recuperadora. O sistema mundial unificado não pode mais atribuir uma unidade substancial, senão em pequenas zonas insulares de rentabilidade decrescente. Enquanto que a coerência nacional clássica do moderno se esfacela, a dessubstancialização do capital se irradia, agora, em direção inversa, a todos os domínios da existência como um sentimento de esvaziamento geral e crise.
A crise da substância econômica e, em consequência, a crise da política tornam-se a crise da moderna identidade masculina, que tinha seu ancoramento nessa substância, enquanto que as mulheres, em função de sua dupla socialização e fixação nos momentos apartados da reprodução real, sempre foram semi-integradas. Nessa crise, as conquistas do movimento feminista vão sendo sucessivamente -e até agora sem grande resistência- revogadas. No território desse refluxo, a identidade esvaziada masculina avança “desembestada”, exprimindo-se, em toda parte, numa violência sexista cada vez maior.
Com uma nova vestimenta, retornam os velhos demônios da modernização -racismo, anti-semitismo, etnonacionalismo-, seja nos homens ou nas mulheres. Eles representam apenas uma reação destrutiva à nova ameaça existencial para restabelecer, de maneira imaginária, o nexo social perdido sob delegação do “outro”.
O mesmo esvaziamento se observa na produção cultural. Por isso, a crise da cultura e da arte não decorre apenas de uma crise financeira e da precariazação de seus atores, mas também de seus conteúdos. O novo é apenas um remake de segunda do velho (retrô). Não apenas as séries televisivas são infinitamente repetidas. Modas e conteúdos esvaziados retornam à circulação em intervalos cada vez mais curtos. Culturalmente, a dinâmica do desenvolvimento transformou-se numa espécie de eterno retorno do mesmo.
Já que tudo se tornou indiferente, a arte não pode mais provocar. Nudez e banhos de sangue suíno nos palcos alemães provocam um grande bocejo. Sensacional mesmo, hoje, na Alemanha é quando os atores aparecem em cena vestidos. Não há mais nenhum conteúdo cultural a ser expresso na forma capitalista, justamente porque ela mesma perdeu o seu conteúdo. A fragmentação social e a desintegração como desconexão universal tornam-se uma falta de conteúdo universal ou uma desrrealização de todos os conteúdos críticos do passado, que opunham um sinal negativo a esse desenvolvimento.
O reducionismo tecnológico mostra-se também na comunicação. Quanto mais os indivíduos incrementam e são mobilizados pelo arsenal tecnológico multimídia, cada vez menos têm a dizer entre si.
As ciências sociais não estão excluídas dessas tendências. Ulrich Beck fala também de si mesmo, quando se refere a uma perda de significado e irrealidade da sociologia auto-infligidas. A irrealidade da sociologia é a mesma da arte e da cultura, e ela é justamente “culpada”, na medida mesma em que recalca essa perda de substância ao inventar conceitos vazios. Por esse motivo, a sociologia não pode mais oferecer nenhuma resposta aos problemas urgentes da crise. Ela descreve superficialmente alguns fenômenos, mas se recusa a reconhecer a correlação entre eles.
Para sairmos desta fila de espera do pós-moderno só há uma saída: se a teoria novamente referir-se “ao todo”, partindo da crise do “trabalho abstrato” e das modernas relações entre os gêneros, realizandoo uma crítica radical da ontologia capitalista, que para os críticos obsoletos do passado ainda era pressuposta de modo postivo. Talvez, com essa intenção crítica profunda, seja possível fazer da arte algo novamente provocador.

Pode-se falar ainda em luta de classes? O proletariado pode ser considerado ainda uma força de oposição ao capital?
Kurz: Desde a industrialização, o moderno foi marcado pelo antagonismo de classes entre “trabalho assalariado” e “capital”, entre “proletariado” e “burguesia”. Essa oposição parecia ser ontológica, porque o “trabalho abstrato” era entendedido como uma necessidade natural eterna e, apenas num sentido totalmente externo, como substância do capital. Na ideologia oficial burguesa, a forma capitalista era inseparável da necessidade do “trabalho” mesmo, e na ideologia socialista o “trabalho eterno” deveria supostamente libertar-se da forma capitalista.
Hoje, os pressupostos sociais comuns de ambas ideologias foram corroídos e percebeu-se, por assim dizer, que ambos os lados tinham, apenas em parte, metade da razão. A substância abstrata do trabalho é, de fato, parte inseparável da forma capitalista, mas apenas na medida em que essa forma é sucessivamente esvaziada de sua própria substância. A “ontologia do trabalho” revela-se historicamente limitada e caduca como as mercadorias universais e a forma monetária do capital.
Aqueles “exércitos do trabalho” invocados por Marx, em sua época, como base organizada da luta de classes desapareceram. Apenas aparentemente repete-se hoje a mobilização desses “exércitos” em zonas de exportação preferenciais da China e da Índia, nas quais, simultaneamente, no mercado interno e na produção agrícola, o “trabalho” é, em grande parte, desmobilizado. Do ponto de vista global, o volume absoluto do trabalho regular declina sem parar.
O capital reage a essa crise interna com a constituição de uma economia interligada como bolha financeira. Uma vez que investimentos reais e fábricas, máquinas e força de trabalho são cada vez menos rentáveis e em toda a parte revela-se uma “sobrecapacidade”, que cada vez mais têm de ser desmobilizada (com o fechamento de fábricas, por exemplo). O capital financeiro foge numa virtual (fictícia) acumulação nos mercados financeiros. Os ganhos não decorrem mais da produção ou da venda de mercadorias, mas quase que somente das elevações, sem substância, dos preços nos mercados de ações e imobiliários, da transação com títulos financeiros de conglomerados e suas partes (batalhas de aquisições hostis, por exemplo).
Assim como as ciências sociais em suas reflexões teóricas, o capital também procura, de um ponto de vista econômico prático, navegar ao sabor do vento. Também essas zonas preferenciais minoritárias de exportação na China e na Índia, geridas pelos conglomerados transnacionais, são, em realidade, dependentes da economia de bolha financeira, sobretudo do déficit externo dos Estados Unidos, e não representam nenhuma acumulação real produtiva.
O processo sociológico de individualização descrito por Ulrich Beck esteve, desde o início, ligado a essa virtualização econômica do capital. Nele, o proletariado clássico se dissolvia e a tradicional luta de classes perdia, com o “trabalho”, sua base ontológica. Quando, em 1986, Beck constatava a liberação das pessoas de seus antigos vínculos de classe, ele deixava totalmente de lado o caráter de crise desse mesmo processo econômico. Nesse entretempo, ele mesmo teve de desmentir seu otimismo inicial, mas ainda se recusa a admitir a relação interna entre individualização e caráter de crise da virtualização.

A oposição entre miséria e “riqueza abstrata” (Marx) radicalizou-se dramaticamente na forma monetária, mas ela não resulta mais da exploração da força viva de trabalho. As pessoas são justamente individualizadas e socialmente atomizadas, na medida em que o capital pode acumular cada vez menos. No interior dessa nova miséria de massa, desenvolvem-se campos de disparidade sociais, que não podem mais ser trazidos a um denominador comum de uma “classe” social uniforme.

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