Para o filósofo Jordi Maiso Blasco, é preciso questionar os motivos que levam o homem a buscar o aperfeiçoamento biológico. Seria evolução lógica para a espécie ou apenas demanda do capital?
Márcia Junges E Andriolli Costa
Márcia Junges E Andriolli Costa
Jordi Maiso Blasco é doutor em filosofia pela Universidad de Salamanca (Espanha) e fez seu pós-doutorado na Universidade Livre de Berlim e na Universidade de Hannover (Alemanha). Atualmente é pesquisador do Centro de Ciencias Humanas y Sociales, em Madri. Suas principais pesquisas envolvem estudos sobre a Teoria Crítica, a Filosofia depois de Auschwitz, formas de socialização no capitalismo avançado e desafios éticos e políticos em biologia sintética. É autor de Elementos para la reapropiación de la Teoria Critica de Theodor W. Adorno (Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2010). Jordi Maiso Blasco esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 10 de outubro, sendo um dos conferencistas do evento Biologia Sintética e Humanidades, que integra o II Seminário preparatório ao XIV Simpósio Internacional IHU: revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os principais dilemas éticos que se apresentam a partir das descobertas da biologia sintética?
Jordi Maiso Blasco – Sem dúvida, a biologia sintética levanta dilemas éticos importantes. Alguns continuam os problemas levantados pelas biotecnologias que a precedem (como a engenharia genética, as técnicas de clonagem, a reprogramação celular ou as nanotecnologias), enquanto outros são específicos e novos e têm a ver, sobretudo, com o design e a construção de sistemas biológicos de caráter intencional.
No entanto, não acredito que seja adequado propor a reflexão sobre a biologia sintética a partir de um enfoque primariamente ético. O auge das comissões de ética na pesquisa tecnocientífica responde a um déficit de legitimação do modelo de inovação tecnológica vigente, mas os problemas que estão em jogo não podem ser resolvidos a partir de um enfoque ético ou moral. Não é que se deva suprimir a ética dessas discussões, mas se nos limitamos a identificar os riscos "morais" e "ambientais" de uma inovação para contrapô-los aos benefícios que se esperam dela e ver como equilibrar os dois pratos da balança, não analisamos o que realmente está em jogo. O risco é que a ética fique reduzida, assim, a uma questão de "governança”, diante do qual suas dificuldades aparecem como mero gustibus disputandum . A questão fundamental não é se o design de uma "biologia à la carte" contradiz os princípios fundamentais da vida, ou como podem ser mantidos sob controle os riscos derivados da biologia sintética, mas sim de onde vem a necessidade dessa vida à la carte, já que é isso que marca a agenda de pesquisa. Isto é: antes de pensar na normatividade moral que deveria guiar as ações, é preciso dar conta do marco social e econômico que condiciona os avanços da biologia sintética e, a partir daí, analisar as possíveis implicações do design e da fabricação de sistemas biológicos com um caráter intencional.
Por exemplo, é contraproducente centrar a discussão nos dilemas éticos relacionados com a segurança dos organismos sintéticos ou com o seu possível impacto sobre o conceito de vida e passar por alto o papel da biologia sintética no projeto da chamada "bioeconomia", que a OCDE espera implementar até o ano 2030. Só levando em conta esse marco social e econômico é que podemos entender realmente o que está em jogo na biologia sintética e como ela transformará a nossa relação com a natureza e com o vivente. A partir dessa perspectiva, fica claro que criar "vida sintética" não só tem a ver com cientistas que "brincam de ser Deus", mas também com a possibilidade de que tudo aquilo que uma planta produz hoje seja produzido um dia por um microrganismo em um laboratório — algo que teria consequências fatais para a população mundial, cujo meio de subsistência é a agricultura. A ética que se refere trata de problemas em termos de "justiça global", mas acredito que é mais importante abordá-los a partir de uma análise da dinâmica do capitalismo globalizado.
IHU On-Line - Pensando no contexto da biologia sintética, qual é o significado da vida em nossos dias?
Jordi Maiso Blasco – Em seu propósito de superar as velhas hipóteses do vitalismo e eliminar todo resto de misticismo da nossa compreensão da vida, a biologia recente tem insistido que é possível explicar a vida a partir de processos em nível molecular — processos que são extremamente complexos, mas em princípio inteligíveis. Mas esse "desencantamento" da noção de vida também tem consequências práticas. Se sabemos como algo funciona, podemos intervir sobre ele e modificá-lo de acordo com os nossos desejos. É exatamente isso o que está acontecendo com o que Nikolas Rose chamou de "visão molecular da vida", que a compreende, sobretudo, como processamento e transmissão de informação genética. Isso amplia enormemente a margem de intervenção possível, já que hoje não só podemos ler o código genético, mas também escrevê-lo e reescrevê-lo. Sem dúvida, trata-se de uma mudança de longo alcance, que pode ter consequências positivas — por exemplo, na medida em que permite uma luta mais eficaz contra certas doenças —, mas também abre a porta para novos perigos. Enquanto a vida se converte em algo acessível e modificável, não só é possível corrigir as suas disfunções, mas também melhorá-la e otimizá-la. A pergunta é: melhoria e otimização segundo quais critérios?
Perigos
Se a biologia sintética avançar como se espera, em pouco tempo será possível redesenhar a estrutura genética de muitos organismos, inclusive para além dos limites "dados" da ordem biológica. O problema é que não podemos precisar as consequências que isso terá em médio e longo prazo. Não se trata de uma questão puramente técnica, porque a intervenção sobre a dotação genética dos seres vivos é realizada a partir de critérios culturais e sociais. Por isso, o verdadeiro perigo é que a totalidade da vida passe a ser planejada, controlada e otimizada a partir de critérios de eficiência socialmente configurados. Desse modo, a velha distinção entre a vida como resultado do devir e os artefatos como produto de design e construção intencional ameaçaria se desfazer. Até agora, o design de sistemas biológicos tem se limitado aos microrganismos, mas seria ingênuo pensar que vai parar por aí. À medida que o processo vá afetando formas de vida mais complexas, conceitos como "liberdade" ou "vida justa" não sairiam ilesos. Com Günther Anders , poderíamos dizer que a própria noção de vida ficaria obsoleta perante a perfeição dos artefatos da engenharia. E o absurdo é que a própria engenharia é produto dos seres humanos.
IHU On-Line - E como deve ser compreendida essa vida sintética em específico?
Jordi Maiso Blasco – O próprio discurso da "vida sintética" é deliberadamente impreciso: mais do que um conceito científico, trata-se de um slogan de marketing. Se olharmos mais de perto o que se entende por "vida sintética", veremos que as próprias hipóteses sobre as quais a biologia sintética se apoia — não o seu grau de desenvolvimento, mas sim suas próprias hipóteses de trabalho — apresentam algumas dificuldades. O pressuposto de partida é a possibilidade de projetar sistemas biológicos complexos da mesma forma que se projetam máquinas e artefatos técnicos. Daí a utilização de conceitos como "máquinas vivas" ou "máquinas baseadas em engenharia genética": seu marco de interpretação da vida já não é o do vitalismo, mas sim o da informática e da engenheira. Isso revela uma compreensão fortemente mecanicista da biologia, baseada na metáfora informática da "programação": o DNA seria o software que instrui o hardware do organismo vivo, a sua maquinaria celular, o modo de crescer, funcionar e se desenvolver, e, portanto, o organismo pode ser "re-programado" para que desempenhe determinadas funções. A hipótese é que, inserindo determinados circuitos biológicos programados geneticamente e controlando os genes reguladores de um organismo, seria possível transformar o seu comportamento e a sua lógica funcional de forma intencional. Não se trataria, portanto, de criar "vida sintética", mas sim de "programar" e "re-programar" a maquinaria celular através do genoma para que desempenhe determinadas funções: o que se modifica e se produz sinteticamente não é a célula nem o organismo, mas sim o genoma. Os cientistas admitem que ainda estão longe de poder projetá-lo com a precisão que exigiria uma engenharia biológica, mas a pesquisa atual aspira precisamente a sentar as bases para converter a biologia em objeto de engenharia.
No entanto, muitos biólogos afirmam que a pretensão de uma "engenharia biológica" ainda é puro wishful thinking , que os cientistas ainda estão longe de conhecer e de controlar todos os fatores em jogo, e acreditam que as investigações em curso operam com um reducionismo de corte engenheiral. Sem dúvida, o genoma oferece informações cruciais para a compreensão de um organismo, mas por si só não determina a estrutura biológica, nem a escolha, a sucessão ou a interação das proteínas, não determina exclusivamente a estrutura das membranas celulares e outros elementos, e não é o único portador de informação que pode ser herdado. Em suma, a célula não pode ser reduzida ao genoma, e a assunção de que possa ser "programada geneticamente" é problemática à luz dos desenvolvimentos recentes em epigenética e biologia evolutiva do desenvolvimento.
IHU On-Line - Qual foi o contexto da criação da vida artificial por Craig Venter e que implicações éticas se dão a partir do seu surgimento?
Jordi Maiso Blasco – O caso do experimento de Venter é sintomático, porque revela como a lógica da divulgação científica se funde com a lógica do espetáculo. Em maio de 2010, o Instituto de Craig Venter anunciou que tinha criado a primeira célula bacteriana sintética capaz de se reproduzir. A nota de imprensa que tornava público o resultado do experimento repetia várias vezes os termos "célula sintética" e "genoma sintético" e falava do campo de possíveis aplicações que se abriam com tal descoberta. Muitos assumiram que se tratava do primeiro caso de criação de vida em laboratório. No entanto, o propósito do experimento era muito mais modesto. A equipe de Venter tinha comprado mais de mil sequências de DNA e as fora unindo até alcançar uma única sequência de mais de um milhão de nucleotídeos: assim, conseguiram a síntese in vitro dos fragmentos de DNA da bactéria Mycoplasma mycoides. Em seguida, implementaram o genoma na célula bacteriana de uma espécie semelhante, o Mycoplasma capricolum, uma operação tecnicamente complicada, mas que tem pouco a ver com a produção de uma célula sintética. De fato, escolheram a Mycoplasma porque é uma bactéria que não tem parede celular, apenas uma membrana que pode ser atravessada processando a sua superfície quimicamente. Ou seja, a equipe de Venter não criou "vida artificial", porque não sintetizou nenhuma célula, apenas o genoma. Na realidade, o experimento não aspirava produzir uma célula sintética, mas sim provar que a análise e a síntese do genoma podiam chegar a ser tão exatas a ponto de permitir substituir um genoma natural por um sintético. A tentativa de vender esse experimento como um ato de "criação de vida artificial" responde à intenção de aproveitar o alarmismo moral como uma estratégia publicitária — uma técnica em que biólogos sintéticos como Craig Venter ou George Church são verdadeiros especialistas. É importante que a reflexão sobre a biologia sintética não se deixe arrastar por esse sensacionalismo: o escândalo foi uma tiragem fácil, mas obstaculiza um debate sobre o que está realmente em jogo.
IHU On-Line - Em que medida os experimentos da biologia sintética endossam uma sociedade pós-humana?
Jordi Maiso Blasco – Eu acredito que é difícil falar do ser humano como experimento de si mesmo nesse sentido. Apesar da retórica que muitas vezes alguns cientistas e empresas biotecnológicas usam, não é a espécie humana que toma as rédeas do seu destino e guia conscientemente a evolução da vida sobre este planeta. Trata-se, antes, de um processo cego que poderia custar muito caro à espécie, porque essas tecnologias permitem uma enorme margem de intervenção, mas apenas podemos prever as suas consequências em médio e longo prazo. Por isso, a própria pretensão de moldar a biologia de acordo com a nossa vontade ameaça reduzir não só o ser humano, mas também toda forma de vida a mero experimento a serviço de um desejo de onipotência. O problema é que esse desejo passa por alto a nossa vulnerabilidade como espécie — uma vulnerabilidade devida tanto aos limites e lacunas do nosso conhecimento, quanto à nossa própria dependência biológica da biosfera. Se é possível falar de um "experimento", se deveria evitar a ilusão de acreditar que os experimentadores realmente controlam o que têm nas mãos. Se chegássemos a intervir na herança genética humana, transpassaríamos um limiar de onipotência que, paradoxalmente, revelaria a impotência da espécie. Se, no futuro, decidíssemos projetar, por exemplo, seres humanos com um nível mais alto de resistência ao cansaço ou à dor, o cenário não seria tanto o de um ser humano que experimenta consigo mesmo, mas sim o de uma espécie que se submete ativamente, em sua própria configuração biológica, aos requisitos de uma lógica de eficácia e produtividade completamente alheia à vida humana: essa lógica se revelaria como um fim em si mesmo, e a vida, um puro meio a seu serviço. Aqui se reproduzem velhos modelos dualistas do predomínio do espírito sobre a matéria e a vontade sobre o corpo que têm um forte componente sacrificial. Mas a origem do problema não é científico nem técnico, e sim social.
IHU On-Line - Como podemos compreender essa “pós-humanidade”?
Jordi Maiso Blasco – O que está em jogo, nesse sentido, é a concepção do lugar que o ser humano e a ciência possuem na evolução. Alguns cientistas têm afirmado que a biologia sintética — juntamente com outras biotecnologias — permitiria pôr fim à evolução como um processo cego de seleção natural e subverter a ordem da natureza de forma intencional: segundo eles, de agora em diante, a vontade humana poderá determinar o curso da evolução. Mas, como de costume, o que no longo prazo se apresenta como um projeto de evolução pós-humana, declina-se como busca de oportunidades de negócio no nível mais imediato. As promessas da engenharia biológica em curto e médio prazo seriam a produção industrial de toda uma nova geração de biocombustíveis, energias limpas, alimentos, materiais, agentes descontaminantes e meios para a prevenção e o diagnóstico de doenças. Esses avanços são apresentados como uma solução tecnocientífica para as catástrofes pseudonaturais que ameaçam a sociedade global na forma de fome, doenças, crise energética, destruição do ambiente e mudanças climáticas: trata-se de uma tentativa de responder aos problemas causados pelo modelo social vigente sem pô-lo em questão, de uma resposta tecnológica a problemas sociais. Esse modelo não só oferece uma resposta tendenciosa e ideológica a problemas reais e urgentes, mas também abre a possibilidade concreta de uma engenharia social de corte tecnocientífico — e, além disso, em nome da "sustentabilidade".
Sob essa perspectiva, a promessa de uma sociedade pós-humana é menos animadora do que querem certos profetas do pós-humanismo. Não serão as necessidades e os desejos da maioria dos indivíduos que determinarão o rumo da evolução "pós-humana", mas sim os imperativos que regem o sistema social — que também serão ditados pelas pautas do desenvolvimento científico e tecnológico. Se esse modelo evolutivo pode se chamar, com razão, de pós-humano, é porque, provavelmente, a vida humana não desempenhará um papel significativo nele.
IHU On-Line - O que o surgimento da biologia sintética diz sobre a nossa sociedade contemporânea?
Jordi Maiso Blasco – Se tomarmos o caso da engenharia biológica — que, com toda a probabilidade, vai ser o modelo predominante na biologia sintética e, de fato, já é o que concentra mais investimentos —, o que ele revela é a passagem a uma nova fase do capitalismo. A biologia sintética se revela como uma peça-chave na implementação de uma "bioeconomia", que promete um feliz equilíbrio entre crescimento e sustentabilidade, e da qual muitos esperam um novo ciclo de acumulação econômica. De fato, o que a bioeconomia propõe é um novo modo de relação com o vivente, marcada pelos imperativos de crescimento econômico e competitividade. Seu propósito é abrir um novo campo de expansão econômica, aproveitando "o valor latente nos produtos e processos biológicos", nas palavras da CEOE . Tratar-se-ia de aproveitar o rendimento de alguns organismos que funcionam como uma espécie de sistemas de manufatura em nível molecular para refuncionalizá-los e convertê-los em "fábricas vivas"; por exemplo, reprojetar micróbios para que produzam etanol ou bioplástico a partir do milho. A biologia se transformaria assim em uma tecnologia de produção.
Objetivos da bioeconomia
Como assinalou Vincenzo Pavone , o objetivo da bioeconomia já não é uma exploração eficiente dos recursos biológicos naturais, mas sim a integração deles nos regimes de produção e de propriedade dos mercados: trata-se de projetar e reconfigurar organismos geneticamente para integrá-los no ciclo de produção e comercialização capitalista. A partir dessa perspectiva, a tentativa de converter a biologia em objeto de design e engenharia para que fabrique determinados produtos responde ao objetivo de dar lugar a uma nova "revolução industrial" de base biológica. Isso revela que os princípios e dinâmicas do processo de valorização capitalista estão se expandindo para cada vez mais setores da sociedade e da natureza. A novidade é que a lógica da mercantilização já não se apropria só desses setores, mas também os configura materialmente, lhes dá forma, controla o seu desenvolvimento e a sua evolução. Em um plano mais filosófico, poderíamos dizer que, na medida em que os imperativos sociais e econômicos se inscrevem na própria constituição material do vivo, o perigo é que não exista nenhuma instância capaz de questioná-los; que, ao reduzir a totalidade do vivente a mero artefato, a meio para um fim, toda possibilidade de transformação social fique bloqueada de antemão.
IHU On-Line - Quais são as implicações éticas em termos de propriedade e patente sobre aquelas formas de vida criadas artificialmente?
Jordi Maiso Blasco – A principal implicação é uma concentração de poder sem precedentes de poder, até dar lugar a verdadeiros oligopólios. Trata-se de uma ameaça que convém levar a sério. Se pensarmos que tudo o que hoje é produzido pelas plantas poderia ser produzido por microrganismos no laboratório, não é difícil imaginar o que aconteceria se, além disso, esses microrganismos estivessem sob o regime de propriedade intelectual: algumas poucas empresas biotecnológicas controlariam toda a produção que iria substituindo o setor agrário. O mesmo aconteceria com os produtos de química verde ou os possíveis substitutos para as energias fósseis. Sem dúvida, dentro da biologia sintética, muitos pesquisadores são partidários de que a sua atividade se desenvolva sobre uma base de open source: parte dos pesquisadores vem do mundo da informática e do mundo hacker, e o seu propósito seria aplicar essa lógica à biologia e ao design do genoma. No entanto, os imperativos econômicos que guiam e financiam a investigação não são compatíveis com esse espírito, e isso é algo que já está se fazendo notar. Por outro lado, as maiores reservas dos cientistas com relação ao sistema de patentes não se devem a motivos éticos, mas sim ao fato de que, se cada sequência de genoma que codifica uma determinada função estiver sujeita a direitos de propriedade intelectual, o desenvolvimento da pesquisa se verá dificultado: trata-se de um sistema pouco operativo. Lamentavelmente, são esses aspectos, e não as consequências da concentração de poder, que predominam nas discussões sobre patentes nas instâncias de tomada de decisão.
IHU On-Line - Em termos ontológicos, qual é o valor outorgado aos novos organismos vivos criados sinteticamente?
Jordi Maiso Blasco – Os organismos que contam com um genoma produzido ou reestruturado sinteticamente têm uma existência puramente instrumental: estariam vivos para todos os efeitos, mas foram projetados e fabricados como meros artefatos e existem como tais — na maioria dos casos, como pequenas fábricas em nível molecular. Mas esse caráter puramente instrumental não é uma propriedade exclusiva dos produtos da biologia sintética, mas sim uma consequência da mercantilização de todas as esferas da vida. A vida dos seres humanos também tem um caráter puramente instrumental para as coações sistêmicas do capitalismo global: basta ver o que acontece com a população declarada "supérflua". Por isso, responder às transformações do capitalismo com planejamentos de ética e de filosofia moral é insuficiente, já que não há nenhum um sujeito com a capacidade da agência a ponto de pôr freio a essas tendências evolutivas. Por outro lado, as pregações morais não assustam ninguém e — como vimos no caso de Venter — frequentemente são aproveitadas como uma estratégia de grandes laboratórios e empresas biotecnológicas.
IHU On-Line - Como é possível compreender ética e moralmente a responsabilidade do cientista ante os experimentos que criam e replicam a vida?
Jordi Maiso Blasco – Acima de tudo, eu acredito que os sujeitos desse desenvolvimento não são realmente os cientistas. Eles querem investigar, resolver problemas concretos e, muitas vezes, agem com as melhores intenções. É verdade que muitos deles nem sempre têm consciência das implicações do seu trabalho e nem sempre se responsabilizam pelas suas possíveis consequências. Também é verdade que o fato de que cada vez mais cientistas se convertem em empresários da biotecnologia não augura nada de bom. Mas o problema não são os cientistas, e sim as condições sociais e econômicas que estão marcando as pautas da pesquisa e da "inovação" científica: a coerção para aumentar a produtividade e manter um certo nível de produtividade. Essa é a coerção que leva a assumir todos os riscos como um "preço necessário" e abre possibilidades de fazer dinheiro com rapidez. Trata-se de uma lógica que dificilmente é compatível com a responsabilidade. Diante das promessas que se esperam da engenharia biológica, todos os riscos parecem admissíveis. Os gestores da "governança" da biologia sintética se perguntam como "gerir" esses riscos, mas não querem ouvir falar do princípio de precaução, que impõe que toda implementação de novas tecnologias e toda liberação de organismos sintéticos na biosfera devem ser precedidas pela garantia de que tal ação não vai produzir danos irreversíveis. O perigo é que, na gestão de riscos, os custos da pesquisa também sejam "externalizados", enquanto os seus eventuais benefícios ficam nas mãos de alguns poucos.
Por outro lado, os biólogos sintéticos gostam de citar uma frase de Richard Feynman : "O que eu não posso criar eu não compreendo". A pergunta que se coloca hoje deveria ser: realmente compreendemos aquilo que estamos em condições de criar? Em seu livro A obsolescência do ser humano (Obsolescence of the Human, Santa Fe: Radius, 1980), Günther Anders assinala que o desenvolvimento tecnológico estava nos levando a uma situação em que somos capazes de produzir coisas que excedem a nossa capacidade de conceber, compreender e, certamente, também assumir responsabilidade pelas suas possíveis consequências. À luz desses avanços, esse diagnóstico continua sendo inquietantemente atual. Se, além disso, levarmos em conta os enormes interesses em jogo na implementação da bioeconomia, a margem para um desenvolvimento responsável da biologia sintética parece muito escassa.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Jordi Maiso Blasco – Eu acredito que é urgente informar sobre esses temas e abrir o debate sobre a biologia sintética para além da comunidade científica e das instâncias que regulam a pesquisa. Além da atividade de algumas associações — como o grupo ETC e outros agrupamentos da sociedade civil —, até agora a opinião pública não fez muito eco das implicações dessa disciplina. No entanto, trata-se de questões que afetam a todos nós e que devem ser objeto de uma discussão pública, para além de pequenos círculos de cientistas e dos chamados comitês de especialistas.
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