terça-feira, 1 de outubro de 2013

Des(ilusões)


DEBATE ABERTO

Des(ilusões)

Quer fonte mais rica de ilusões do que o teatro, digo, jogo diplomático internacional ? Quantas vezes potências imperialistas entopem nossos olhos e ouvidos com arengas cínicas de intervenções por “razões humanitárias” ? Sim, vamos matar, trucidar e esfolar a granel, mas, não se preocupem, é por uma boa causa...
O apartheid na África do Sul terminou oficialmente em 1994. Miragem ? Um casal branco de classe média, Julian e Ena Hewitt, resolveu fazer uma experiência. Junto com seus filhos pequenos, mudaram-se para uma das muitas favelas horizontais que circundam Pretória. 

Saíram de um apartamento confortável e passaram a dividir um barraco de nove metros quadrados, sem eletricidade nem água corrente. Disseram que queriam ter uma perspectiva realista de como vivem milhões de sul-africanos, negros em sua enorme maioria, jogados numa miséria que persiste apesar dos avanços políticos. A elite branca continua controlando a economia, praticamente domina os espaços políticos e os principais meios de comunicação, possui os melhores imóveis, ocupa os melhores empregos. 

Os Hewitt passaram um mês tomando banho com baldes, compartilharam latrinas com vizinhos, usaram vans coletivas para se locomover. 

Tangenciaram, por breves trinta dias, os resultados do que é sobreviver com menos de US$ 10 por dia. Seriam turistas exóticos dentro de seu próprio país ? Humanistas solidários com a pobreza ? Idealistas que acreditam no poder multiplicador dos “bons exemplos” ? Oportunistas atrás de um potencial best-seller ? A verdade é que não há resposta única. A segregação racial ficou tão entranhada no ethos nacional sul-africano que os brancos empobrecidos criaram seus próprios bairros, separados das townships negras. Viver, mesmo que por um breve período, nas terríveis condições dos miseráveis, não dá acesso ao psiquismo da sobrevivência dessas pessoas. Menos ainda aponta saídas “amigáveis” para um problema que tem raízes na história, na política, em múltiplas desigualdades. A má consciência de setores da classe média confunde, não raro, caridade com salvação. Empurrados por um sentimento de culpa, alimentam a ilusão de que a soma de pequenos gestos resultará numa grande transformação. As andorinhas farão, juntas, um belo verão. Será ?

No século XIX, fermentados por ideais revolucionários, os populistas russos resolveram despir-se de sua origem de classe e foram para as fábricas, trabalhar e viver como operários. Teriam não apenas uma visão por dentro da exploração, mas estariam, pensavam, em posição privilegiada para doutrinar os trabalhadores e acelerar as mudanças. Não funcionou. Grupos da esquerda brasileira tomaram a mesma iniciativa durante a ditadura militar e igualmente fracassaram. Partiram de uma ilusão, o troca-troca da consciência de classe, e não chegaram a lugar algum.



Não faz muito tempo, o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore produziu um interessante documentário sobre aquecimento global e as ameaças climáticas para a vida na Terra. Uma verdade inconveniente mostra, com abundância de informações, os estragos que a ganância provoca no frágil equilíbrio ambiental do planeta. É contundente na revelação dos vilões desta história, ou seja, grandes corporações e governos lenientes, abraçados nessa marcha para a extinção anunciada. No entanto, quando sugere o que fazer, cai a máscara do liberal iludido e ilusionista. Propõe que “cada um cumpra o seu papel”, que ninguém compre lâmpadas com baixa eficiência energética ou tome banhos prolongados. Que se cultive o lixo reciclável. Palmas para ele, ora, mas nem uma palavrinha sobre os grandes poluidores e a rede legal que protege suas atividades e protela soluções radicais e duradouras ? Enfrentar os grandes interesses corporativos, como os da indústria automobilística, está fora da agenda do senhor Gore. Sem mexer neles, retrocedemos para a geração paz-e-amor, bicho. Bonita, colorida, romântica e ... ilusória.

Quer fonte mais rica de ilusões do que o teatro, digo, jogo diplomático internacional ? Quantas vezes potências imperialistas entopem nossos olhos e ouvidos com arengas cínicas de intervenções por “razões humanitárias” ? Sim, vamos matar, trucidar e esfolar a granel, mas, não se preocupem, é por uma boa causa ... Agora mesmo, o presidente Obama, que ativistas do movimento negro já começam a chamar de Bush negro, tenta convencer o mundo de que uma blitz “cirúrgica” contra a Síria seria justificável por conta de um não provado uso de armas químicas pelo governo Assad. Também mostra as garras afiadas para o Irã, que estaria em vias de produzir um arsenal atômico. 

A empáfia imperial é seletiva e desmemoriada. Nenhum aliado dos Estados Unidos está sendo pressionado a aderir aos tratados internacionais que proíbem a utilização destes armamentos e exigem supervisão internacional. Os ianques, aliás, não se comprometeram a desativar seus próprios arsenais.



Por outro lado, é bom massagear os neurônios e ativar a memória. O único país do mundo que já fez uso de bombas atômicas foram os Estados Unidos. O genocídio de 250 mil civis em Hiroshima e Nagasaki foi um dos crimes mais sórdidos da história da humanidade. Eram cidades sem qualquer importância militar e as vítimas estavam completamente indefesas. Guerra química em larga escala foi inaugurada por Tio Sam no Vietnã. Durante cerca de uma década, entre 1961 e 1971, o povo vietnamita foi castigado com bombardeios maciços de Agente Laranja, veneno altamente tóxico. Cerca de 80 milhões de litros deste produto foram despejados em áreas densamente cobertas por florestas no Vietnã do Sul. Quase 5 milhões de vietnamitas foram expostos ao veneno e três milhões sofreram as consequências diretas da agressão. Quem não morreu de imediato, sofreu graves mutilações. Os descendentes de quem sobreviveu nasceram deformados. As empresas Dow Chemical e Monsanto, produtoras do Agente Laranja, estão protegidas por um exército de advogados, que embargam qualquer tentativa de julgá-las. Os Estados Unidos jamais se desculparam pelo que fizeram. 

Não bastasse essa orgia tanática, documentos da CIA recentemente revelados indicam que os Estados Unidos não só sabiam que o iraquiano Saddam Hussein usaria o gás Sarin na guerra contra o Irã, nos anos 80, como repassaram para o então aliado dados essenciais para sua utilização. Os mesmos documentos mostram que os norte-americanos avaliaram que a repercussão internacional do caso seria praticamente nula. Deu vontade de vomitar ? Não os recrimino. Não se trata de defender o uso indiscriminado de armas atômicas ou químicas. Um mínimo de decência e seriedade, no entanto, sugeriria que as restrições não deveriam limitar-se aos inimigos circunstanciais do Império. O mundo não é uma Pasárgada, onde a vida é uma aventura inconsequente e o amigo do Rei tem todos os privilégios.

O Menino já alimentou um sonho ingênuo. Moleque, sua família tinha uma empregada. Negra, como era comum à época. Dedilhando as primeiras palavras em ídish, resolveu ensinar aquilo à Sebastiana, doce criatura. Sem muito esforço, Sebastiana aprendia frases elementares, como se fora uma ashquenazita secular. Primeiros degraus, quem sabe, para voos mais altos. Deu em nada. Sebastiana já não existe, o Menino desaprendeu, o ídish está moribundo. A lembrança enternece, mas o golpe na ingenuidade foi definitivo.

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.

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