Filme '70' conta o que viveram e como são 18 guerrilheiros urbanos libertados em troca de Giovanni Enrico Bucher
Xandra Stefanel
Xandra Stefanel
Cena de "70", destaque da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: humanização de personagens da História
São Paulo – "'Guerrilheiro, fdp, mão na cabeça!' Passaram-se uns segundos até eu realizar que eu era o guerrilheiro." "Arrombaram a porta e a gente já acordou debaixo da ponta dos fuzis." "Quando eles me levaram pro DOPS já era de noite, umas 18h30. Estavam acendendo as luzes, aquele lusco-fusco, as favelas iluminadas... A única coisa que eu pensava era o seguinte: 'P*! é a última vez que eu estou vendo estas favelas do Rio'". Imagens de arquivo e fotos de presos políticos são mostradas enquanto estas frases são ditas. É assim que começa o documentário "70", que será exibido nos dias 22, 23 e 24 de outubro na 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Dirigido por Emilia Silveira, o longa-metragem entrevista 18 militantes libertados em troca de Giovanni Enrico Bucher, sequestrado por grupos de combate à ditadura em 1970. Foram quarenta dias de cativeiro, o mais longo sequestro político da história do país. Em troca da liberdade do embaixador suíço, os sequestradores queriam − e conseguiram − a liberdade de setenta presos políticos.
Mais de quarenta anos depois, Emilia reencontra estes personagens para resgatar parte desta história. Quem são estas pessoas? O que pensam? Como conduziram suas vidas? O que restou dos ideais e dos sonhos da juventude? Quem eles eram e o que pensavam aos 20 anos? O que esperavam do futuro? Estas são algumas questões respondidas por Wilson Barbosa, Nancy Mangabeira Unger, Vera Rocha Dauster, Ismael J. de Souza, Marco Maranhão, Jaime Cardoso, Mara Curtiss Alvarenga, Affonso Alvarenga, René de Carvalho, Bruno Dauster, Elinor Brito, Chico Mendes, Jean Marc von der Weid, Reinaldo Guarany e Luiz Sanz.
Como eles mesmos se definem, estes "sobreviventes" são protagonistas de uma história não oficial. Com tantas marcas deixadas pelas torturas que sofreram, pelas perseguições e pelo exílio, suas lembranças resgatam parte de um período tenebroso da história do Brasil. São impressões e reflexões (nem sempre homogêneas) sobre táticas, ideais e ações que tiveram consequências profundas na vida de muitos jovens da época.
Por meio de imagens de arquivo, o filme também dá voz a três personagens mortos: frei Tito de Alencar, Maria Auxiliadora Lara Barcelos (Dora) e Carmela Pezzuti. "Frei Tito se pendurou num galho de árvore e se enforcou em um bosque na França. Dora se atirou debaixo das rodas de um trem em Berlim. Várias outras pessoas morreram, de alguma forma, empurradas pelo que tinham sofrido", lembra Marco Maranhão no filme.
"Na história sempre acontece alguma coisa: se você está dentro de um paiol de munição e está sozinho, tudo bem; se você está com mais 20 ou 30 pessoas, o risco se multiplica por 20; se você faz um churrasco com cerveja e cachaça, o risco talvez se multiplique por 600. E o que era a sociedade brasileira em 1969, 1970? Era um churrasco dentro de um paiol de munição com cerveja e cachaça. Alguma granada ia cair no chão e explodir aquele troço porque a ditadura era filha da mãe, os estudantes e operários eram reprimidos, militares expulsos... Então, alguém ia reagir", resume o professor de História da USP, Wilson Negão.
Um dos trunfos do filme é quando os personagens falam sobre como aqueles episódios marcaram suas vidas pessoais. A lembrança que Guarany guarda de Dora no dia em que ela se despediu dele para sempre, antes de se suicidar, são comoventes. Mas o ponto alto é o discurso emocionado do educador, jornalista e cineasta Luizão, quando lembra que sua dedicação integral à luta contra a ditadura fez com que perdesse o convívio com a família.
A dor da tortura emocional e física, a ansiedade pela liberdade, o medo, a emoção de chegar como "estrelas" no Chile de Salvador Allende, em 1971. As lembranças dos personagens conduzem o espectador a um universo íntimo que geralmente fica de fora dos livros de história.
Por mais que possa ser considerado mais um filme sobre a ditadura militar brasileira, "70" reforça que não se pode esquecer aqueles tempos de horror. Ao lembrar do amigo Tito, frei Oswaldo sentenciou: "Existe centro acadêmico Tito de Alencar, escola Tito de Alencar, creche Frei Tito de Alencar. Existe até Escola de Dança Frei Tito de Alencar. É só você entrar na internet e ver como o nome dele é lembrado. Eu estou aqui falando dele. E os torturadores? Estão jogados no lixo da história".
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