Dissertação de mestrado desenvolvida no IEL analisa obra do poeta paranaense
CARLOS ORSI
CARLOS ORSI
“O livro derrubar ‘Cinquenta Tons de Cinza’ me surpreendeu”, disse Gessner ao Jornal da Unicamp. Ele ressalva, no entanto, que sucessocomercial não é algo inédito na trajetória da poesia de Paulo Leminski. “Quando ele publicou ‘Caprichos e Relaxos’, em 1983, também teve um êxito editorial. Ele vendeu 20 mil exemplares, o que para a época era bastante. E também há muito tempo que os livros de poesia dele estão esgotados nas editoras. E se você encontra em sebo é muito caro. Então, quando teve essa edição, que traz todos os livros e num preço relativamente acessível, acho que o sucesso comercial não é tão surpreendente, embora bater ‘Cinquenta Tons’ certamente seja”.
A dissertação de Gessner debruça-se sobre um livro específico de Leminski, “Distraídos Venceremos”, de 1987, e busca abrir a obra do poeta a interpretações que vão além do consenso crítico atual, que vê em Leminski um autor de poemas irônicos, humorísticos, um escritor da sacada rápida, do insight imediato, prazeroso mas sem grande apuro ou significado. Essa posição aparece, por exemplo, num ensaio, hoje clássico, de Wilson Martins, “O Culto Delirante em Torno de Leminski”, publicado no jornal O Globo em 1998, e foi retomada em vários comentários publicados a respeito do sucesso de “Toda Poesia”.
“As críticas que tratam Leminski como um poeta menor, um criador de piadas e de frases de efeito, funcionam, mas ele não é só isso. Essa é uma leitura possível, mas há outras. Existe essa jogada do insight, daquele momento em que você tem a ideia, mas por trás dessa simplicidade se esconde a sofisticação, e é por esse caminho que procuro ver e entender a poesia dele”, disse Gessner.
Página em branco
Gessner explica que a “abolição da referência” costuma ser interpretada como a abolição da relação entre a linguagem e os objetos externos a ela – um mergulho, portanto, no uso da linguagem para falar de si mesma, de fazer poesia sobre poesia. E, de fato, dois dos principais poemas de “Distraídos Venceremos”, “Aviso aos Náufragos” e “Plena Pausa”, tratam da página em branco e de seu preenchimento; já “Iceberg” fala das aspirações do poeta para com sua obra.
A dissertação, no entanto, abre caminho para outra leitura: a da página em branco como a vida, e seu “preenchimento”, como o acúmulo de experiências que lhe dá sentido, assim como o ato de escrever cria sentido no branco da página.
“Ao longo das análises que fiz de alguns poemas que selecionei do livro, pude perceber que essa imagem da página em branco nos poemas é muito recorrente, que sempre que ele trata da página em branco, ele fala desse jogo entre a página em branco e seu preenchimento, com um texto, um poema. E nessas análises, pude perceber que esse jogo funciona como se fosse uma analogia com a atribuição de sentido para a vida”, disse Gessner. “A página em branco seria a vida que a princípio, a priori, não tem sentido algum, mas a partir do momento que a página em branco é preenchida por um poema, ela adquire um sentido, um poema ali que pode ser lido. Da mesma forma a vida, conforme a gente vai vivendo, vai acumulando experiências, vivências, vai adquirindo um sentido, também. Foi para essa direção que procurei encaminhar”.
“O que parece ser uma reflexão sobre a prática poética, do autor preenchendo o branco da página com um poema sentindo a angústia de não conseguir ser original, pode funcionar como analogia da própria condição humana”, diz o autor no texto da dissertação, que articula essa leitura com a filosofia do taoísmo.
“A principal coisa que caracteriza o pensamento taoísta é ser um caminho de libertação. E o que isso quer dizer? Um caminho de libertação do conhecimento que os taoístas chamam de conhecimento convencional, o conhecimento que é pautado pela linguagem verbal”, disse o pesquisador. “Quando a gente pensa, ou tenta pensar, sobre a realidade, o que a gente faz? A gente usa a linguagem, elaboramos esse pensamento na forma de linguagem. Então, no fundo, quando a gente elabora um pensamento, um sistema lógico, estamos lidando diretamente com a linguagem e a linguagem, sendo uma abstração, não tem nenhuma relação direta com a realidade”.
O pensamento taoísta e o zen-budista, por sua vez, buscaria um conhecimento não pautado pela linguagem verbal, mas que mantivesse uma relação direta com a realidade. Daí, argumenta Gessner, vem a ligação crucial do título do livro, “Distraídos Venceremos” com o projeto poético de “abolição da referência pela rarefação da realidade”.
Diz a dissertação: “Distraído é aquele que mantém uma percepção (ou perspectiva) não-direta em relação a realidade – pode estar voltado a si mesmo ou para além da realidade imediata; em outras palavras, mantém uma relação rarefeita em relação a realidade, daí a rarefação. Por outro lado, manter uma relação rarefeita não é excluir-se da realidade, não é romper com ela, mas implica num outro modo de relação”. Assim, além de ser um trocadilho com o slogan político “unidos venceremos”, o título também sugere que a distração seria um meio de acesso direto à realidade, contornando as abstrações da linguagem.
“O distraído, na leitura que fiz, rompe com a intermediação da linguagem. Ele rompe com esse conhecimento convencional. Ele deixa o pensamento solto, não tenta raciocinar, racionalizar. Nesse movimento, ele caminha em direção a essa libertação do conhecimento convencional”, disse o autor. “Não é que o distraído tenha uma compreensão melhor da realidade: ao desistir de compreender, ele deixa de entender para se integrar a ela plenamente”.
Gessner diz que a brincadeira com o slogan “unidos venceremos”, em pleno período de transição da ditadura militar de 1964-1985 para a democracia, não deve ser vista como um sinal de alienação política do poeta. “Tem um ensaio em que ele diz que, num poema, não falar da realidade pode ser uma forma de resistência, porque você pode utilizar a poesia sem que ela seja produto de mercado, de modo que ela não se insira no contexto mercadológico. Então, de certa forma, ele ironiza o ‘unidos venceremos’ nesse sentido”.
Ao mesmo tempo em que busca estimular uma leitura mais cuidadosa e sofisticada da obra de Leminski, o pesquisador reconhece que muito da popularidade do poeta vem das características mais superficiais de sua obra. “Tem tanta gente interessada em ler Leminski pela própria maneira como a poesia se articula: ela é sintética, em sua maioria são poemas pequenos, que primam pelo humor, numa primeira leitura é uma coisa leve que você lê, tem aquele insight, você dá risada, você se sente bem como leitor, é uma leitura prazerosa”, reconhece. “E é uma linguagem que se aproxima da maneira como o jovem se comunica, também, ainda hoje. É uma linguagem bastante coloquial, simples, não tem uma articulação muito pesada, que explore a sintaxe elaborada. A maior parte da obra poética dele prima pela simplicidade, num primeiro momento. Mas é uma simplicidade relativa, apesar de parecer simples, é uma simplicidade que esconde um labor formal bastante sofisticado”.
Gessner, que conheceu a obra de Leminski num cursinho pré-vestibular e que foi, num primeiro momento, atraído por essas características mais leves de sua poesia, pretende agora seguir adiante com o aprofundamento da leitura do poeta.
“Quero continuar no doutorado, expandir essa leitura que comecei no mestrado, agora tentando verificar, na poesia dele, a relação com o misticismo, com a religião e até com um pouco do ocultismo. Não que ele fizesse práticas ocultistas, mas o Leminski foi seminarista, depois teve uma relação muito forte com a filosofia oriental, e ele frequentava o Templo Neo-Pitagórico em Curitiba, que também tem uma doutrina mística. Ninguém até agora, em estudo crítico, abordou essa faceta na obra dele”.
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