Ao fazer oposição ao Obamacare, a direita populista-radical expõe as distorções de sua própria ideologia
Slavoj Zizek
Slavoj Zizek
Era mais uma lembrança dolorosa de como os atuais populistas-radicais de direita nos fazem recordar dos antigos populistas-radicais de esquerda (os grupos cristãos sobrevivencialistas-fundamentalistas de hoje, com sua situação de semilegalidade, não são organizados como os Panteras Negras na década de 1960?). É uma manipulação ideológica magistral: a pauta do Tea Party é fundamentalmente irracional, já que ela pretende proteger os interesses dos trabalhadores comuns ao privilegiar os "exploradores ricos", portanto contrariando os seus interesses.
Não são muitos os que sabem - e poucos ainda apreciam a ironia do fato - de que a icônica música de Frank Sinatra, My Way (Minha maneira, em tradução livre) - que supostamente sintetiza a postura individualista americana - é na verdade uma versão da canção francesa Comme d'Habitude, que significa "como sempre, como de hábito". É muito fácil enxergar isso como outro exemplo da oposição entre a esterilidade dos hábitos franceses e a inventividade americana. Mas e se essa for uma oposição falsa? E se, para que eu possa fazer as coisas do meu jeito, precisar contar que as coisas caminhem comme d'habitude? Muitas coisas precisam ser reguladas se nós quisermos desfrutar da nossa liberdade sem regulações.
Frequentemente ouvimos que a paralisia do governo dos EUA é resultado de brigas partidárias, que os políticos deveriam se colocar acima disso e encontrar solução bipartidárias para o bem da nação. Não apenas o Tea Party, mas Barack Obama também é acusado de dividir a população americana em vez de a unir. Mas se isso, precisamente, for uma qualidade positiva de Obama? Em situações de crise profunda, uma divisão autêntica é urgentemente necessária: uma divisão entre aqueles que querem se arrastar dentro dos antigos parâmetros e aqueles que estão atentos à necessidade de mudanças radicais. Este, e não o consenso oportunista, é o único caminho para a união verdadeira.
Uma das consequências bizarras da crise financeira de 2008 e das medidas tomadas para combatê-la (enormes somas de dinheiros para ajudar os bancos) foi a ressurgência da obra de Ayn Rand, o mais próximo que se pode chegar de uma ideóloga do capitalismo radical sustentado pela noção de que "a ganância é boa". As vendas de sua maior obra, o livro Quem é John Galt? (Atlas Shrugged), dispararam. De acordo com alguns relatos, já há sinais de que o cenário descrito no livro - os próprios capitalistas criativos entrando em greve - pode se concretizar por via de uma direita populista.
Entretanto, essa é uma interpretação equivocada da situação: o que está de fato acontecendo atualmente é basicamente o oposto. A maior parte do dinheiro do resgate financeiro está indo precisamente para os heróis de Ayn Rand, os banqueiros que falharam em seus projetos "criativos" e nos conduziram à hecatombe financeira. Não são os "gênios criativos" que estão agora ajudando os cidadãos comum; são os cidadãos comuns que estão ajudando os "gênios criativos" fracassados.
John Galt, o personagem central do romance de Ayn Rand, não tem seu nome exposto até praticamente o fim da narrativa. Antes de sua identidade ser revelada, a pergunta é feita repetidamente: "Quem é John Galt?". Agora nós sabemos exatamente quem ele é: John Galt é o idiota responsável pela crise financeira de 2008 e pela atual paralisia do governo americano.
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