Calais tem a fama de ser uma cidade demasiado exposta aos invasores. Mas a lenda lhe atribui méritos heroicos. No século 19, Auguste Rodin esculpiu o imponente monumento "Os Burgueses de Calais" para homenagear a memória dos seis notáveis que se entregaram aos ingleses para salvar os habitantes do sítio em 1347. A lenda cresceu em 1944, quando 3.800 soldados resistiram durante um mês ao ataque de duas divisões Panzer. Hoje, a localidade francesa mais próxima do Reino Unido --34 quilômetros de água, autopista e alta velocidade-- se transformou em uma triste e demolidora metáfora da traição da UE a seus valores fundamentais de humanismo, paz e solidariedade.
Miguel Mora
Miguel Mora
A cerca de cem metros da praia de Calais, entre as dunas de areia e os arbustos baixos açoitados pelo gélido vento noroeste, encontra-se A Selva, um acampamento ultraprecário onde vivem algumas dezenas de refugiados da guerra do Afeganistão. Perto do porto onde atracam os enormes ferry-boats que voam sobre o Canal da Mancha, uma centena de jovens sírios se protegem do frio em 13 barracas de campanha que quase não resistem de pé aos ataques da ventania. No centro, em uma casa invadida, amontoam-se 80 eritreus de pele tostada e olhar fugidio; e um grupo de 15 sudaneses sorridentes veio de miniônibus comer os sanduíches distribuídos pela ONG Socorro Católico em um local feito de placas de cimento na periferia.
Fotos de refugiados de guerras são exibidos na exposição "Campo de Refugiados no Coração da Cidade", da ONG humanitária MSF (Médicos Sem Fronteiras), na arena de eventos do parque do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo.
Ao todo, segundo as estimativas da Médicos do Mundo e da Cáritas, nesta cidade de 75 mil habitantes que até quatro anos atrás teve prefeito comunista e na qual hoje ganha espaço um candidato de extrema-direita, há neste momento cerca de 500 vítimas civis de perseguições e guerras vivendo na rua.
São quase todos homens jovens e vêm de lugares que parecem distantes, no entanto ocuparam os títulos da imprensa ocidental na última década: Alepo, Damasco, Darfur, Cabul, Kandahar, Peshawar, Tora-Bora...
"Curdos, paquistaneses, afegãos, somalis ou eritreus, todos viveram histórias parecidas e, na terça-feira, fizeram um minuto de silêncio pelas vítimas de Lampedusa", explica Cécile Bossy, uma ativista da Médicos do Mundo.
Todos chegaram até a última fronteira norte da Fortaleza Europa depois de cruzar o Mediterrâneo e a UE, seguindo as duas rotas possíveis: Egito, Turquia, Grécia, Itália, França; ou Hungria, Áustria, Itália e França. O sírio Mohamed, de 25 anos, que até alguns meses atrás cursava o quarto ano de economia na Universidade de Damasco, resume assim sua viagem: "Amã, Cairo, Siracusa, Catania, Milão, Ventimiglia, Paris e Calais. E depois, Alá dirá."
Apesar do drama que carregam e embora vivam em condições sub-humanas, esses expatriados forçosos, que vestem as roupas esportivas dadas pelas ONGs, não perdem o humor nem a hospitalidade. Recebem os visitantes em sua tenda de campanha entre risos e brincadeiras, oferecem tudo o que têm --tabaco e bolachas-- e contam suas histórias com tanta dignidade quanto lucidez.
Alguns têm estudos e falam inglês ou francês, como Jacob e Mohamed, mas também há um pedreiro de Deraa --a cidade síria onde começaram os protestos contra o regime--, um que era policial em Alepo e desertou, e vários rostos silenciosos que preferem falar com sorrisos.
Mohamed conta que perdeu seu filho de três meses em um bombardeio das tropas de Assad, e que depois foi preso por três semanas por dar uma entrevista à BBC. "Depois a família se dispersou e cada um saiu da Síria como pôde. Minha mulher e minha mãe estão na Turquia, e meu pai e meu irmão, em Londres. Esta guerra horrível nos destruiu e aqui não posso andar 30 metros sem que a polícia me persiga."
Os dentes muito brancos do afegão Zandal, 28, nascido em Cabul, contrastam com a podridão que destila A Selva. Ele diz que está há oito meses dormindo aqui e há oito anos vagando pela Europa: "Meu irmão era intérprete das forças italianas e os talebans cortaram seu pescoço. Não posso voltar. Tento cruzar para a Inglaterra de caminhão todas as noites, mas os cachorros sempre ganham. Já sabemos superar o controle do escaneamento escondendo as unhas e os dentes, mas esses malditos cães ingleses nos farejam e nunca falham. E aqui continuamos, no paraíso... a Europa nos tirou tudo e agora nos trata como criminosos."
O objetivo de quase todos os refugiados que vagam por Calais, Dunquerque e Saint Omer é conseguir asilo político no Reino Unido, explicam Bossy e seu colega Mohamed, que trabalham há um ano nesses terrenos onde a fórmula "União Europeia" soa como um sarcasmo.
"Alguns tentam obter asilo na França, mas aqui a burocracia apodreceu o sistema há dez anos e os trâmites podem durar até 18 meses", salienta Bossy. "Londres demora só dois meses para decidir, e enquanto isso lhes dá abrigo e comida", conta o ativista Mohamed. "Na França não há albergue e eles têm que dormir na rua. Sofrem uma constante violência institucional: enquanto Hollande falava em ajudar a oposição a Assad e atacar a Síria, a polícia assediava os refugiados em Calais."
"Eles vêm controlá-los às 6h e depois os incomodam para animá-los a ir embora, os tratam como cachorros", explica Isabelle, uma professora de Calais que em seus momentos livres ensina francês aos expatriados: "Não há outro remédio a não ser arriscar a vida cruzando o canal em caminhões ou andando pelos túneis, porque eles não podem entrar ilegalmente no Reino Unido, exceto se tiverem familiares lá."
Essa trama europeia tem um sobrenome muito literário: Dublim, e um nome que soa a quartel: regulamento. O regulamento Dublim 2 foi aprovado em 2003 pela UE com a ideia de ordenar e limitar as concessões de asilo político, um estatuto que vários governos tentaram confundir de forma enganosa com os termos "imigração clandestina". O regulamento estipula que os países que deixarem entrar os refugiados "de forma irregular" devem tramitar seu asilo.
"O problema é que quase todos os fugidos do Oriente Médio entram na Europa pela Itália ou pela Grécia, dois dos países menos acolhedores, e muitos refugiados preferem continuar fugindo", explica Bossy.
Depois de passar vários meses em terra de ninguém, sem poder avançar nem recuar, 60 jovens sírios subiram, na semana passada, em uma passarela do porto de Calais e começaram uma greve de fome para pedir uma solução.
"Por que não nos deixam pedir asilo no lugar onde queremos viver?", pergunta Shukan, o pedreiro de Deraa. No quarto dia de greve, Paris reagiu: prometeu tramitar seu asilo e conseguiu que os funcionários do Reino Unido se aproximassem de Calais. Dois jovens que têm família lá poderão cruzar legalmente o canal.
Os demais pararam a greve e continuam aqui, esperando para cruzar ilegalmente. "Na França, nos tratam como animais. Não confiamos", comenta Shukan. Os imigrantes chegam a conta-gotas, continuamente, mas seu futuro parece obscuro: Paris concedeu asilo político a 380 cidadãos sírios em 2012 e, segundo indicam os dados globais, rejeitou 90% dos 61.400 pedidos que recebeu.
A solução, no muro nórdico assim como no meridional, são as máfias. Mohamed, o ex-estudante de economia, conta que pagou € 3 mil pela passagem de barco do Egito à Sicília e que agora pagou "mil libras esterlinas a uns sujeitos que garantem a travessia do canal. Já tentei dez vezes, mas não tive sorte".
Outros, com menos meios, preferem atravessar a pé pelo túnel do Eurostar, o trem de alta velocidade entre Paris e Londres. As ONGs definem as mortes que ocorrem nesse lugar com um tecnicismo que talvez valha como metáfora da Europa: "Morte por aspiração".
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