quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Sobre antidepressivos, amadurecimento e identidade. Rossano Cabral Lima

Livro autobiográfico, 'A cura da infelicidade' questiona prescrição excessiva de medicamentos para tratar depressão. Segundo autora, psicofármacos impediriam distinguir experiências naturais da vida dos efeitos ‘artificiais’ gerados pela droga.

Sobre antidepressivos, amadurecimento e identidade

Os antidepressivos passaram a ter forte impacto nos modos pelos quais nos relacionamos com nossos mal-estares psicológicos
Lançados no mercado no final dos anos 1980 e popularizados a partir dos anos 1990, os antidepressivos ISRS (inibidores seletivos da recaptação da serotonina) passaram a ter forte impacto nos modos pelos quais nos relacionamos com nossos mal-estares psicológicos. Porém, um grupo sofreu tal efeito de maneira sensivelmente diferente, os adolescentes e adultos jovens, que cresceram e amadureceram sob o efeito de tais medicamentos. É esse o caso de Katherine Sharpe, mestre em literatura pela Universidade Cornell, que usou sertralina e outros ISRS dos 18 aos 28 anos.
Essa faixa etária é o foco principal do seu livro, o que fica claro no título original, Coming of age on Zoloft, cujo sentido se perdeu ao se optar por A cura da infelicidade na edição brasileira. Na busca pela identidade e pelo ‘verdadeiro eu’ que marcaria a transição para a vida adulta, como distinguir os efeitos ‘artificiais’ da medicação das experiências ‘naturais’ da vida? O que é ‘meu’? O que é proporcionado pelo remédio? E como saber quem de fato somos se tomamos antidepressivos desde os 10 ou 15 anos?
Alívio e libertação?
Sharpe aborda essas e outras questões alternando narrativas pessoais com tópicos de divulgaçãocientífica. Nos trechos biográficos/autobiográficos, a autora apresenta sua experiência com os antidepressivos, assim como a de 40 pessoas entrevistadas por ela, que também começaram a tomá-los quando jovens. Se as razões para o uso dos ISRS são distintas, igualmente diversas são as reações pessoais ao diagnóstico e à prescrição. Há frequentemente um sentimento de “alívio”, “libertação” e de “ser parte de um grupo”, mas também a experiência de se sentir “arrasado”, impotente e estigmatizado.
capa do livro A cura da infelicidade
O mais marcante em muitas histórias por ela narradas, especialmente entre os jovens que têm uma postura ‘positiva’ frente aos remédios, é o esforço de redescrição do passado a partir da concepção biomédica da depressão. Vários dos entrevistados passam a reavaliar experiências da infância ou início da adolescência em busca dos primeiros traços da ‘doença’ e do ‘desequilíbrio químico’. 
Fragilidade, nervosismo, insegurança e devaneios experimentados quando crianças passam a ser candidatos a sinais precoces do transtorno depressivo. Sharpe também sublinha a mudança de vocabulário que faz com que palavras frequentemente usadas para falar sobre o ‘incômodo comum’ (como insônia, sentimentos de insuficiência e incompreensão, tristeza, conflito e exaustão) sejam eliminadas ou automaticamente associadas a ‘problemas de saúde mental’. Aqui, a autora tangencia o tópico da ‘medicalização’, bem estudado por autores como o sociólogo norte-americano Peter Conrad (que infelizmente não é citado no livro).
Em parte dos entrevistados – e no relato da própria autora –, o uso de ISRS é associado ao fantasma da mudança de personalidade e ao receio do desaparecimento de sentimentos que, mesmo incômodos ou disfuncionais, eram parte do modo de lidar consigo e com o mundo. Sharpe mostra que esse tipo de medo não é fruto apenas da desinformação da mente leiga. 
Efeito Prozac
Em um dos capítulos ‘científicos’, ela descreve o quanto o imaginário coletivo sobre os antidepressivos nos Estados Unidos foi marcado pelo livro Ouvindo o Prozacbest-seller do psiquiatra Peter Kramer, publicado em 1993. Kramer enfatizou o quanto o Prozac, em seus pacientes, parecia não apenas melhorar os sintomas da depressão, mas também provocar sutis alterações da personalidade, fazendo com que os pacientes se sentissem “mais que bem” – o que levou o autor a cunhar a expressão “psicofarmacologia cosmética”. 
Se não se encaixa totalmente na literatura de autoajuda, a obra também não pode ser descrita como pesquisa etnográfica acadêmica, nem exclusivamente como jornalismo científico
Sharpe acerta quando comenta que o livro de Kramer – ao lado da intensa publicidade sobre psicofármacos dirigida diretamente ao consumidor, permitida pela FDA (agência norte-americana que controla drogas e alimentos) a partir de 1997 nos Estados Unidos – não apenas ‘refletiu’ o que os antidepressivos eram, mas ‘moldou’ um novo modo de se relacionar com essas substâncias.
Na introdução, Sharpe adverte que seu trabalho “não quer levantar polêmica nem é um livro de autoajuda”. Se não se encaixa totalmente na literatura de autoajuda, a obra também não pode ser descrita como pesquisa etnográfica acadêmica, nem exclusivamente como jornalismo científico. Ao resistir a categorizações e buscar ser abrangente, a autora produziu um texto acessível a leitores menos familiarizados com o tema, mas acabou deixando diversos debates a meio caminho.
Talvez o receio da polêmica a tenha impedido de explorar com mais profundidade as hipóteses de cunho socioantropológico que articulam a depressão com os imperativos de felicidade, sucesso e autenticidade nos Estados Unidos, com a insegurança gerada pela extrema liberdade e mobilidade da vida contemporânea ou com a impossibilidade de os alunos admitirem e compartilharem suas fragilidades no ambiente competitivo dos campi universitários.
Sua principal contribuição é dar voz a sua geração, mostrando que a adesão pragmática aos psicofármacos não exclui a atitude crítica e reflexiva frente aos efeitos desses medicamentos na vida de cada um e no mundo atual.
Rossano Cabral Lima
Instituto de Medicina Social,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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