"Como se defender desse perigo insidioso", ironizava em texto de 2001 o jornalista
JOSÉ GERALDO COUTO
JOSÉ GERALDO COUTO
(Texto do jornalista José Geraldo Couto publicado em 2001)
Eu sei: houve os ciclos do pau-brasil, da cana, do ouro, do café e da borracha. Depois vieram a indústria e os bancos. Mas o que o Brasil mais produziu nesses 500 anos foi gente pobre.
Milhares de índios destribalizados e sifilizados, milhões de africanos trazidos como escravos e depois largados por aí, miríades de mulatos e caboclos sem eira nem beira. Gente demais para pouca moradia, pouca escola, pouco salário. Bóias-frias, sem-terra, retirantes, favelados. Bairros horrendos surgindo em todas as periferias da noite para o dia. Um país fervilhante de pobres.
Eles estão por toda parte. Nós, que temos sapatos, diploma de alguma coisa e todos os dentes, nos sentimos acossados por esse inimigo insidioso e polimorfo, que nos ameaça no sopé do morro com suas balas perdidas, no semáforo com suas pedras e estiletes, nas ruas e nos noticiários de TV com sua expressão famélica.
Por momentos conseguimos domesticá-los, dar um sentido para sua miséria, neutralizar sua virulência. A igreja os batizou. Transformamos o samba do morro em ornamento chique das salas de estar. Transfiguramos em livros de arte as imagens mais pitorescas da sua miséria. Fizemos das suas crendices exóticas elemento de turismo. Convertemos seus ritmos selvagens em sucessos pornofonográficos. Criamos instituições caridosas e campanhas da Rede Globo.
Em outras ocasiões foi necessário recorrer ao que julgávamos ser a solução final: Canudos, Contestado, Carandiru. Mas eles são muitos e se reproduzem como ratos. Quando nos dávamos conta, já estavam nos cercando de novo, com suas velhas doenças, seus novos batuques incompreensíveis, suas armas primitivas e de última geração. Como fazê-los entender que não os queremos por perto, a não ser quando precisamos deles para algum serviço?
De que adianta nos fecharmos em casamatas, cercarmos de seguranças e ar condicionado nosso consumo-e-lazer de cada dia, se a qualquer momento pode assomar diante de nós, surgido sabe-se lá de onde, um POBRE, com suas roupas pobres, seus português pobre e sobretudo sua cara pobre que, humilde ou insolente, sempre parece estar nos colocando contra a parede, como se lhe devêssemos alguma coisa?
Estamos nos aproximando de um impasse. Há quem defenda sumariamente a pena de morte para os pobres, mantendo-se apenas um contingente básico para algum serviço de emergência, enquanto a ciência não evolui o suficiente para prescindirmos de domésticas e encanadores. Mas somos um povo muito emotivo e sentimental, o que torna praticamente inviável uma solução desse tipo.
Diante disso, ganha terreno a proposta, mais moderada, de criar zonas de acesso restrito, controladas por cercas e guaritas. A idéia é simples e engenhosa: nos bairros de classe média e elite -onde ficarão as casas de alvenaria, os prédios de apartamentos, lojas, restaurantes e cinemas- pobre só entra se tiver um passe mostrando o que vai fazer lá: faxina num banco, trabalho de eletricista numa casa, conserto num bueiro. Esses passes podem ser cartões eletrônicos à prova de fraude.
Imagine as vantagens de um sistema como esse. Mesmo que você se deparasse com um pobre na rua, saberia que ele só estaria ali para fazer um serviço. Ele estaria desarmado (teria sido revistado e submetido a um detetor de metais nas cancelas de acesso) e, de acordo com o projeto em elaboração, decentemente trajado. Outra vantagem: não seriam necessárias guaritas nas casas. Talvez nem cercas, como nos filmes americanos. Os próprios shopping centers não precisariam de tantos seguranças, câmeras escondidas etc. Enfim, um mundo limpo e civilizado, sem a paranóia de hoje em dia, e com economia de recursos.
Os autores da proposta pensaram em tudo. Para os eventuais nostálgicos daquela pobreza tão lírica e selvagem do passado, seriam organizados safáris (em princípio só de turismo, não de caça) para as regiões fora da área restrita, em carros blindados com o máximo de segurança. Mas isso já é se antecipar demais.
Como sempre, há os pessimistas, para quem esse projeto teria o inconveniente de fomentar o ódio e o desejo de insurreição entre os pobres, do lado de fora. Mas os autores da proposta pensaram nisso também. O problema seria atacado em várias frentes. Além das inúmeras seitas pacificadoras, que seriam difundidas pela TV, haveria postos de observação em locais estratégicos, prontos a informar de imediato as autoridades sobre qualquer princípio de distúrbio. Claro que, no caso de tudo falhar, o projeto prevê, num adendo, a possibilidade da solução final. Mas só como último recurso, e mediante aprovação do Congresso e sanção do Executivo. Ou seja, dentro das mais estritas regras democráticas.
Milhares de índios destribalizados e sifilizados, milhões de africanos trazidos como escravos e depois largados por aí, miríades de mulatos e caboclos sem eira nem beira. Gente demais para pouca moradia, pouca escola, pouco salário. Bóias-frias, sem-terra, retirantes, favelados. Bairros horrendos surgindo em todas as periferias da noite para o dia. Um país fervilhante de pobres.
Eles estão por toda parte. Nós, que temos sapatos, diploma de alguma coisa e todos os dentes, nos sentimos acossados por esse inimigo insidioso e polimorfo, que nos ameaça no sopé do morro com suas balas perdidas, no semáforo com suas pedras e estiletes, nas ruas e nos noticiários de TV com sua expressão famélica.
Por momentos conseguimos domesticá-los, dar um sentido para sua miséria, neutralizar sua virulência. A igreja os batizou. Transformamos o samba do morro em ornamento chique das salas de estar. Transfiguramos em livros de arte as imagens mais pitorescas da sua miséria. Fizemos das suas crendices exóticas elemento de turismo. Convertemos seus ritmos selvagens em sucessos pornofonográficos. Criamos instituições caridosas e campanhas da Rede Globo.
Em outras ocasiões foi necessário recorrer ao que julgávamos ser a solução final: Canudos, Contestado, Carandiru. Mas eles são muitos e se reproduzem como ratos. Quando nos dávamos conta, já estavam nos cercando de novo, com suas velhas doenças, seus novos batuques incompreensíveis, suas armas primitivas e de última geração. Como fazê-los entender que não os queremos por perto, a não ser quando precisamos deles para algum serviço?
De que adianta nos fecharmos em casamatas, cercarmos de seguranças e ar condicionado nosso consumo-e-lazer de cada dia, se a qualquer momento pode assomar diante de nós, surgido sabe-se lá de onde, um POBRE, com suas roupas pobres, seus português pobre e sobretudo sua cara pobre que, humilde ou insolente, sempre parece estar nos colocando contra a parede, como se lhe devêssemos alguma coisa?
Estamos nos aproximando de um impasse. Há quem defenda sumariamente a pena de morte para os pobres, mantendo-se apenas um contingente básico para algum serviço de emergência, enquanto a ciência não evolui o suficiente para prescindirmos de domésticas e encanadores. Mas somos um povo muito emotivo e sentimental, o que torna praticamente inviável uma solução desse tipo.
Diante disso, ganha terreno a proposta, mais moderada, de criar zonas de acesso restrito, controladas por cercas e guaritas. A idéia é simples e engenhosa: nos bairros de classe média e elite -onde ficarão as casas de alvenaria, os prédios de apartamentos, lojas, restaurantes e cinemas- pobre só entra se tiver um passe mostrando o que vai fazer lá: faxina num banco, trabalho de eletricista numa casa, conserto num bueiro. Esses passes podem ser cartões eletrônicos à prova de fraude.
Imagine as vantagens de um sistema como esse. Mesmo que você se deparasse com um pobre na rua, saberia que ele só estaria ali para fazer um serviço. Ele estaria desarmado (teria sido revistado e submetido a um detetor de metais nas cancelas de acesso) e, de acordo com o projeto em elaboração, decentemente trajado. Outra vantagem: não seriam necessárias guaritas nas casas. Talvez nem cercas, como nos filmes americanos. Os próprios shopping centers não precisariam de tantos seguranças, câmeras escondidas etc. Enfim, um mundo limpo e civilizado, sem a paranóia de hoje em dia, e com economia de recursos.
Os autores da proposta pensaram em tudo. Para os eventuais nostálgicos daquela pobreza tão lírica e selvagem do passado, seriam organizados safáris (em princípio só de turismo, não de caça) para as regiões fora da área restrita, em carros blindados com o máximo de segurança. Mas isso já é se antecipar demais.
Como sempre, há os pessimistas, para quem esse projeto teria o inconveniente de fomentar o ódio e o desejo de insurreição entre os pobres, do lado de fora. Mas os autores da proposta pensaram nisso também. O problema seria atacado em várias frentes. Além das inúmeras seitas pacificadoras, que seriam difundidas pela TV, haveria postos de observação em locais estratégicos, prontos a informar de imediato as autoridades sobre qualquer princípio de distúrbio. Claro que, no caso de tudo falhar, o projeto prevê, num adendo, a possibilidade da solução final. Mas só como último recurso, e mediante aprovação do Congresso e sanção do Executivo. Ou seja, dentro das mais estritas regras democráticas.
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Texto postado por:
Ricardo Alvarez
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