Subalimentação deixou de ser um fenômeno generalizado no Brasil
O cheiro de tempero alcança as ruas do bairro Campo dos Alemães, em São José dos Campos, cidade paulista do Vale do Paraíba. É lá, no bairro pobre de uma das cidades mais ricas do estado, que funciona a cozinha do Centro de Educação Paulo César dos Santos Mortari, apelidado de Crechão. São 838 crianças de zero a cinco anos, que passam 10 horas por dia na escola e recebem orientação pedagógica, terapêutica, acompanhamento médico e, principalmente, cinco refeições por dia.
“Alguns novatos comem arroz durante uma semana porque não conhecem outros alimentos em casa”, relata a orientadora geral do Crechão, Sônia Sirolli Santana. Mas, em pouco tempo, conta ela, as crianças vão se adaptando à variedade de comidas, divididas em café da manhã, frutas, almoço, lanche da tarde e jantar, de acordo com a idade e desenvolvimento de cada um. O volume de alimentos consumido diariamente é grande: 23 quilos de arroz, oito de feijão e dez de carne.
A alimentação oferecida na creche faz muita diferença na vida das crianças matriculadas. “Dificilmente eu conseguiria oferecer tanta variedade de comida em casa”, desabafa Maria da Conceição Pereira Real, 53 anos. A mulher miúda, mãe de cinco filhos e avó de 12 netos, fala com a voz baixa de quem já enfrentou muita dificuldade na vida. “Minha filha abandonou os três e eu fiquei com a guarda”. O mais novo, Lucas, seis anos, é uma das crianças que almoçam àquela hora no refeitório do Crechão. “Meus netos sempre foram muito bem alimentados e educados aqui. A Giovana, hoje com dez anos, saiu saudável, lendo e escrevendo”.
A preferência nas vagas é dada a mães que trabalham. São chefes do lar, que sustentam a família atuando no mercado informal.
O difícil para as mães é viver com tão pouco. Cerca de um terço das crianças do Crechão é beneficiária do Bolsa Família, entre elas os netos de dona Conceição. Ela recebe R$ 182 por mês e faz render o dinheiro para complementar o pouco que entra em casa. “Como economizo com comida, sobra um dinheirinho para roupa de frio”.
O comportamento de dona Conceição é o mesmo de outras mães. Numa olhada rápida no refeitório, é possível ver que todas as crianças estão bem agasalhadas na manhã fria de São José dos Campos. “Isso veio depois do Bolsa Família. Elas não passam mais fome e nem frio”, conta a orientadora Sônia. “Antes, eu cansei de ir correndo comprar meias e casacos para crianças totalmente desprotegidas”.
A fome e o frio também fizeram parte do passado da gaúcha Ângela Maria Machado, 34 anos, filha de uma família de 24 irmãos. Os pais trabalhavam como carroceiros na periferia de Porto Alegre (RS). Por vezes, faziam bicos para dar conta das despesas da casa.
Na época, para abrandar o vazio no estômago, eles mandavam os Vinícius Dexter, filho da auxiliar educacional Ângela Machado, faz cinco refeições diárias na creche que frequenta em Porto Alegre filhos para a creche da Associação Comunitária do Campo da Tuca, na zona leste de Porto Alegre (RS). Lá, havia apenas uma refeição: polenta com guisado ou salsicha. “Não tinha esse luxo que tem agora”, comenta ela, que hoje trabalha como auxiliar de educadora na instituição.
Ângela ainda é beneficiária do Bolsa Família e está consciente de que, com o aumento da renda, já não precisará do dinheiro do programa. No entanto, sabe o quanto ele foi fundamental para que a vida de seus filhos fosse diferente da sua. “O Bolsa me ajudou muito, principalmente na alimentação dos meus filhos. Eu não quero que eles passem pelo que passei”, diz ela, que buscou se qualificar profissionalmente para conseguir o emprego na creche.
A realidade dos netos de dona Conceição e dos filhos de Ângela não representa casos isolados. A fome, que atingia de maneira especialmente cruel as crianças brasileiras e respondia por parcela significativa da mortalidade infantil, deixou de ser um fenômeno generalizado no Brasil. Em pouco mais de dez anos (2002 a 2013), de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 15,6 milhões de pessoas no Brasil deixaram a condição de subalimentadas, uma queda de 82,1%. Hoje, com um índice de apenas 1,7% de brasileiros em situação de subalimentação, o Brasil saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas.
Não apenas caiu drasticamente a mortalidade infantil devido à desnutrição (58%), como a estatura dos meninos e meninas melhorou. Crianças beneficiárias do Bolsa, medidas entre 2008 e 2012, estão na média quase um centímetro maiores, num espaço de tempo de apenas quatro anos, segundo estudo do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e do Ministério da Saúde, baseado nos dados de condicionalidades do Bolsa Família. É uma vitória incontestável: o déficit de altura é um dos sinais de desnutrição crônica, que afeta o desenvolvimento intelectual das crianças.
As novas gerações sem fome serão brasileiros mais saudáveis e mais desenvolvidos, um investimento no futuro do país. Dentre as cinco regiões do Brasil, os efeitos das transferências de renda e suas condicionalidades, integradas às ações do Plano Brasil Sem Miséria em seus vários eixos de atuação, foram particularmente marcantes para as crianças das regiões Norte e Nordeste do país.
Um exemplo dessa mudança no quadro de desnutrição está no sertão paraibano, na cidade de Piancó, onde vive Gabrielle Ferreira, de três anos. A menina chegou à Creche Cenícia Maria com seis quilos. As nutricionistas indicaram dieta balanceada, com alimentos saudáveis e disponíveis na região, além da ingestão de sulfato ferroso.
A mãe de Gabrielle, Josicleide Ferreira Macedo, 33 anos, tem outros dois filhos. Além do trabalho como doméstica, recebe R$ 230 do Bolsa Família. Na creche, a filha alcançou nove quilos, peso considerado ideal.
Além de Gabrielle, outras 96 crianças frequentam a única creche de Piancó. Como várias instituições similares no restante do país, a unidade se benefi cia da ação Brasil Carinhoso, que faz suplementação de vitamina A e de sulfato ferroso e repassa recursos aos municípios por vaga aberta para crianças beneficiárias do Bolsa Família. Em Piancó, com a verba de R$ 124 mil recebida do programa, a Creche Cenícia Maria investiu em melhorias estruturais, como piso e refrigeração. A alimentação é o ponto forte da creche e consome R$ 1,7 mil por semana. O resultado é positivo: apenas seis crianças ainda não alcançaram o peso ideal.
Por todo o país, mais de 702 mil crianças beneficiárias do Bolsa Família foram matriculadas em creches nos últimos anos. Somente em 2014, os recursos destinados pelo Brasil Carinhoso para creches superaram R$ 766 milhões.
É uma geração que, diferentemente dos pais, não conhece a fome. Como Sadrak Araújo da Silva, nove anos, rosto corado e aparência saudável. Sua mãe, Keycyane, frequentava a escola para fugir da fome, em Teresina (PI). O filho vai à Escola Classe 2, na Estrutural, uma das regiões mais pobres de Brasília. Lá, Sadrak faz quatro refeições e ainda pede pra repetir.
Keycyane tem outros dois filhos, de um e cinco anos. Passou por momentos difíceis em Brasília. Grávida, procurou comida no lixão. Hoje, trabalha em uma fábrica social de bonés e recebe complemento de renda do Bolsa Família. Com o benefício, compra o que o salário não dá para pagar. “Arroz, feijão, carne, alface, tomate e beterraba”. Ela conta: “Já comprei cama, armário e até tablet para meus fi lhos”. E sorri, com a expressão de quem, como milhares de brasileiros, deixou pra trás um passado de fome e miséria.
Texto: Lis Weingärtner
Reportagem: Isadora Lionço, Luiz Cláudio Moreira e Márcio Leal
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