Ações do Brasil Sem Miséria reduziram a mortalidade infantil e melhoraram a saúde
O isolamento matou seis dos 12 filhos de dona Domingas Francisca Maia, 66 anos. Como ela, Maria da Cruz da Silva, 50 anos, só viu a metade dos 12 filhos sobreviver. Domingas é quilombola, da remota comunidade Kalunga de Vão de Almas, encravada na serra da Chapada dos Veadeiros, a 80 quilômetros do centro do município de Cavalcante (GO) e a quase 600 quilômetros da capital Goiânia. Maria, dona de casa, vive em Sobradinho, no DF, e cria sozinha seus cinco netos. Ambas não fizeram o pré-natal, não tiveram acesso à vacinação ou a qualquer tipo de atendimento médico. Seus filhos também não.
Em Vão de Almas a morte sempre foi vista com naturalidade. Sobreviver já era uma vitória. Algumas famílias perdiam dois filhos de uma vez. Domingas, que já fez mais de 30 partos, atribui a morte de seus filhos e de outros tantos na comunidade à falta de acesso à saúde. “Tive 12 filhos. Metade morreu, mas não foi por causa de fome. Não tinha vacina, não tinha nada. Mulher daqui não tomava nada”, diz. “Aqui era assim: os homens saíam a cavalo e compravam o que precisava. E as mulheres, o que tomavam? Tomavam nada. O alimento era só massa (de mandioca)”, completa. Quando a criança morria, conta Domingas, “diziam que era mal dos sete dias”.
Histórias assim estão ficando cada vez mais no passado. Muito usado no interior do Norte e Nordeste para anunciar a morte, os sinos das igrejas já não tocam sua badalada mais triste. Relatos como o de Domingas têm ficado raros. Os impactos do Bolsa Família na saúde dos brasileiros são incontestáveis, principalmente na saúde das gestantes e das crianças menores de cinco anos de idade. A mortalidade infantil por causas relacionadas à desnutrição caiu 58% e, à diarreia, 46%. O Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) acompanha a saúde de 5,1 milhões de crianças entre zero e cinco anos, pesadas e medidas a cada seis meses.
A pesquisadora e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB), Leonor Pacheco, afirma que levar uma criança aparentemente saudável a um posto de saúde para fazer o monitoramento do crescimento e desenvolvimento é uma das grandes conquistas do Bolsa Família e da condicionalidade de saúde. “As mães não tinham essa cultura. Só levavam os filhos ao posto médico em caso de doença”.
“No interior da Bahia, havia crianças cegas em função da falta de vitamina A. A desnutrição não só matava, como cegava um número desconhecido de crianças Brasil adentro”, lembra Leonor.
Com a criação do Brasil Sem Miséria, há três anos, 9,1 milhões de crianças de seis a 59 meses tivera suplementação com megadoses de vitamina A – uma das ações do Brasil Carinhoso – . Outras 402 mil receberam 1,2 milhão de frascos de sulfato ferroso nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), em 1.595 municípios brasileiros.
A quilombola Domingas lembra que, quando era jovem, o único acesso até a cidade era a pé ou no lombo de uma mula. Quando uma mulher tinha problemas no parto, era colocada em uma rede e carregada por seis homens, durante quase dois dias, até a beira da rodovia, para buscar uma carona até o hospital de Cavalcante (GO). “Hoje não tem mais isso, não. As crianças tomam vacinas”, ressalta Domingas. Uma vez por mês, a prefeitura envia um transporte gratuito para que os quilombolas possam ir até a cidade resolver suas questões pessoais e sacar o benefício social, já que quase todos recebem o Bolsa Família. Desde o início do Brasil Sem Miséria, o aumento da cobertura das equipes de Saúde da Família nos municípios prioritários beneficiou mais de 4,8 milhões de pessoas.
Maria da Cruz, beneficiária do Bolsa Família, diz que está mais saudável desde que começou a frequentar o centro de saúde de Sobradinho, no DF. A cada seis meses, cumprindo uma das condicionalidades do programa, ela e os netos vão ao posto para fazer o acompanhamento da saúde. Os seis integram um universo de 8,8 milhões de famílias que foram acompanhadas no primeiro semestre deste ano. Desse total, 5,1 milhões são crianças e cerca de 200 mil são gestantes.
Ela conta que nunca gostou de ir ao médico e só ia em caso de dor extrema. “Agora que tenho que ir com frequência, reconheço a diferença. Principalmente para os meus netos, que são pesados todo mês. Se um deles está doente, a enfermeira já avisa que precisa levar ao médico”, conta, exibindo orgulhosa a carteira de vacinação das crianças em dia. Como não conheço letra nem número, levo o cartão toda vez que eu vou e as moças do postinho é que falam quando tem que vacinar. Tem doença que a gente conhece, como gripe e febre, mas tem problemas que os médicos e as enfermeiras é que sabem”, diz.
As famílias atendidas pelo programa também gastam mais do que outras com consumo de grãos e cereais, aves e ovos, carnes, panificados, legumes, óleos e bebidas não alcoólicas, indicando que o Bolsa Família auxilia na melhora do status nutricional de crianças e adolescentes. Isso pode ser sentido na prática, segundo Leonor Pacheco.
Para uma pesquisa, ela e sua equipe acompanharam 360 mil crianças, de zero a cinco anos, a cada seis meses, durante quatro anos. Nenhuma delas desenvolveu obesidade. O que é um bom indicativo de que o contato com a unidade de saúde e o fato de já estar ganhando peso com acompanhamento está ajudando a prevenir a obesidade, destaca. “Isso é importante e para ser comemorado, visto que hoje a obesidade é uma preocupação maior do que a fome”.
Mudança de hábitos - Amamentando e acariciando as bochechas da filha de quatro meses, Josefa de França Borges, 42 anos, respira aliviada depois de uma manhã agitada no Centro de Saúde 2, em Sobradinho, onde esteve para pesagem dela e da bebê. Mãe de outros dois meninos, um de três e outro de 11 anos, Josefa conta que somente depois que começou a receber o benefício do programa Bolsa Família é que passou a ir com frequência ao centro de saúde. Ela assegura que se sente mais saudável. Parece que a gente adoece menos. A nenê cresce e está gordinha, e o Luiz está cada dia maior e alegre”, conta orgulhosa a mãe.
Redução na natalidade – Diferentemente do mito de que mulheres beneficiárias têm mais filhos, dados dos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2000 e 2010 apontam que o grupo de mulheres mais pobres apresentou queda de 30% no número médio de filhos, acima, portanto da média nacional, de 20,2% . As maiores reduções ocorreram nas regiões Nordeste (-23,4%) e Norte (-21,8), que são as localidades que mais recebem a transferência de renda.
Leonor Pacheco, que percorreu os grotões brasileiros entre 1977 e 1999, acompanhando principalmente crianças de zero a cinco anos de idade, lembra que, no final da década de 1980, a seca foi considerada um genocídio. “Famílias perdiam até três crianças”.
Segundo ela, na última seca severa no Nordeste, em 2013, as mortes atingiram apenas o gado. “Não houve aumento da mortalidade infantil e nem temos mais notícias de morte por causa da seca”.
Segundo a professora, a população em situação de insegurança viu a vida mudar não apenas por causa do benefício de transferência de renda. “É o programa de cisternas, é o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), é o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). É um conjunto de políticas e programas implantados ao longo de pouco mais de uma década e por um período ininterrupto”.
Texto: Cíntia Nunes
Reportagem: Cristiane Hidaka e Sirlene Rodrigues
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