sexta-feira, 24 de maio de 2013

A desigualdade como condição artificial do homem

300 anos após seu nascimento, Rousseau continua atual em suas reflexões, sobretudo quanto à democracia e à representação, observa Maria Constança Pissarra. Para o filósofo francês, a desigualdade não é natural, mas uma invenção humana, fruto da história

Márcia Junges


“Isolado, ignorante, mudo e imóvel, o homem natural ocupa o lugar que a natureza lhe assinalou limitado por suas sensações. Será preciso romper com o isolamento, desenvolver-se a comunicação, e só então o conhecimento será possível. Por natureza, o homem não possui nem razão, nem reflexão, tampouco pensamento ou linguagem”, pontua a filósofa Maria Constança Pissarra na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Fazendo a crítica da desigualdade como algo criado pela humanidade, e não de caráter originário, Rousseau “rompe com o movimento moderno defensor do progresso, ou seja, ele se opõe à confiança das Luzes no desenvolvimento da racionalidade moderna. Embora também os chamados filósofos iluministas não formassem um grupo coeso, a crença no poder emancipador da razão humana era presente em todos eles”. E completa: “para ele, a desigualdade não é natural, ela é uma invenção humana fruto da própria história”. O pensador francês nos obriga a repensar o homem como indivíduo e se social. “Hoje, a democracia é para nós, no século XXI, o grande modelo político. No entanto, ela enfrenta contradições profundas e é aí que a contribuição de Rousseau se impõe”.
IHU On-Line – Como se apresentam e se relacionam história e ética em Rousseau?
Maria Constança Pissarra – Diferentemente de seus contemporâneos, Rousseau não pensou a história como progresso contínuo da natureza humana. Para ele, a desigualdade não é natural; ela é uma invenção humana fruto da própria história. Uma vez que não há uma via ascendente do progresso, ao contrário, quanto mais se expande a racionalidade, mais o homem se distancia de seu estado de natureza originário e caminha para a corrupção. Daí sua concepção de história ser chamada de negativa. Entre a rusticidade do estado de natureza e a polidez do estado de sociedade civilizado, a desigualdade se tornou a condição artificial do homem, como mostra o Discurso sobre a origem da desigualdade de 1755. Nele, lê-se a seguinte definição do estado de natureza: “um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e sobre o qual se tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente”.  E se para reconstruir esse estado Rousseau recusa o recurso à história, recorre, então, à sua construção teórica como a negação do homem civil, ao afirmar que o homem natural errava “pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicilio, sem guerra e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus semelhantes. Bem como sem qualquer desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do que a vaidade. Se por acaso descobria qualquer coisa, era tanto mais incapaz de comunicá-la quanto nem mesmo reconhecia os próprios filhos. A arte perecia com o inventor. Então não havia nem educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre criança”.  
Condições rudes de existência
Rousseau compara os dois estados não para fazer do estado de natureza uma condição inferior ao estado civil, mas para decompô-lo, para evidenciar o que é resultado do processo histórico de sociabilidade e, portanto, artificial e não originário. No estado de natureza o homem estava por sua conta, confrontava-se com os animais, dependia apenas de sua força para enfrentar as vicissitudes da fortuna, bem como a enfermidades naturais. As condições rudes de sua vida, tal qual a nudez e a falta de habitação, não eram um mal; o homem natural lutava apenas pela sua sobrevivência: “Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre”. Enquanto o animal permanecia sempre igual a si mesmo determinado por seu instinto, o homem pode mudar, pode aperfeiçoar-se “por um ato de liberdade, razão porque o animal não pode desviar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, frequentemente se afasta dela”. 
Afirmar que o homem é livre não, isso significa fazê-lo de uma perspectiva racionalista. Rousseau não afirma que o homem é abstratamente livre, dotado de um livre arbítrio absoluto. De forma oposta, apela a certa falta de instinto tão apurado quanto o dos animais, uma vez que “todo animal tem ideias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas ideias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. Alguns filósofos chegaram mesmo a afirmar que existe maior diferença entre um homem e outro do que um certo homem e certa besta. Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção especifica daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentido desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica”.
Instinto de sobrevivência
Exatamente porque não é prisioneiro de seu instinto, o homem pode mudar, pode modificar sua vida, e o animal não, posto que há “uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; (...) Por que só o homem é suscetível de tornar-se imbecil? Não será porque volta, assim, ao seu estado primitivo e – enquanto a besta, que nada adquiriu e também nada tem de bom a perder, fica sempre com seu instinto – o homem, tornando a perder, pela velhice ou por outros acidentes, tudo o que sua perfectibilidade lhe fizer adquirir, volta a cair, desse modo, mais baixo do que a própria besta?” 
Isolado, ignorante, mudo e imóvel, o homem natural ocupa o lugar que a natureza lhe assinalou limitado por suas sensações. Será preciso romper com o isolamento, desenvolver-se a comunicação, e só então o conhecimento será possível. Por natureza, o homem não possui nem razão, nem reflexão, tampouco pensamento ou linguagem. Também de forma oposta a seus contemporâneos, sem a língua, sua estrutura gramatical e seus conceitos não era possível ao homem natural pensar. O homem natural começará, portanto, “por suas funções puramente animais. Perceber e sentir serão seu primeiro estado, que terá em comum com todos os outros animais: querer e não querer, desejar e temer serão as primeiras e quase únicas operações de sua alma, até que novas circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos” .
Assim, o entendimento humano deve muito às paixões e estas às nossas necessidades e seu progresso aos nossos conhecimentos. Nesse estado originário não podia haver, portanto, “qualquer espécie de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem maus ou possuir vícios e virtudes”.  O homem natural não pode ser mau porque ele não sabe o que é ser moralmente bom, apenas luta por sua sobrevivência como todos os outros animais, valendo-se tão somente de seu instinto de sobrevivência, sem qualquer juízo valorativo de seus atos.
A distinção entre as diferenças naturais de força, de tamanho, de gênero, entre outras de um lado, e as desigualdade sociais de riqueza, de consideração, de poder, de outro, resultantes da história, deixa claro que a desigualdade não é natural, que ela é consequência da existência social dos homens.
IHU On-Line – Qual é a importância do pensamento desse filósofo em relação aos outros iluministas?
Maria Constança Pissarra – Embora seja difícil classificá-lo, Rousseau também foi um homem de seu tempo. Mas isso não significa afirmar que havia entre eles certa homogeneidade. Pelo contrário. A diferença entre ele e seus contemporâneos já está apontada na questão anterior: ao fazer a crítica da desigualdade, ele rompe com o movimento moderno defensor do progresso, ou seja, ele se opõe à confiança das Luzes no desenvolvimento da racionalidade moderna. Embora também os chamados filósofos iluministas não formassem um grupo coeso, a crença no poder emancipador da razão humana era presente em todos eles. Para o século XVIII, o longo período medieval equivalia às trevas da escuridão e estas só poderiam ser superadas pela força emancipadora da razão humana. Para eles, o medievo era sinônimo da ignorância e da superstição que limitara não só o desenvolvimento espiritual do homem, mas também sua condição social, econômica e cultural. Só as “luzes” combateriam as “trevas” levando os homens ao esclarecimento decorrente da ciência e, consequentemente, a uma vida mais feliz. Quanto mais a humanidade se desenvolvesse por meio da investigação científica, mais ela alcançaria um alto grau de progresso material e moral. 
Para muitos autores, ao opor-se a essa visão positiva da história da humanidade, Rousseau defenderia uma concepção negativa da história humana, ao propor uma volta ao estado de natureza onde havia uma bondade natural. Ora, o que Rousseau propõe não é uma volta no tempo para um momento idílico que precisa ser recuperado, mas um questionamento do processo civilizatório, pois “o homem nasce livre e por toda parte se encontra sob grilhões”. 
IHU On-Line – Quais são as maiores contribuições de Rousseau para a filosofia política? Em que consiste sua principal atualidade?
Maria Constança Pissarra – Rousseau nos obriga a repensar o homem, seja como indivíduo, seja como ser social. A democracia é para nós, no século XXI, o grande modelo político. No entanto, ela enfrenta contradições profundas e é aí que a contribuição de Rousseau se impõe. Nós continuamos a nos colocar as questões que ele se fez, tais como: qual o melhor modelo de sociedade? A natureza nos fez bons ou maus? A democracia é o melhor regime? O pensamento político de Rousseau, morto há 300 anos, mantém uma atualidade surpreendente, sobretudo no que diz respeito à democracia e à representação, hoje, tão longe da reconciliação entre o cidadão e a sociedade civil. A leitura de seus textos se faz necessária – não para aceitá-lo e repeti-lo – mas para alimentar nossa reflexão de cidadãos que ainda se confrontam com as contradições da igualdade, nem sempre condição fundamental da liberdade.
IHU On-Line – Como podemos compreender a noção de soberania desse pensador?
Maria Constança Pissarra – Para Rousseau a soberania é inalienável; ela não se representa, ou seja, quando se passa a alguém o direito de pensar por si mesmo, deixa-se de ser homem, afirma o pensador. Assim, apenas o corpo político resultante do pacto social que liga os homens, que antes estavam isolados no estado de natureza, pode ser chamado de soberano. Portanto, o soberano não é um homem, como para Hobbes, mas é a própria sociedade enquanto detentora da força comum resultante da força de cada um que dela participa, pois “cada um põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e enquanto corpo, recebe-se cada membro como parte indivisível do todo”.  Esse corpo político que une os homens, antes isolados e independentes, se chama Estado quando passivo e Soberano quando ativo. Desse modo, soberania e soberano são os atributos do homem em sociedade após o estabelecimento dela pelo pacto social, que lhe permite agir como cidadão, ou seja, só o povo é soberano quando considerado coletivamente. No primeiro capítulo do segundo livro do Contrato social, Rousseau afirma que “nada mais sendo a soberania que o exercício da vontade geral, não pode alienar-se, e que o soberano, que é apenas um ser coletivo, só pode ser representado por ele mesmo: o poder pode muito bem ser transmitido, mas não a vontade”. Pela mesma razão ela é indivisível, “uma vez que a vontade ou é geral, ou não, ou é aquela do corpo do povo ou somente a de uma parte” .
IHU On-Line – A partir de suas ideias, em que medida a política é um exercício pedagógico?
Maria Constança Pissarra – Se, para Rousseau, a representação é sinônimo de escravidão e não de soberania, pois põe em risco qualquer possibilidade de superação da desigualdade, é preciso outra forma de integrar os homens em uma sociedade política. Trata-se da participação como a única possibilidade de emergência da vontade geral, a única a visar o bem em oposição à vontade da maioria, sempre subordinada à força dominante e não à força da sociedade como um todo. Essa contínua participação por parte do corpo político exige um exercício constante, um processo de aprendizado e uma vigilância para evitar que alguma ação do governo venha a privilegiar o interesse particular, levando o corpo político à morte.
IHU On-Line – Quais foram os maiores desafios e descobertas que se apresentaram na tradução crítica das Cartas escritas da montanha?
Maria Constança Pissarra – A tradução das Cartas escritas da montanha foi desafiadora em primeiro lugar, pelo tamanho do texto, e em segundo, por ser a primeira tradução em língua portuguesa. Ao mesmo tempo, foi um estudo cuidadoso e um trabalho muito gratificante. Durante três anos e meio, nos reunimos em minha casa, em vez por semana, a professora Maria das Graças de Souza , um orientando dela, dois orientandos meus e eu. Isso possibilitou que o trabalho de tradução fosse igualmente um seminário extremamente proveitoso. Do ponto de vista do conteúdo, a principal dificuldade foi a compreensão dos conceitos relativos à sociedade e à política genebrina bem como de suas instituições, bem anteriores na sua origem ao século XVIII. A maneira de contornar essa dificuldade foi uma pesquisa por mim realizada na Universidade de Genebra e que resultou no texto de apresentação da tradução da obra.
Maria Constança Pissarra é graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo e em Língua Francesa pela Universidade de Nancy, na França. Cursou mestrado em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP com a tese História e ética no pensamento de Jean-Jacques Rousseau. É pós-doutora pela Universidade de Genebra e leciona na PUC-SP, no programa de pós-graduação em Filosofia. É uma das integrantes do grupo que realizou a tradução crítica de Cartas Escritas da Montanha (São Paulo: Educ e Unesp, 2006). De sua produção bibliográfica, destacamos Rousseau: a política como exercício pedagógico (São Paulo: Editora Moderna, 2002).

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