É um caos improvável. As filas de espera se estendem em todas as direções. Caminhões, tratores, carros, vans, motos poeirentas, riquixás motorizados... São mais de cem deles esperando diante das bombas de gasolina de um posto situado na estrada de Alexandria, a uma centena de quilômetros do Cairo, no Egito.
Florence Beaug
Florence Beaug
Manifestante egípcio exibe bandeira do país durante protestos em que ônibus da Irmandade Muçulmana, que governa o país, foram incendiados, no bairro de Moqattam, no Cairo
Tem até mesmo um camponês, que veio com seu asno. O homem amarrou quatro galões vazios no dorso do animal. "Preciso de diesel para meu trator", resmunga ele. Sentado em uma velha mobilete, seu vizinho diz com um ar descontente: "Muitos postos alegam que não têm mais gasolina, para revendê-la depois quatro ou cinco vezes mais caro". De repente, um grito parte da fila: "Desde o dia em que Mursi chegou ao poder, o Egito tem sido acometido por catástrofes".
Essa cena tem sido comum no Egito, ultimamente. Dois anos após a revolução, a economia está exaurida. Nos cofres do Estado, restam menos de US$ 13 bilhões (cerca de R$26 bilhões), ou seja, pouco mais que três meses de importações. Não entram divisas. O turismo está estagnado (exceto pelo Mar Vermelho, mas a preços muito baixos). As receitas do Canal de Suez estão em nítida diminuição. As exportações de petróleo bruto são muito inferiores às importações de petróleo refinado. Já os investidores estrangeiros fugiram, preocupados com as repetidas greves, manifestações cada vez mais numerosas e o clima de instabilidade política.
De uma ponta à outra do país, a falta de diesel e de óleo combustível é patente. Em toda parte, as pessoas se queixam de cortes de eletricidade. Pode ser que o trigo - do qual o Egito é o maior importador mundial - falte em breve. Atormentados pelo temor, a população corre para fazer estoques, agravando a falta de itens e o mercado negro. Gasolina, gás, dólares, euros... tudo se troca por baixo dos panos a preços astronômicos.
Manifestante segura pano em chamas durante protesto no centro do Cairo, capital do Egito. Membros da Irmandade Muçulmana e opositores do governo do presidente egípcio Mohammed Mursi entraram em confronto com a polícia local nesta sexta-feira (19). 82 pessoas ficaram feridas no protesto, que pediu reforma judicial no país
Esperança de um empréstimo
Uma esperança para as autoridades egípcias: o empréstimo de US$ 4,8 milhões que o FMI (Fundo Monetário Internacional) deverá conceder nas próximas semanas, em troca de uma redução dos subsídios públicos para o combustível e os produtos alimentícios, muito custosos para o Estado (um terço do orçamento).
Enquanto isso são os "países irmãos" que estão dando ao Egito alguns respiros. Um dia é o Qatar que concede US$ 3 bilhões em forma de títulos. Outro, é a Líbia que empresta US$ 2 bilhões, ou a Turquia que promete US$ 2 bilhões. A Rússia, solicitada pelo presidente Mohamed Mursi durante uma viagem recente a Moscou, poderia emprestar o mesmo tanto. Mas a maior parte dessas somas logo se evapora no mercado interbancário e serve, sobretudo, para apurar o passado, enquanto especialistas e a oposição se preocupam.
Waël Gamal, economista e editorialista do "Al-Shurouq", fez seus cálculos: "Entre a ajuda dos países árabes, a do FMI e a da União Europeia, que ainda está por vir, daqui a pouco nos veremos com uma dívida externa de US$ 64 bilhões! Em um ano, teremos dobrado o montante, é um desastre!", ele avisa. Paralisado por considerações políticas e pelo medo da revolta popular, o governo "não tomou uma única medida para tratar os problemas essenciais", ele acredita.
Todos os observadores convergem em um ponto: a Irmandade Muçulmana tem se revelado uma gestora sofrível, sem estratégias. "Acreditávamos que ela tinha em reserva excelentes administradores, mas nos enganamos. Ser um bom comerciante ou um empresário brilhante não torna ninguém apto a gerir um país", ressalta um diplomata europeu.
Ashraf Badr el-Din, economista do Partido da Liberdade e da Justiça (braço político da Irmandade Muçulmana), se mostra no mínimo contraditório. De um lado, ele admite que o déficit orçamentário "deve ser reduzido". De outro, ele comemora o fato de que os salários dos funcionários públicos --um quarto da população ativa-- tenham aumentado 80% desde a revolução.
No vilarejo de El-Kom Al-Akhdar, os camponeses não escondem sua raiva. É tempo de colheita para essa cidade de 14 mil habitantes situada no delta do Nilo. "Tudo aumentou, o aluguel dos tratores, o preço do óleo combustível para tirar água dos poços, os adubos que preciso encontrar no mercado negro, ração para os animais! Não é mais lucrativo vender nosso trigo", exclama Lutfi, irritado. "Tudo tem ficado mais caro, a cada dia: carne, eletricidade, água. O botijão de gás mais do que dobrou", se queixa uma jovem mãe de família, com seu filho mais novo nos braços.
Simpatizantes do presidente egípcio, Mohamed Morsi, demonstram apoio ao novo governante. O Tribunal Constitucional do Egito determinou a suspensão do decreto emitido por Mursi, que restabelece a Assembleia do Povo (câmara baixa do Parlamento). O ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, admitiu que há uma preocupação quanto ao Egito, que passa por um período de instabilidade
Irritação no grande bazar
Um senhor se aproxima, puxando um burro. "Eu também quero falar! Para irrigar meu campo, gasto 6 libras a hora, contra 3 libras dois anos atrás. A vida aqui está cada vez pior!" Chega um outro camponês. Ele não tem mais condições de comprar um botijão de gás e voltou a usar o forno a lenha. "Somos os esquecidos do país! Estamos na pindaíba. Nunca pensamos que chegaríamos a esse ponto, antes da revolução!"
No bazar do Cairo, a irritação não é menor. Não há um único turista nas ruelas normalmente movimentadas que separam a mesquita Al-Azhar da mesquita Hussein. Entre estatuetas de faraós douradas e papiros emoldurados, donos de restaurantes e comerciantes ruminam seu ressentimento… "As pessoas estão furiosas. Elas acreditaram que haveria mais justiça e prosperidade. Elas se sentem traídas", acredita Mahinour el-Badrawi, pesquisadora do Centro Egípcio para os Direitos Econômicos e Sociais.
"O descontentamento é geral. Há momentos em que a atmosfera é explosiva, mas é difícil saber o que vai acontecer", ressalta Issandr el-Amrani, cientista político e dono de um blog conhecido, "The Arabist". "O clima é lúgubre e são muitas as teorias da conspiração. Vive-se um dia de cada vez, em meio à incerteza". Mas para ele, assim como para outros observadores, uma coisa parece certa: se a Irmandade Muçulmana tem perdido popularidade ultimamente, os salafistas têm marcado pontos ao se manterem afastados do jogo político e econômico.
Tradutor: Lana Lim
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