sábado, 25 de maio de 2013

Da juventude extravagante à guinada conservadora


A intenção original de Rodrigo Soares de Cerqueira para o seu doutorado era estudar obras de Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis visando explicar uma variação formal importante na construção dos protagonistas do romance brasileiro: em pouco mais de três décadas, esses personagens deixaram de se caracterizar pela bondade e pureza de espírito (em Macedo) e se tornaram mais calculistas (em Machado).

Jornal Da UNICAMP

O pano de fundo é a sociedade  patriarcal do século 19 e seu conjunto devalores, tais como submissão à vontade senhorial, respeito à tradição e manutenção da ordem.
Entretanto, quando começou a se aprofundar nas obras de Macedo, Rodrigo Cerqueira pediu autorização para alterar o projeto junto à Fapesp, financiadora da pesquisa, no que foi atendido. “O motivo é que já nesses romances encontrei o que esperava e um pouco mais. Percebi uma dinâmica interessante: eram personagens jovens, extravagantes, e outros mais velhos, que procuravam controlar os primeiros. O foco está na análise deste embate geracional entre os jovens que passaram a viver de forma mais livre – num contexto que ainda não se pode chamar de moderno, mas mais arejado – e os velhos, alguns orgulhosamente roceiros e seguidores dos ‘costumes antigos’.”
Decidido que se ateria a Joaquim Manoel de Macedo, Cerqueira analisou detalhadamente os seis primeiros romances do escritor: A Moreninha (1844), O Moço Loiro (1845), Os Dois Amores (1848), Rosa (1849), Vicentina (1853) e A Carteira do Meu Tio (1855). A tese intitulada “Educação pela máscara: literatura e ideologia burguesa no Brasil (1844-1856)” teve a orientação do professor Francisco Foot Hardman e foi defendida em março no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). “Outro motivo para alterar o projeto foi que, apesar de três trabalhos feitos recentemente aqui mesmo no IEL, Macedo ainda é um escritor pouco lido.”
O autor da pesquisa observa que os romances são ambientados no período um pouco posterior à chegada da Corte portuguesa. “O Brasil passava por uma série de grandes transformações, como a criação da Imprensa Régia, a abertura dos portos e o contato antes inexistente com outras nações. E também por transformações na vida cotidiana do Rio de Janeiro, a mais importante delas envolvendo as mulheres, que até então não saíam de casa e se retiravam da sala quando chegavam visitas. Naquele começo de século 19, elas ganham maior liberdade de trânsito, como por exemplo, indo à sorveteria da rua do Ouvidor, comprando roupas e frequentando bailes da Corte.”
Segundo Rodrigo Cerqueira, as personagens jovens dos romances de Macedo, a despeito das suas extravagâncias, são sempre honestas e sabedoras dos limites que não devem cruzar – e por isso podem ser reintegradas sem problemas à família, núcleo da sociedade. “Já o cálculo, matéria bruta das personagens machadianas, implica em certa consciência, numa ação interesseira que, por ser ambiciosa e individualizante, vai de encontro àquela visão mais comunitarista – entendendo que comunitarismo, nesse caso, é simplesmente a aplicação da vontade do senhor-proprietário como a vontade da comunidade que ele governa.”
O pesquisador acredita que um diferencial do seu trabalho foi ter lido essas extravagâncias de juventude – os galanteios nos bailes, as peças pregadas nos amigos e nos mais velhos, que fazem a graça dos romances de Macedo – baseando-se em referências teóricas do crítico literário Franco Moretti. “Para Moretti, uma das maiores inovações do romance foi colocar a juventude no centro do enredo e fazer do seu percurso formativo uma maneira de se entender o funcionamento de uma nova dinâmica social. Guardadas as devidas proporções, Macedo faz o mesmo, ainda mais porque uma das funções do gênero romanesco no Brasil foi de educação moral da juventude, principalmente das moças.”
De acordo com o autor da tese, um exemplo de como Macedo, nos primeiros romances, concede mais espaço para esta juventude extravagante, e ao mesmo tempo para que os velhos façam seus discursos morais, está em O Moço Loiro. “O jovem protagonista é Lauro, expulso da família acusado de um roubo. Sua avó faz uma longa descrição para uma neta a respeito do primo que chama de coração de serpente. É que os elogios que faz à sua capacidade intelectual vêm acompanhados da crítica ao desrespeito dele com a autoridade, seja com os professores, seja por causa da postura irônica frente às ideias dos mais velhos. O romance parece seguir para um embate entre gerações, mas no final Lauro é perdoado porque não cometera o roubo, reintegrado à família e o romance cumpre a sua função moral.”
PROTAGONISMO MINADO
O que mais chamou a atenção de Rodrigo Cerqueira, contudo, foi a mudança de dinâmica nos romances seguintes de Macedo, que deixam de ser movidos por brincadeiras como as de A Moreninha, em que jovens tomam um porre na festa e um deles se esconde embaixo da cama para ouvir a conversa das mulheres. “Com o passar dos anos, entre 1844 e 1856, a obra dele sofre uma espécie de inflexão conservadora, que chamo de ‘desfuncionalização da extravagância’. A insensatez dos jovens não é mais a característica que gera a ação, que por sua vez põe o enredo em movimento. Isso fica claro em Vicentina, romance de 1853, no qual o jovem protagonista da vez, Américo, é chamado de extravagante, se diz extravagante, mas não age de acordo.”
O pesquisador avalia que a desfuncionalização da extravagância acabou por roubar o protagonismo real dos jovens e por atribuí-lo aos velhos. “Estes se tornam cada vez mais ativos nos romances, deixando menos espaço para o desenvolvimento, ainda que infantilizado, daquele ideário mais arejado que a juventude incorporava. Parece-me que as transformações formais do romance se dão de acordo com a inflexão conservadora de meados do século 19, que ficou conhecida como o tempo Saquarema – grupo político conservador que se tornou hegemônico após o conturbado período regencial.”
O regresso conservador que coincidiu com o período estudado na tese, acrescenta Cerqueira, acabou impactando nas convenções sociais que permeavam os romances. “A liberdade de contestação deixa de ser uma característica positiva, ainda que cheia de ressalvas, e é requalificada, submetendo-se a uma autoridade central – à visão de mundo dos personagens mais velhos. Seus livros vão perdendo a graça, com protagonistas mais sérios, autoritários e sombrios. Não por acaso, os romances considerados melhores e mais conhecidos são os primeiros.”
Conforme o autor da pesquisa, o próprio Joaquim de Macedo se insere na política e vai mudando sua visão de mundo. “O último romance que analiso, A Carteira do Meu Tio, é uma sátira política que até fez sucesso e teve algumas reedições com o escritor ainda em vida. Entretanto, o que ele faz é justamente ironizar a extravagância da juventude, ponto fundamental das obras anteriores. À frente do romance está novamente um jovem, mas como um personagem cínico, uma espécie de anti-herói, que é o tempo todo ironizado e que se torna um exemplo a não ser seguido.”
O LEGADO PARA ALENCAR
Rodrigo Cerqueira ressalta a importância do texto “Acumulação literária e nação periférica” (segunda parte do livro Um mestre na periferia do capitalismo), em que Roberto Schwarz reflete sobre a consolidação de um sistema literário romanesco, no qual problemas e soluções formais são pensados e legados para o escritor seguinte. “Na opinião de Schwarz, o papel que cabe a Macedo no processo de consolidação da forma do romance no Brasil é muito pequeno, para não dizer nulo: a ele teria cabido apenas fixar chavões típicos do gênero no cenário do Rio de Janeiro, de maneira artificial e acrítica.”

O pesquisador considera, porém, que Macedo traz bem mais que isso, tendo reelaborado, da maneira possível em uma sociedade patriarcal, as formas que esse ideário mais moderno assumiria no imaginário da Corte, isto é, como uma transgressão um tanto juvenil. “Creio que o aspecto mais singular da tese é de dar relevo à reelaboração desse ideário, mostrando que Macedo, apesar de ser um romancista que realmente não está à altura de Alencar ou Machado, deu uma contribuição importante à literatura brasileira.”
Uma ponderação final de Rodrigo Cerqueira é que, como resultado da inflexão conservadora – quando a juventude não cumpre mais a função de dinamizar o enredo –, há um impasse informal. “Como ter um romance moderno, quando o protagonismo parece passar para as personagens mais velhas, detentoras de um ideário menos arejado? Essa perspectiva não soa nada atraente para uma nação recém-emancipada e desejosa de fazer parte do concerto do mundo? Macedo não lega apenas lugares-comuns, e sim um problema a José de Alencar, que vai tentar resolver essa questão do conservadorismo com personagens velhos menos autoritários e, em certo sentido, com personagens jovens menos extravagantes e menos contestadores do senso comum.”

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