sábado, 25 de maio de 2013

Do preto, do branco e do amarelo: sobre o mito nacional de um Brasil (bem) mestiçado



Se existe alguma especificidade na antropologia, ela reside no fato de se pensar e reconhecer com uma disciplina da alteridade, ou como quer Merleau Ponty "uma maneira de pensar quando o objeto é outro e que exige a nossa própria transformação"

Lilia Moritz Schwarcz
INTRODUÇÃO: NAS TRAMAS DO MITO RACIAL
Ou seja, se nos fiarmos na noção de alteridade, na perspectiva expressa por Rousseau em O contrato social, alteridade significaria a capacidade de nos identificarmos com o "outro" de tal maneira, que passamos a estranhar a nós mesmos, em nossos valores e concepções mais fundamentais. Esse movimento de aproximação e de estranhamento faria parte fundante dessa epistheme a qual, nas palavras de Claude Lévi-Strauss, sempre se definiu como uma ciência do outro; do olhar sobre o nativo, e com o nativo. Vale lembrar, também, que a disciplina pode se voltar não só para o "outro mais outro", como se debruçar sobre nós mesmos, acerca de nossas "filosofias" mais arraigadas.
Dizem que talvez o que mais definiria nossa sociedade ocidental, é que somos "um povo com história". Ou melhor, não há povo sem história; isso se tomarmos o conceito de história como sinônimo para temporalidade. Não existe sociedade que não pense em categorias como tempo e espaço, a despeito das concepções serem profundamente diversas. Nos termos de Durkheim, estaríamos lidando com uma "categoria básica do entendimento": não há sociedade que não a tenha, mas cada cultura a realiza empiricamente de forma particular e diversa (2). Assim sendo, nossa especificidade estaria mais no grau e na escala que a história toma entre nós, sendo parte fundamental dos discursos oficiais e nacional. Além do mais, se há povos que pensam o tempo de maneira sincrônica, ou mesmo espiralada, já nós usamos noções como cronologia, seriação e continuidade. Nossa história é sempre datada e, de alguma maneira, evolutiva. Mais ainda, ela parece central na conformação de discursos de identidade e de nacionalidade. É ainda uma vez Lévi-Strauss quem afirma que a história seria a "nossa grande narrativa social", ou a nossa ideologia política. Diz ele: "Nada se assemelha mais ao pensamento mítico que a história".
Como se pode notar, e parafraseando o famoso dito de Lévi-Strauss para o mito, a história parece mesmo "boa para pensar". Assim como se estudam parentescos, rituais, simbologias, também a história permite prever como a humanidade é una - universal - em suas estruturas mais básicas, mas vária em suas manifestações. A história cumpriria para nós o mesmo papel que os mitos, para outras sociedades: corresponde a uma espécie de cantilena sobre a origem, narrada pelo grupo, coalhada de tradição que, em nosso caso, começou oral e depois passou a escrita. Por outro lado, assim como os mitos, também a história, sua sucessão e constante reescrita remetem a contradições básicas e por definição insolúveis. Isto é, na perspectiva estrutural de Lévi-Strauss, a causa de um mito é sempre uma contradição, e por isso ele cresce em espiral, a partir de suas inúmeras versões. Por isso, também, é preciso "levar a sério os mitos", assim como levar a sério a história, e não descartá-los rapidamente.
Todo esse longo introito visa apenas anunciar uma proposta: "é preciso cuidar e atentar para nossos mitos". E se esses são muitos, sugiro tratar de um deles, em particular. Por isso selecionei um mito fundador entre outros tantos: nosso "mito das três raças mestiçadas". Ora três tristes raças (numa paródia com o romance de Cabrera Infante - Três tristes tigres), ora três alegres raças... O fato é que raça "sempre deu o que falar", para o bem e para o mal, como os mitos cujas versões parecem dialogar entre si.
Preto, branco e amarelo não são, porém, apenas cores. Ao contrário, são "relação". Além do mais, e como bem mostrou Victor Turner, em Floresta de símbolos, há elementos essenciais a serem retirados da releitura das cores. Diz ele que seriam símbolos primordiais produzidos pelo homem, a representar produtos do corpo humano cuja produção está associada à emoção. Por outro lado, a essas experiências corporais corresponde uma percepção de poder, ou ao menos uma classificação de rótulo cromático. Afirma ainda que as cores representam experiências físicas intensificadas, assim como proporcionam uma espécie de classificação e nominação primordial da realidade. Cores são, pois, sínteses e condensações das mais poderosas (4) e gostaria de destacar o quanto se produz em cima dessas classificações.
Por suposto não temos espaço para refazer toda essa história das cores, em nosso país. Afinal, desde os primeiros relatos seiscentistas, o Brasil foi elevado a partir de sua grande natureza, enquanto seus nativos eram considerados pouco confiáveis. "Homens sem fé, sem lei e sem rei" foi a definição certeira de Gandavo, viajante lusitano que levantava uma primeira suspensão por sobre "as gentes" dessa América portuguesa. E o que dizer do primeiro concurso sobre "Como escrever a história do Brasil" realizado em 1845? Nesse caso, ao invés da versão negativa ou apreensiva, venceu o "otimismo" do naturalista bávaro M. Von Martius, que se utilizou da metáfora de um rio composto por vários afluentes: um branco mais caudaloso; um indígena menos profundo, e um negro "quase um riacho". De lá para cá muitas versões se sobrepuseram, algumas mais negativas, outras francamente positivas. O Brasil de finais do XIX parecia condenado ao fracasso, tal a carga pessimista que recaía sobre a ideia de miscigenação. Segundo as teorias raciais deterministas, em grande voga naquele contexto, não haveria futuro para um país de "raças cruzadas como o nosso", e definitivamente "degenerado". Mas as políticas de eugenia, esterilização e um quase apartheid social dariam lugar a novos mitos, como o criado nos anos 1930, por Gilberto Freyre, mas também Donald Pierson e Arthur Ramos, entre tantos outros. Nesse caso, em vez de veneno seríamos o remédio, para um mundo em guerra e marcado por divisões de classe, origem e cor. O "mito da democracia racial" forjado nesse momento, e amplamente amparado pelo governo Vargas, se colaria à nossa representação nacional tal qual tatuagem, fazendo da aparência física uma questão de caráter e padrão cultural. Se hoje andamos longe dessa última visão; se de há muito tem se discutido e mostrado o racismo vigente entre nós, o fato é que raça é ainda, e cada vez mais, um tema central em nossa agenda nacional (5).
Mas gostaria de tomar os discursos sobre raça, não como mera ideologia ou falso discurso, e mais como mitos nacionais. Nesse sentido, vale indagar sobre sua pertinência e constância na fala dos políticos, mas também dos artistas e na teoria do senso comum. Esse é ainda um país que se define pela mestiçagem, seja ela mais ou menos alentadora: moeda de enaltecimento ou categoria de acusação. Vamos, portanto, nos concentrar em alguns episódios pontuais, entendendo-os como "versões" de um mito que continua a produzir variações entre nós. Mais ainda, pretendo me fiar na máxima de Durkheim que mostrou como "a soma dos indivíduos não é igual a sociedade". A lógica do social, do coletivo, funda categorias presentes nos indivíduos, mas não reduzidas a eles. Penso nos casos como exemplos de posturas e tendências mais amplas, e menos na psicologia de cada um. Talvez nessa esquina, a antropologia, a despeito de trabalhar com categorias nativas, pense menos no indivíduo, e mais em estruturas mais amplas e que não cabem reunidas numa só persona. Sem ter a intenção de fazer um grande balanço, pretendo apenas iluminar certos cenários, e com eles recuperar com quantas versões se potencializa um mito.
Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros, do livro As barbas do imperador, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, e organizadora, em parceria com Ricardo Benzaquen de Araújo, de Raízes do Brasil: edição comemorativa. São Paulo: Companhia das Letras, Edição Comemorativa - 70 anos (1936-2006), 2006

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