'Flexibilizar' é a forma branda de dizer que é preciso desconstruir os direitos do trabalhador
Ricardo Antunes
Ricardo Antunes
Em nosso curioso país, muitas conquistas acabam tendo vida efêmera, enquanto muita construção estranha acaba longeva. E assim o país caminha, quase prussianamente, em seus avanços e atropelos. O que explica, então, a longa duração de nossa CLT, criada em 1943?
O enigma da incorporação da classe trabalhadora por Vargas pode ser desvendado pelos múltiplos significados presentes quando da decretação da CLT. Desde logo ela consolidava a totalidade da legislação social (e sindical) do trabalho iniciada em 1930. Mas é imperioso enfatizar que houve um movimento dúplice nessa história: o operariado brasileiro lutava, desde meados do século 19, por direitos básicos do trabalho, por meio da realização de greves. E esse movimento se expandiu ao longo das primeiras décadas do século 20 - de que foi exemplo, entre tantas, a grande greve geral de 1917 - quando os trabalhadores reivindicavam, entre outras bandeiras, melhores condições de salário e de trabalho, a regulamentação da jornada, o direito de férias e do descanso semanal, etc.
Aqui o mito encontrou sua origem e densidade: Vargas "converteu" autênticas reivindicações operárias em doações do Estado, realizadas quase sempre em atos de 1º de Maio oficialistas, em que se assumia como responsável pelo Estado benefactor, para recordar Werneck Vianna. Aquilo que a classe operária reivindicava em suas lutas concretas - na primeira metade dos anos 1930 houve a eclosão de inúmeras greves no Brasil - Vargas assumia como sua criação. E foi assim, oscilando entre luta e outorga, que chegamos à decretação da CLT em 1943 e à criação do mito do Pai dos Pobres.
Do lado varguista, construía-se a clara percepção de que o projeto industrial carecia de uma necessária regulamentação e controle do trabalho. Do lado dos assalariados, um exame das pautas das greves permitia constatar que os direitos do trabalho estavam entre suas principais reivindicações. A título de exemplo: se para a classe trabalhadora a criação do salário-mínimo nacional era imprescindível para garantir sua reprodução e sobrevivência, para o projeto industrializante de Vargas era imperioso regulamentar a mercadoria força de trabalho e desse modo consolidar o mercado interno pela instituição de um salário mínimo basal.
Foi exatamente por consolidar um código efetivamente protetor do trabalho que a CLT tornou-se duradoura e logrou ganhar sólido apoio popular ao longo de suas décadas de vigência. As flexibilizações, terceirizações, o aumento da informalidade e a ampliação do desemprego serão consequências imediatas se a CLT for desfigurada.
Mas não será fácil essa nova empreitada de demolição pretendida pelo empresariado, pelo simples fato de que a CLT é considerada como uma verdadeira Constituição pela classe trabalhadora, ao consagrar conquistas que ela sabe que se perder, não haverá no horizonte próximo nenhuma possibilidade de recuperar. Ainda mais numa conjuntura de destruição intensa e em escala global dos direitos do trabalho.
RICARDO ANTUNES É PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DO TRABALHO NA UNICAMP. SEU NOVO LIVRO RIQUEZA E MISÉRIA DO TRABALHO NO BRASIL, VOL. II (BOITEMPO) ESTARÁ NAS LIVRARIAS AINDA NESTE MÊS. SEU LIVRO OS SENTIDOS DO TRABALHO ACABA DE SER PUBLICADO NA INGLATERRA E PORTUGAL
Nenhum comentário:
Postar um comentário