O que está ocorrendo entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte que gera títulos como "Aumenta a tensão na Coreia" e "Coreia do Norte ameaça os Estados Unidos"?
The New York Times informava em 30 de março: "o jovem dirigente da Coreia do Norte, Kim Jung-un, ordenou esta semana aos seus subordinados que se preparassem para um ataque com mísseis contra os Estados Unidos. Apresentou-se num posto de comando frente a um mapa pendurado na parede com o atrevido e improvável título de ‘Planos para atacar o território dos Estados Unidos'. Uns dias antes os seus generais tinham se gabado de ter desenvolvido uma ogiva nuclear ‘estilo coreano' que podia ser transportada num míssil de longo alcance".
Os Estados Unidos sabem bem que as declarações da Coreia do Norte não estão apoiadas num poder militar suficiente para implementar as suas ameaças retóricas, mas a tensão parece de qualquer modo estar aumentando. O que está ocorrendo? Tenho de retroceder um pouco no tempo para explicar a situação.
Desde o final da Guerra da Coreia, há 60 anos, o governo da República Popular Democrática da Coreia do Norte (RPDCN ou Coreia do Norte) tem repetidas vezes apresentado praticamente as mesmas quatro propostas aos Estados Unidos. Estas são:
1. Um tratado de paz para pôr fim à Guerra da Coreia.
2. A reunificação da Coreia, "temporariamente" dividida em Norte e Sul desde 1945.
3. O fim da ocupação estadunidense da Coreia do Sul e a suspensão das manobras de combate anuais, de um mês de duração, entre os Estados Unidos e a Coreia do Sul.
4. Negociações bilaterais entre Washington e Pyongyang para acabar com as tensões na Península da Coreia.
Os Estados Unidos e o seu protetorado sul-coreano têm rechaçado ao longo dos anos cada uma destas propostas. Em consequência disso, a península tem sido extremadamente instável desde a década de 1950. Agora chegou-se a um ponto em que Washington utilizou as suas manobras de guerra anuais, que começaram em princípios de março, para organizar um simulacro de ataque nuclear contra a Coreia do Norte, sobrevoando a região no dia 28 de março com dois bombardeiros B-2 Stealth, dotados de capacidade nuclear. Três dias depois, a Casa Branca enviou para a Coreia do Sul aviões de combate não detectáveis F-22 Raptor, com o que a tensão aumentou ainda mais.
Vejamos que há por detrás destas quatro propostas:
1. Os Estados Unidos negam-se a assinar um tratado de paz para pôr fim à Guerra da Coreia. Acederam apenas a um armistício, que é uma suspensão temporária do combate, por consentimento mútuo. Supunha-se que o armistício assinado em 27 de julho de 1953 ia se transformar num tratado de paz quando "fosse alcançado um acordo pacífico final". A falta de um tratado significa que a guerra pode ser reatada a qualquer momento. A Coreia do Norte não quer uma guerra com os Estados Unidos, o Estado com maior poder militar da história. Quer um tratado de paz.
2. As duas Coreias existem em consequência de um acordo entre a União Soviética (que faz fronteira com a Coreia e durante a Segunda Guerra Mundial ajudou a libertar do Japão a parte norte do país) e os Estados Unidos, que ocuparam a metade sul. Embora o socialismo prevalecesse no norte e o capitalismo no sul, a divisão não ia ser permanente. As duas grandes potências iam retirar-se ao cabo de um par de anos e permitir que o país se reunificasse. A Rússia o fez; os Estados Unidos, não. Chegou então em 1950 a devastadora guerra de três anos. Desde essa data a Coreia do Norte tem apresentado várias propostas diferentes para acabar com a separação que dura desde 1945. Creio que a mais recente é "um país, dois sistemas". Isso significa que ainda que se unam ambas as partes, o sul continua sendo capitalista e o norte socialista. Será difícil, mas não impossível. Washington não o quer. Trata de alcançar toda a península para levar o seu guarda-chuva militar diretamente até a fronteira com a China e também com a Rússia.
3. Desde o final da guerra, Washington tem mantido entre 25.000 e mais de 40.000 soldados na Coreia do Sul. Juntamente com as esquadras, bases de bombardeiros nucleares e instalações de tropas estadunidenses muito próximas da península, estes soldados continuam a constituir a memória de duas coisas. Uma é que "podemos esmagar o norte" e a outra é "a Coreia do Sul pertence-nos". Pyongyang encara-o desta forma (e muito mais ainda desde que o presidente Obama decidiu "pivotar" na direção da Ásia). Embora esta viragem contenha aspectos econômicos e comerciais, o seu principal propósito é aumentar o já considerável poder militar na região para intensificar a sua ameaça em relação à China e à Coreia do Norte.
4. A Guerra da Coreia foi basicamente um conflito entre a República Popular Democrática da Coreia do Norte e os Estados Unidos. Quer isto dizer que, ainda que vários países das Nações Unidas tenham participado da guerra, os Estados Unidos assumiram-na para si, dominaram a luta contra a Coreia do Norte e foram responsáveis pela morte de milhões de coreanos a norte da linha divisória do paralelo 38. É completamente lógico que Pyongyang procure negociar diretamente com Washington para resolver os diferendos e alcançar um acordo pacífico que conduza a um tratado. Os Estados Unidos têm-se negado sistematicamente a esse objetivo.
Estes quatro pontos não são novos. Foram colocados na década de 1950. Na década de 1970 visitei em três ocasiões a República Popular Democrática do Coreia do Norte, num total de oito semanas, como jornalista do periódico estadunidense The Guardian. Uma e outra vez, nas discussões com altos responsáveis, perguntavam-me pelo tratado de paz, pela retirada das tropas estadunidenses do sul e negociações diretas. Hoje a situação é a mesma. Os Estados Unidos não vão ceder um milímetro.
Por que não? Washington quer livrar-se do regime comunista antes de permitir que a paz prevaleça na península. Nada de "um Estado dois sistemas", para o inferno! Querem um Estado que prometa lealdade, adivinhem a quem?
Entretanto, a existência de uma "belicosa" Coreia do Norte justifica que Washington cerque o norte com um autêntico anel de potência de fogo no noroeste do Pacífico, suficientemente próximo para quase queimar a China, ainda que não totalmente. Uma "perigosa" República Popular Democrática da Coreia do Norte também é útil para manter o Japão dentro da órbita estadunidense e é também outra justificativa para que o antes pacífico Japão se gabe agora do seu já formidável arsenal.
Relativamente a isto, vou a citar um artigo de Christine Hong y Hyun Le, publicado a 15 de fevereiro em Foreign Policy in Focus:
"Qualificar a Coreia do Norte como a principal ameaça para a segurança da região oculta a natureza falsa da política do presidente estadunidense Barack Obama na região, na prática a identidade entre o que os seus assessores denominam ‘paciência estratégica' por um lado e, por outro, a postura militar e a aliança com os falcões regionais que vem concretizando. É fundamental examinar a agressiva política de Obama relativamente à Coreia do Norte e as suas consequências, para entender porque as demonstrações de poderio militar (da política por outros meios, nas palavras de Carl von Clausewitz) são as únicas vias de comunicação com os Estados Unidos que a Coreia do Norte parece ter nesta conjuntura".
Tenho aqui uma outra citação de Brian Becker, dirigente da coligação ANSWER:
"O Pentágono e o exército da Coreia do Sul nos dias de hoje (e ao longo do ano passado) têm vindo a organizar massivas manobras de guerra que simulam a invasão e bombardeio da Coreia do Norte. Poucas pessoas nos Estados Unidos conhecem qual é a verdadeira situação. O trabalho da máquina de propaganda de guerra está delineado de forma a garantir que o povo estadunidense não se una para exigir que acabem as perigosas e ameaçadoras ações do Pentágono na Península da Coreia.
A campanha de propaganda está agora em pleno desenvolvimento enquanto o Pentágono sobe a escalada da intensificação numa das zonas mais militarizadas do planeta. A Coreia do Norte é considerada o provocador e o agressor cada vez que afirma que tem direito a defender o seu país e capacidade para o fazer. Inclusive, quando o Pentágono simula a destruição nuclear de um país que já bombardeou até ‘reduzi-lo à Idade da Pedra', os meios de comunicação de propriedade das corporações caracterizam este ato extremadamente provocativo como um sinal de determinação e uma medida de defesa própria".
E uma outra citação da Stratfor, o serviço de inteligência privado que costuma estar bem informado:
"Grande parte do comportamento da Coreia de Norte pode considerar-se retórico, embora não esteja claro até onde quer chegar Pyongyang se continuar sem poder forçar negociações por meio da beligerância".
Aqui dá-se por adquirido o objetivo de iniciar negociações.
A "belicosidade" de Pyongyang é quase completamente verbal (talvez vários decibéis demasiado alta para nossos ouvidos), mas a Coreia do Norte é um país pequeno em difíceis circunstâncias que bem recordam a extraordinária brutalidade que Washington infligiu ao território na década de 1950. Morreram milhões de coreanos. Os bombardeios de saturação estadunidenses foram criminosos. A Coreia do Norte está decidida a morrer lutando se isto voltar a suceder, mas espera que a sua preparação (militar) impeça a guerra e conduza a negociações e a um tratado.
O seu grande e bem treinado exército é defensivo. O objetivo dos foguetões que está construindo e de falar de armas nucleares é fundamentalmente assustar o lobo que tem à porta de casa.
A curto prazo, a recente retórica inflamada de Kim Jong-un é a resposta direta ao simulacro de guerra de um mês de duração deste ano dos Estados Unidos e Coreia do Sul, interpretado como um possível prelúdio de outra guerra. A longo prazo, o objetivo de Kim é criar uma crise suficientemente inquietante para que os Estados Unidos acedam finalmente a negociações bilaterais, e possivelmente a um tratado de paz e à saída das tropas estrangeiras. Mais adiante, poderia chegar alguma forma de reunificação, em negociações entre o norte e o sul.
Suspeito que a atual confrontação se acalmará uma vez que terminem as manobras de guerra. O governo Obama não tem a intenção de criar as condições que levem a um tratado de paz, especialmente agora que a atenção da Casa Branca parece concentrada no leste da Ásia, de onde se indicia um possível perigo para a sua supremacia geopolítica.
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